• Nenhum resultado encontrado

O estudo da educação e das relações étnico-raciais objetiva propiciar ao pesquisador em história da educação o conhecimento do processo de escolarização, das estratégias de ensino, da constituição dos sujeitos, das relações de permanência e rupturas das práticas escolares num sentido mais amplo. Estudar o processo escolar por meio do viés étnico-racial é buscar compreender como o ensino se configurou em determinado tempo histórico, contemplando todas as culturas e suas contribuições na organização do processo escolar do país. Para Fonseca (2007) a questão racial é um elemento estruturante da sociedade e está relacionada com as múltiplas dimensões da vida social brasileira.

Tendo esse aspecto em vista, identificar os processos de inserção da população negra paulista nas primeiras décadas do século XX pode enriquecer o debate historiográfico educacional, engendrando uma dimensão ampla de conhecimento em torno da história da escolarização e da educação atual.

Após os estudos realizados ao longo deste trabalho, concluiu-se que dois fatores concorreram significativamente para o desenvolvimento de São Paulo nos séculos XIX e XX: a economia agroexportadora e a industrialização. A riqueza gerada pelo café transferiu-se para diferentes setores da economia urbana: setores financeiros e comerciais, indústrias extrativas, de transformação, de transportes, de iluminação pública e de abastecimento de água, e também as atividades sociais e educacionais. O desenvolvimento desses setores está intimamente ligado ao segmento populacional negro, pois como definiu Fernandes (2008) a participação dos trabalhadores negros foi essencial para a transformação do trabalho em riqueza, e esses homens processaram, com as próprias vidas, todas as fases de evolução da economia paulista.

A indústria paulista teve um surto modernizador no limiar do século XX, seja pela ação de investidores nacionais, seja pela entrada de capital estrangeiro, afinal, nesse momento de organização das estruturas capitalistas, eram infinitas as possibilidades de enriquecimento. Abertos os caminhos para a expansão urbana, a abertura de bairros, e a subsequente geração de empregos, surgem novas classes sociais: industriais e operários. O engrossamento das camadas médias urbanas, ou classes médias, é tributário desse momento de transformação.

Porém, a inclusão do negro na sociedade industrial e capitalista caracterizou-se por uma absorção lenta, em ocupações braçais e mal-remuneradas como carregadores, ajudantes, serventes, pedreiros, quitandeiras, engomadeiras, cocheiros ou em trabalhos semiqualificados

como barbeiros, sapateiros, alfaiates, ferreiros, domésticos e artesãos. Essa situação de abandono e pobreza, aliada à disputa direta com os imigrantes europeus, propiciaram o desenvolvimento de novos dispositivos psicossociais de sobrevivência: é de acordo com este argumento que entendo a emergência das associações civis e os jornais da imprensa negra do século XX.

As reformas no ensino público e a criação da escola primária de ensino obrigatório, laico e gratuito, de caráter estatal, foi um atributo do século XX intimamente ligado ao processo de reorganização do capital. No que diz respeito a São Paulo, o debate acerca da educação elementar ganha contornos diferenciados. Concomitantemente ao processo de modernização, que tinha como focos principais o desenvolvimento industrial e a formação de um Estado único, à educação foi atribuída a função de “regenerar” o cidadão.

Faz-se notar, de acordo com as ideias de Foucault para a governamentalidade, que o movimento escolanovista promoveu transformações no ensino público paulista, em busca de “saberes” para tornar “governáveis” as especificidades dos alunos brancos, na sua maioria imigrantes, e negros, descendentes de ex-escravos: o ideal era que “todos” fossem submetidos à ação homogeneizadora da educação. A aplicação do teste ABC e a formação de classes seletivas contribuem para este entendimento, e aqui foram analisados sob o ponto de vista da bio-política.

Tendo em vista que educação expressava uma preocupação com o indivíduo não somente na esfera intelectual, mas também nas esferas física e moral, foram ampliadas as ações para o aumento do índice de alfabetização do estado e da capital, seja para manutenção da ordem social, seja para desenvolver novos comportamentos necessários à sociedade moderna (Lourenço Filho, 1931). Em suma, intelectuais, políticos e educadores expressaram uma inquietação com relação à alfabetização da população paulistana - na qual não bastava somente instruir, mas educar e imbuir hábitos saudáveis (Schwarcz, 1993).

Contrariando uma corrente da história da educação paulista do período republicano, que defendeu a hipótese de que os negros foram relegados ao analfabetismo, as pesquisas aqui apresentadas comprovam que a população escolar contava com 10% de crianças negras (pretas e mulatas). Os dados estatísticos e os depoimentos orais também contribuíram para esta conclusão, e revelam a existência de estratégias de inserção da criança negra na escola pública primária da capital paulista.

Os discursos dos educadores paulistas relataram um direcionamento para que as crianças pobres fossem encaminhadas para o aprendizado de um ofício, após a frequência na escola primária. O modelo dualista de escola dos liberais, explícita na promoção do ginásio e dos cursos superiores para as elites, e da escola primária e do ensino técnico para os trabalhadores, como revelou Hilsdorf (2007), foi assimilado e reinterpretado pela população negra, que visualizou, nesta perspectiva, oportunidades de inserção na sociedade mais ampla. Observou-se com frequência um discurso semelhante nos jornais da imprensa negra paulista nas décadas de 1920 a 1940: a escola primária (diurna, para as crianças, e noturna, para os adultos) e o ensino profissional técnico são estratégias destacadas para que os negros acompanhassem o progresso da capital, a exemplo dos imigrantes.

É preciso ter em mente que a frequência de crianças negras nos grupos escolares não constituiu, em si mesma, índice de inexistência de preconceito e de discriminação racial. Na situação que me competiu investigar foram constatadas condições e efeitos dos mecanismos sociais que impediram o ingresso de crianças negras no sistema educacional, como o depoimento da sra. Albina, que revelou a negação de matrícula em fazendas da região de Santa Lúcia (SP), na década de 1910, e as denúncias dos jornais da imprensa negra na década de 1930 a respeito dos grupos escolares que “menosprezavam a dignidade da criança negra, deixando-as de lado para que não aprendam”. Situações como estas, apresentadas no decorrer da tese, precisam ser reveladas e promovidas à uma discussão crítica.

Os estudos realizados ao longo deste trabalho e das análises realizadas anteriormente indicam os avanços conquistados em relação à compreensão da escolaridade dos negros nos anos iniciais do século XX. Também sugerem uma mudança na direção das pesquisas em história da educação, com a finalidade de instituir a categoria raça/etnia como instrumento de análise em relação aos mais diversos objetos de pesquisa tratados pelos historiadores educacionais.

Com os questionamentos que apresentei neste texto e mediante a diversidade de fontes aqui (re) elaboradas, foi possível problematizar alguns aspectos que configuraram a história da educação dos negros nos grupos escolares de São Paulo. A partir dessa problematização, cujos resultados são preliminares, é possível visualizar as diversas lacunas e questões ainda sem respostas.

A existência de lacunas, porém, indicam que as possibilidades de investigação são muitas, e podem reverter na preservação da memória educacional. Uma pesquisa dessa natureza é apenas o início de uma longa e árdua caminhada, devendo ela ser trilhada por outros pesquisadores.