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O deslocamento de grupos sociais do Nordeste para o território amazônico, em especial para o estado de Mato Grosso, além de não ser um fato novo na história do Brasil, também não se encerra com o fim da ditadura militar imposta ao país no período de 1964 a 1985.

Nas pesquisas para a elaboração do estudo Reflexões sobre o deslocamento populacional no Brasil (realizado com base nos dados do recenseamento geral da população referente a década de 2010), publicado pelo IBGE em 2011, mudanças no panorama do movimento da população, em especial a nível estadual, chamou a atenção dos pesquisadores. Em um quadro no qual cerca de 3,3 milhões de pessoas se deslocam entre as regiões brasileiras (nessas, entre entradas e saídas, destacando-se a região Nordeste que apresenta a maior perda absoluta - 760 mil pessoas), foi descoberto que, em alguns estados, pela primeira vez, a Região Sul e Sudeste do país não é o principal destino dos trabalhadores migrantes provenientes do Nordeste. Esta posição foi tomada pelas regiões Norte e Centro Oeste; sendo o estado do Pará considerado área de alta absorção migratória. O Pará foi também o principal destino dos imigrantes maranhenses seguido por São Paulo, Tocantins, Piauí, Goiás e Distrito Federal1.

É importante levar em consideração que nos recenseamentos gerais realizados anteriormente (em especial os referentes as três últimas décadas do século XX) observa-se um exponencial aumento do deslocamento de grupos sociais provenientes do Nordeste em

direção ao território amazônico, em particular, o Mato Grosso e Pará2. Todavia, o número

de migrantes que se dirigiam ao Centro-Oeste e Norte do Brasil, não havia ultrapassado aqueles que se deslocavam em direção ao Sudeste. Até o Censo Demográfico de 2010.

Essa considerável mudança no quadro dos deslocamentos populacionais no país, são, em parte, resultado das políticas econômicas do governo federal (lançadas a partir da década de 1970) para o território amazônico, que tinham por principal objetivo integrar a

1 OLIVEIRA, Luiz Antônio Pinto de; OLIVEIRA, Antônio Tadeu Ribeiro de. Reflexões Sobre os Deslocamentos Populacionais no Brasil; Estudos e Análises Informação Demográfica e Socioeconômica Nº01. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Rio de Janeiro, 2011.

2 Outra face dos movimentos de população relacionados aos projetos de colonização são os denominados “fluxos de retorno” - que não foram objeto dessa pesquisa -, composto por famílias que não se adaptaram nos projetos de colonização, agropecuários entre outros, e retornam a seus estados de origem face a existência de uma rede familiar que as acolhe.

134 Amazônia aos grandes mercados nacionais e internacionais. Segundo o discurso governamental, o desenvolvimento social e econômico do território amazônico seria alcançado, através do financiamento de grandes obras de infraestrutura e de projetos de desenvolvimento nacionais e regionais. As políticas de incentivo fiscal, além de atraírem

empresas capital privado (multinacionais, bancos, frigoríficos entre outros

empreendimentos), ainda incentivou o deslocamento de milhares de homens e mulheres que partiram em busca de melhores condições de vida e trabalho.

O estudo das políticas de desenvolvimento do governo federal implantadas na Amazônia, são uma possibilidade de atualização do estudo das migrações, em especial de trabalhadores rurais, provenientes do Nordeste. Demonstramos através do trabalho aqui apresentado que, a questão do exponencial aumento do número de migrantes no estado do Mato Grosso, está relacionada a interferência do Estado nesse território. As vantagens do território amazônico propagadas pela iniciativa privada, com o apoio do governo, contribuíram com a criação de “Eldorado” onde havia abundância de terras férteis e disponíveis. Essa criação levou milhares de homens e mulheres a abandonares seus estados e partirem em busca de um espaço que lhes era desconhecido.

Os trabalhadores rurais provenientes do Nordeste foram bastante sensíveis a essa construção de uma Amazônia mítica, em especial, os que foram vítimas de desequilíbrios climáticos como a seca e enfrentaram dificuldades em manter seus lotes de terra.

A chegada da iniciativa privada simultaneamente com os pequenos produtores e trabalhadores rurais em busca de trabalho temporário causou diversas tensões entre esses grupos sociais que demandavam o uso e posse da terra3. Osa grandes proprietários e empresários se valeram de verdadeiras milícias armadas para impedir que os trabalhadores

rurais, também denominados de posseiros4, de ocupar a terra que consideravam suas,

mesmo diante dos inúmeros problemas envolvendo a titulação das terras devolutas do

Estado5. O estudo das migrações em direção ao Mato Grosso no período de 1970 a 1980

permite melhor entender como ocorreram esses conflitos.

3 Cf. PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no sul e sudeste do Pará. Migrações, conflitos e violência no campo. 2013. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013..

4 O historiador Airton dos Reis Pereira em seu trabalho discute o uso político da categoria posseiro que foi apropriada e resignificada pelos trabalhadores rurais, principalmente migrantes de diversas regiões do Brasil. Ibidem.

5 Cf. MORENO, Gislaene. Terra e poder em Mato Grosso: políticas e mecanismos de burla – 1892-1992. Cuiabá, EdUFMT, 2007.

135 Apesar de colocarmos as políticas econômicas do governo militar como um importante vetor para o recrudescimento das relações entre grandes empresários e trabalhadores rurais, é preciso salientar que com a redemocratização, os casos de violência no campo não amainaram. A redemocratização não modificou a matriz de desenvolvimento do país pois, a agricultura ainda se apoia no latifúndio e na monocultura.

O Caderno Conflitos no Campo (1985) da Comissão pastoral da Terra (CPT), aponta que apenas em 1985 existiram 768 conflitos relacionados ao campo no Brasil, envolvendo 567.324 pessoas, desses, 76 foram conflitos trabalhistas. Mato Grosso consta com 1 conflito envolvendo trabalho escravo e o Pará com 4 conflitos envolvendo 1.008 pessoas, 2 mortos, 1 ferido e 4 desaparecidos. Os motivos são salários não pagos e trabalho escravo. Já no ano 2000 observamos 669 conflitos relacionados ao campo, com 21 assassinatos envolvendo 560.355 pessoas. Desses conflitos 21 dizem respeito ao trabalho escravo, encontramos 2 no Mato Grosso envolvendo 136 pessoas e 16 no Pará, envolvendo 290 pessoas. Desses 16 conflitos no Pará, 5 envolveram migrantes, todos do Nordeste; em 4 casos não foi possível constatar a procedência do trabalhador.

Isso demonstra que os efeitos das políticas públicas de ocupação do espaço amazônico foram duradouros, fazendo-se sentir mesmo depois do fim dos governos militares. Logo, analisar essas políticas, em particular, através dos discursos de presidentes (que tinha por objetivo anunciar os “ideais comuns” que Amazônia e Nordeste compartilhavam) ou através dos decretos-lei, (precursores da interferência do governo no território amazônico) é imprescindível para entendermos não apenas o estopim dos conflitos que ocorreram nas décadas de 1970 e 1980, mas, suas permanências.

Também concentramos nossas análises nas relações de trabalho estabelecidas entre empresas (ou fazendas) e trabalhadores rurais migrantes, em partículas, os casos de trabalho degradante ou análogo ao de escravo.

É importante entender a problemática do trabalho análogo ao de escravo como imbricado na forma de relação econômica desenvolvida no campo, especialmente, nas áreas de atuação de instituições financiadoras de grandes projetos como a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e da Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO), entre outras. O Estado estimulou e financiou a presença da iniciativa privada no território amazônico, muitas vezes, em detrimento da realização de uma reforma agrária que realizasse a distribuição de terras para aqueles que mais

136 necessitavam dela, os pequenos produtores rurais. Todavia, não acompanhou o impacto que esses vultuosos investimentos tiveram nas relações de trabalho.

Os efeitos da extrema pauperização da mão-de-obra podem ser aferidos através do estudo da documentação presente no Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia, ainda pouco explorado nos estudos sobre o trabalho degradante ou “análogo ao de escravo”, nas áreas de ocupação recente na Amazônia. As declarações, depoimentos, cartas, recibos e processos trabalhistas que compõem o arquivo são um importante caminho de análise de fatos miúdos e cotidianos que demonstram como é a experiência dos trabalhadores rurais nas fazendas do nordeste do Mato Grosso, em especial, aquelas localizadas próximo ao rio Araguaia.

Como explanado ao longo desta dissertação o fato de os trabalhadores encontrados em situação de trabalho degradante são migrantes é uma evidência de que essa parcela da população é constantemente alvo de empreiteiros ou “gatos”. Esses sujeitos, que cumprem o papel de intermediários entre as empresas e os “peões”, abordam esses trabalhadores com promessas de altos salários. Muitas vezes o engodo é desfeito logo na chegada à fazenda, quando se deparam com as péssimas condições de trabalho, falta de água potável, remédios, equipamentos de proteção e alojamentos. Depois ocorre a fuga, onde os trabalhadores enfrentam dias de caminhada até o município ou povoado mais próximo em busca de abrigo.

Todavia, a saga dos “peões” que vivenciam a experiência do trabalho degradante nas fazendas do norte e nordeste do Mato Grosso não termina com a chegada a um local seguro. Há casos em que os “empreiteiros” perseguem esses trabalhadores sob a justificativa da existência de dívidas a serem pagas, também a polícia militar age em conluio com “gatos” e fazendeiros e apreendem os fugitivos para levá-los de volta aos locais de trabalho. Quando conseguem se desvencilhar dos “gatos” e policiais, tem início uma nova saga, a da busca pelo reconhecimento dos serviços prestados e o pagamento pelo tempo de serviço.

É revelador observar, através dos depoimentos recolhidos pela Prelazia de São Félix, o quão longe os trabalhadores estão dispostos a chegar para terem seus direitos reconhecidos. Eles recorrem a diversas instituições, desde a Justiça do Trabalho até o Exército e o próprio Ministro do Trabalho. Essa luta pelo reconhecimento demonstra que os trabalhadores rurais e pequenos produtores não são sujeitos passivos das ações do Estado ou de empresários. A luta não se trata apenas de receber compensação financeira

137 pelos serviços prestados, mas, pelo reconhecimento de sua posição de trabalhador e cidadão, logo, detentor de direitos que não pode ser ignorado pelo poder público.

Acreditamos que o trabalho aqui apresentado tenha contribuído para a discussão dos deslocamentos populacionais no Brasil, em particular, o de trabalhadores rurais provenientes do Nordeste que se dirigiram em direção ao estado do Mato Grosso, especialmente sua parte norte. O estudo desses movimentos populacionais, em um âmbito maior, nos permite ter um vislumbre da história do Brasil quando esteve sob a ditadura civil-militar, pois, as políticas de desenvolvimento econômico implantadas no território amazônico, são um importante indicativo da atuação desse governo no tocante o controle da população, em especial de sua circulação.

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