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Capítulo III – O deslocamento de trabalhadores rurais do Nordeste para a Amazônia e as relações de trabalho em áreas com predominância de

3.2. Estado Vs Trabalho Escravo

O Frei Xavier Plassat (2008), figura atuante na Comissão Pastoral da Terra (CPT), afirma não haver muitas diferenças entre a escravidão, praticada no Século XIX, para a dos tempos atuais. Especialmente, no que diz respeito à forma como o país lida, com as Leis, referentes à propriedade da terra. Para o autor em referência, concentração fundiária e trabalho degradante estão intimamente ligados, e a legislação brasileira sempre serviu-se de dispositivos para dificultar o acesso à terra para a maioria da população o que poderia favorecer, assim, a presença de uma grande massa de trabalhadores rurais sem-terra, que não têm opção a não ser vender sua força de trabalho a preço baixo, a um latifundiário. Fazendo uma análise, comparando a assinatura da Lei Áurea, em 1888, e a Lei de Terras de 1850:

Tudo indica, desde sempre, o vínculo estreito, e tipicamente brasileiro, entre apropriação da terra e aprisionamento do trabalho. Também não foi por acaso que a Lei Áurea (13/5/1888) tenha sucedido em poucos anos à Lei de Terras (18/9/1850). Ou seja, o Brasil podia sem perigo libertar os escravos, na certeza de que a exploração do seu trabalho poderia permanecer, de qualquer maneira, por mais alguns séculos, a serviço da minoria que por quinhentos anos se apoderou das terras, das matas, e das águas do país. Tendo fechado o acesso à terra para quem não tivesse meios de adquiri-la, tornava-se supérfluo manter a senzala35 (pag.74).

Todavia, é necessária cautela ao tecer comparações entre dois sistemas políticos e econômicos, tão diferentes quanto o do Brasil Imperial e o contemporâneo. É preciso atentar para o fato de que, na década de 1970, há um sistema capitalista solidificado, que vai ampliar sua influência a uma área, como a Amazônia. E os atores que irão participar desse processo, não serão os mesmos. O Estado dará clara preferência a empresas privadas e bancos internacionais, para a compra de terras. E, muitas famílias tradicionais viram suas posições, de poder ameaçadas com a entrada das multinacionais, no território amazônico36. Quanto às relações de trabalho, é, também, importante levar em consideração que a impossibilidade de

35 PLASSAT, Xavier. Abolida a escravidão? In. CERQUEIRA, Gelba Cavalcante. FIGUEIRA, Ricardo Rezende. PRADO, Adonia Antunes. LEITE COSTA, Célia Maria. Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: contribuições para sua análise e denúncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. p. 74.

36 Sobre a chegada das grandes empresas privadas na Amazônia, em especial, no Sul e Sudeste do Pará Cf. PEREIRA, Aírton dos Reis. A luta pela terra no Sul e Sudeste do Pará. Migrações, conflitos e violência no campo. 2013. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. OLIVEIRA, João Mariano. A esperança vem na frente – o caso SINOP. Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1982. (Dissertação de Mestrado em História). GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde. Política de Colonização no Brasil contemporâneo. Op cit. Entre outros.

109 possuir um trabalhador como propriedade, mesmo que “aparentemente negada” pelos donos de agropecuárias, mineradoras e carvoarias do Mato Grosso, ainda, apresenta um empecilho para aqueles que insistem em infringir a Lei. Vide as denúncias, em jornais, e do Ministério Público e, ainda, a interferência ostensiva da Igreja, representada, nesse capítulo, pela Prelazia de São Félix do Araguaia.

É interessante observar como, muitas vezes, essa Instituição recorre ao poder estabelecido, a saber, aos governos militares, em busca de auxílio para algum trabalhador que fugiu de uma situação de trabalho escravo ou degradante ou, até mesmo, para fazer com que as autoridades tomem ciência do que acontece, no estado. Declarações e denúncias, remetidas ao Ministério do Trabalho, à Polícia Federal, ao Presidente da República e, até mesmo, à Força Aérea Brasileira (FAB) são comuns no Arquivo. Ao denunciar a violência a que eram submetidos os trabalhadores, os padres, agentes pastorais e o Bispo da Prelazia de São Félix

tinham esperança de uma intervenção do Estado, a fim de investigar e punir os envolvidos37.

Mesmo a Carta Pastoral38, publicada por Pedro Casaldáliga, na iminência de sua Sagração a

Bispo, pode ser vista como uma forma de chamar a atenção da imprensa, do Estado e da sociedade civil para os problemas, enfrentados, na Amazônia.

Segundo Guimarães Neto

É a primeira vez que um discurso, com capacidade de ampla repercussão nacional e internacional, denuncia o trabalho dito “escravo” no Brasil; as condições subumanas a que eram submetidos os trabalhadores nas fazendas, morrendo aos magotes, sem nenhuma assistência à sua saúde, em áreas infestadas pelo mosquito da malária, além das práticas de endividamento que retinham os trabalhadores nas áreas dos desmatamentos e nas fazendas – a prática de aprisionamento por dívida – sob o poder das armas dos jagunços, empreiteiros (gatos), gerentes, “fiscais” e mesmo as polícias39.

É importante ressaltar que o então Bispo Casaldáliga, ao tornar pública as denúncias contra as grandes empresas que se instalaram, na região do Araguaia, tornou-se alvo de pistoleiros e recebeu diversas ameaças de morte. Tendo visto até mesmo, muitos de seus

colegas serem assassinados por conta do trabalho pastoral que realizavam40.

37 Sobre a relação entre a Igreja Católica e os trabalhadores rurais, durante o Regime Militar Cf. JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da crença. Ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970. Cuiabá: Carlini & Caniato Editorial; EdUFMT, 2007. Ver também. SCALOPP, Marluce. Práticas mediáticas e cidadania no Araguaia: O Jornal Alvorada. Cuiabá, MT; KCM Editora, 2012.

38 “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. 10 de outubro de 1971, São Félix do Araguaia.

39 GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política. Trabalhadores rurais, conflito social e medo na Amazônia. 1970-1980. In. Revista Mundos do Trabalho. Publicação eletrônica semestral do GT “Mundos do Trabalho” – ANPUH. v. 6, n. 11 (2014). p. 17.

110 Não é possível deixar de problematizar, também, a presença do Ministério do Trabalho, no território amazônico, especialmente no estado do Mato Grosso. Denúncias eram encaminhadas, tanto pela Prelazia de São Félix, quanto pelos Sindicatos. De 1968 a 1977, havia um total de 79 processos, apenas, na Comarca de Barra do Garças41. Entretanto, os casos, nem sempre, chegavam a julgamento, seja por conta da alegação de “falta de provas” ou pelo não comparecimento de partes importantes do processo, como o denunciante ou denunciado, nas audiências. A partir da segunda metade da década de 1980, especialmente, depois do advento da Constituição de 1988, a Justiça do Trabalho tornou-se um importante instrumento, na luta contra o trabalho escravo. Entretanto, durante a vigência do Regime Militar, no Brasil, esta Instituição teve sua atuação, bastante, reduzida; tendo sua atuação

relegada, apenas, a algumas capitais42. Mesmo com a promulgação do Estatuto do

Trabalhador Rural, em 1963, - que equiparava os trabalhadores rurais aos urbanos, no que diz

respeito ao pagamento de indenizações, aviso prévio, salário, férias entre outros43 - a Justiça

do Trabalho teve dificuldades em acompanhar os processos que ocorriam na área. Talvez, essa falta de atuação efetiva, seja explicada, por conta da falta de estrutura, apresentada pelas cidades de ocupação recente, onde a grande maioria das estruturas do Estado (tais como escolas, delegacias, tribunais e fóruns, e etc.) ainda estão se estabelecendo ou, nem foram implantadas44. Mas, não é possível, também deixar de levar, em consideração, a falta de interesse do Governo Federal em reconhecer e intervir, na situação degradante em que os trabalhadores migrantes viviam, nos estados que compõem a Amazônia, que, para o Estado, era uma das áreas mais promissoras para o desenvolvimento do país.

A presença das Polícia Militar e Polícia Federal, também, é percebida nos documentos, especialmente, em matérias de jornal. Entretanto, a percepção de sua atuação é, bastante complexa. Pois, enquanto a Polícia Federal é citada, na documentação, como uma Instituição que investiga algumas denúncias de casos de trabalho escravo, a Polícia Militar é vista como subordinada ao poder dos grandes proprietários de agropecuárias e mineradoras.

41 Arquivo Prelazia de São Félix. Pasta B08.1.5 – 1975 a 1977. Documento: B08.1.5.10 P1.4 a B08.1.5.10 P4.4. 42 É recente o interesse da historiografia sobre a importância da Justiça do Trabalho no Brasil. Consultar para essa importante discussão, os trabalhos da historiadora Ângela de Castro Gomes, aqui cito os mais recentes. Cf. GOMES, Ângela de Castro. PESSANHA, Elina da Fonte. MOREL, Regina de Moraes. Perfil da magistratura do Trabalho no Brasil. IN. GOMES. Ângela de Castro (coord.). Direitos e Cidadania. Justiça, poder e mídia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. GOMES, Ângela de Castro (coord.). Ministério do Trabalho: uma história vivida e contada. Rio de Janeiro CPDOC, 2007. GOMES, Ângela de Castro. SILVA, Fernando Teixeira da. A Justiça do Trabalho e sua História. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.

43 Cf. MARTINEZ, Wladimir Novaes. O trabalhador rural e a previdência social. 2 ed. São Paulo: LTr, 1985. 44 Cf. GOMES, Ângela de Castro. SILVA, Fernando Teixeira da. A Justiça do Trabalho e sua História. Campinas. SP. Editora da Unicamp, 2013.

111 Segundo Neide Esterci, a Polícia Federal, com frequência, desenvolvia ações que tinham, como objetivo, coibir a prática de trabalho escravo na Amazônia. Entretanto, nem sempre, as referidas ações eram levadas a julgamento. Em seu estudo sobre as reportagens, veiculadas pelo Jornal do Brasil, durante a década de 1970, a autora percebe uma mudança drástica na atuação da Polícia Federal que diminui suas ações de combate ao “trabalho degradante”. Segundo a autora:

A impressão que fica é de um certo descompasso entre instâncias do aparelho estatal. O fato é que os agentes da Polícia Federal desenvolviam ações e veiculavam informações que logo se tornariam muito incômodas para as instâncias superiores do governo. Por um lado, direta ou indiretamente, constituíam uma arma de pressão nas mãos de seus opositores45.

Já, a Polícia Militar segue uma linha de atuação em conformidade com os interesses das empresas proprietárias de terra. Encontram-se relatos nos quais trabalhadores que fugiram das fazendas e foram levados, de volta, por policiais militares, sob o pretexto de que não poderiam abandonar os postos de trabalho, porque haviam contraído dívidas com a fazenda e elas não estavam quitadas. Em relatório, direcionado à Prelazia de São Félix, o Padre José Maria Garcia Gil, Vigário de São Félix, MT, denuncia três soldados da polícia do estado, pelo assassinato de um trabalhador rural, em uma briga de bar e a forma como a Corregedoria estava lidando com o fato. Através da leitura da denúncia, fica claro o clima de medo e apreensão vivido pelos habitantes da cidade, no que diz respeito à polícia. Os desmandos tinham maior impacto na vida dos trabalhadores, mas a população, em geral, também, era afetada; com a certeza da impunidade, assegurada pelos donos do poder econômico que influenciam a esfera política das cidades.

É importante destacar que o Governo, apenas, marca sua posição, no tocante ao problema do trabalho escravo, quando, em 1995, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso reconhece a existência dessa prática, no país, depois de ser pressionado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e algumas Instituições e entidades nacionais, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a OAB. Com a criação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel (GEFM), em 1995, o Governo passou “a reconhecer a necessidade imprescindível de se ter uma estratégia repressiva, isenta às pressões das oligarquias locais”46, nos casos em que for constatada a presença de trabalho escravo. O autor, ainda, comenta as

45 ESTERCI. Neide. Escravos da desigualdade: um estudo sobre o uso repressivo da força de trabalho hoje. Rio de Janeiro, CEDI, Koinonia, 1994. p.15.

46 PLASSAT, Xavier. Trabalho escravo no Brasil, até quando?. In Cadernos Conflitos no campo, 2000 (p. 69). Disponível no site: http://www.cptnacional.org.br.

112 principais características fundamentais desse grupo (o comando único, a forma como os funcionários são escolhidos, o sigilo das operações e a integração da atuação dos Grupos Móveis com a Polícia Federal):

1) O comando único garante a unidade e agilidade na decisão e, sobretudo, tira a mesma do nível estadual, o qual, com frequência, tem demonstrado sua fácil exposição às influências dos próprios infratores.

2) A seleção dos funcionários resulta num corpo de fiscais dispostos e experientes, sempre escolhidos em estados diferentes daqueles que estão sendo fiscalizados, dispondo portanto da independência indispensável para enfrentar essa difícil problemática (inclusive em vista de sua própria segurança pessoal).

3) O sigilo total das operações inviabiliza o vazamento das informações do qual os infratores se tem sempre beneficiado para dissimular suas práticas criminais. O sigilo implica necessariamente no respeito absoluto ao efeito surpresa. Por isso, ao lançar uma fiscalização, não há como estabelecer contatos prévios com as autoridades locais ou estaduais.

4) Por fim, a estreita integração entre Polícia Federal e Ministério do Trabalho, além da eventual presença do MMA, em tese possibilita uma ágil ação de repressão, nos vários aspectos: administrativo, trabalhista, ambiental e, sobretudo, criminal47.

Coordenado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério Público do Trabalho e Emprego (MPTE), o Grupo Móvel de Fiscalização é integrado por auditores fiscais do trabalho, agentes e delegados da Polícia Federal e procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) e, em alguns casos, por membros da Procuradoria-Geral da República, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A ação mais imediata do Grupo, ao deparar-se com situações de “trabalho análogo a de escravo” é retirar os trabalhadores do local em que se encontram e lhes garantir os seus direitos trabalhistas. Depois são tomadas outras medidas, acionando outras instâncias, para as demais providências cabíveis, quando, no caso em que haja acusação penal. O MPTE, também, se encarrega da assistência emergencial aos trabalhadores, como alimentação, transporte aos seus estados de origem, quando o empregador não cumpre, imediatamente, com essas obrigações e das

providencias iniciais para o pagamento do seguro-desemprego48.

3.3 A Organização do trabalho: empresa (fazenda agropecuária), empreiteiros (“gatos”)