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Grupos sociais desterritorializados e reterritorializados e os “peões de trecho”.

Primeiramente, é preciso estabelecer que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), apenas, alcança aqueles indivíduos já instalados, em propriedades, sejam elas tituladas ou não, não abarcando os trabalhadores migrantes que se deslocam, em busca de trabalho temporário. Joanoni Neto e Castravechi, comentando uma pesquisa realizada sobre trabalhadores rurais que migraram para o território amazônico, a partir do Piauí, no ano 2000, afirmam que:

A grande motivação para a saída foi a necessidade de dinheiro para sustentar a família (43,3%) ou a falta de trabalho no local (52,2%). Os destinos mais visados são os estados do Centro-Oeste (55,6%), e as atividades realizadas estão em grande parte ligadas ao meio rural (83,9%), sendo que a cana-de-açúcar, no caso desses trabalhadores, é um grande atrativo (64%)21.

Mesmo tratando-se de uma pesquisa, realizada no início do século XXI, acredita-se que a motivação para o deslocamento em busca de trabalho não tenha sofrido grandes modificações, desde as décadas de 1970 e 1980. A falta de oportunidades, nos estados de origem, é um fator primordial para a migração, seja ela temporária ou definitiva. Segundo

Joanoni e Castravechi, “a marca dessa migração é a transitoriedade”22, ou seja,

desconectados de suas raízes, considerados, como números, pelos órgãos de estatísticas ou como mão-de-obra barata e de fácil descarte, pelos donos de empresas ou “gatos”, os migrantes, provenientes do Nordeste, serão considerados, como “desterritorializados”, por

21 CASTRAVECHI, Luciene; JOANONI NETO, Vitale. Da histórica dominação sobre vidas prescindíveis. As muitas faces da violência sobre trabalhadores migrantes no nordeste de Mato Grosoo do final do século XX. In: HARRES, Marluza; 2009; JOANONI NETO, Vitale (orgs). História, terra e trabalho em Mato Grosso. Ensaios teóricos e resultados de pesquisas. São Leopoldo: Oikos: Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2009. p. 116.

74 uma parte dos historiadores que se dedicam à análise da ocupação do território amazônico,

nas últimas três décadas do Século XX23.

Muitos trabalhadores rurais migrantes, em especial, aqueles empregados como mão-de-obra temporária, percorrem as principais rodovias do estado de forma contínua, transformando essas rodovias em verdadeiros corredores de pessoas que mudam constantemente de atividade. Outros, se fixam (algumas vezes de forma temporária), em determinado município ou povoado a fim de ocupar um lote de terras. Alguns autores denominam os migrantes de “trabalhadores desterritorializados”, isso porque quando os trabalhadores se deslocam para outro estado ou cidade (sejam acompanhados da família ou não), deixam para trás além de um lugar físico, um território, permeado de signos, tradições, experiências e imagens que ajudam a compor sua identidade. Logo, quando chegam ao seu local de destino, os migrantes precisam estabelecer novas relações e contatos com o novo território, experiências culturais que necessitam ser ressignificadas.

Seguindo a trilha de Deleuze e Guattari, os geógrafos Haesbaert e Bruce afirmam que:

[...] a vida é um constante movimento de desterritorialização e reterritorialização, ou seja, estamos sempre passando de um território para outro, abandonando territórios, fundando novos. A escala espacial e a temporalidade é que são distintas. No cotidiano, a dinâmica mais comum é passarmos de um território para outro. É uma des-reterritorialização cotidiana, onde se abandona, mas não se destrói o território abandonado24.

Em um primeiro momento podemos considerar que desterritorializar-se diz respeito ao ato de se deslocar de um território a outro, e o processo de reterritorialização é a chegada a um novo espaço e o esforço realizado ao estabelecer laços com esse novo território. Todavia, é possível pensar em reterritorialização quando falamos de trabalhadores rurais migrantes que ao chegarem a seu local de destino ali se estabelecem, constituindo relações de sociabilidade com o novo espaço e as pessoas que o habitam. Mas, quando analisamos os casos dos trabalhadores que vivem em constante movimento, passando de uma atividade a outra, os chamados “peões de trecho”, percebemos que

23 Cf. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde. Política de Colonização no Brasil contemporâneo. Op cit. PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no sul e sudeste do Pará. Migrações, conflitos e violência no campo. 2013. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. JOANONI NETO, Vitale. Fronteiras da Crença. Ocupação do Norte de Mato Grosso após 1970. Cuiabá: EDUFMT/Carlini & Caniato, 2007. Entre outros.

24 BRUCE, Glauco; HAESBAERT, Rogério. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. In: Revista GEOgraphia. n. 7, v. 4, s/p, 2002. Disponível em

<http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/viewArticle/74>, acesso em: 15 de janeiro de 2015.

75 apenas referir-se a eles como desterritorializados não abarca a complexidade da experiência vivida por essa parcela dos trabalhadores. Deleuze e Guattari nos auxiliam a melhor entender essa questão ao problematizar as diferenças entre o nômade e o migrante:

O nômade não é de modo algum o migrante, pois o migrante vai principalmente de um ponto a outro, ainda que este outro ponto seja incerto, imprevisto ou mal localizado. Mas o nômade só vai de um ponto a outro por consequência e necessidade de fato; em princípio, os pontos são para ele alternâncias num trajeto. Os nômades e os migrantes podem se misturar de muitas maneiras, ou formar um conjunto comum; não deixam, contudo, de ter causas e condições muito diferentes [...]25

Considerar os trabalhadores rurais que empregam sua mão-de-obra em sucessivos trabalhos temporários como “nômades” nos ajuda a entender como aplicar a esses atores o conceito de reterritorialização. Para Guimarães Neto, eles são:

[...] parte de grupos sociais desterritorializados que se movem de uma cidade, de um Estado ou de uma região a outra, perdendo continuamente as referências sociais de pertencimento a seu grupo de origem, ‘dentro e fora’ da fora da família, da cidade, da cultura, desterritorializando o próprio campo social26.

No estudo da reterritorialização de trabalhadores nômades, que se deslocam continuamente de um posto a outro, fica inviabilizado o uso de qualquer ideia de completude, como se o sujeito ficasse impedido de completar sua reterritorialização devido a falta de um território com o qual pudesse estabelecer relações. Seguindo a trilha indicada por Guimarães Neto, podemos inferir que, em alguns casos, o próprio campo social é desterritorializado criando uma série de obstáculos para sua integração ao novo espaço.

Os historiadores Joanoni Neto e Castravechi, analisando trabalhadores rurais, denominados “peões”, que se deslocaram para o Mato Grosso, chamam a atenção para os depoimentos recolhidos por eles nos quais os entrevistados descrevem experiência, vivenciada ao verem-se presos, no movimento circular dos trabalhos temporários, descrito por Guimarães Neto, no qual os migrantes se movem, continuamente, de um lugar a outro. Segundo o trabalhador:

A pessoa quando sai no trecho assim, acho que fica... eu acho que ele perde a vergonha pro mundo, mas com a família dele, toda vida ele tem vergonha de volta. Porque eu tô aqui, mas acho que não tenho mais corage de volta. Não fiz nada contra minha família, mas eu acho que não vô leva problema prá minha família mesmo27.

25Idem, p. 51.

26 GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Vira mundo, vira mundo: Trajetórias nômades. As cidades na Amazônia. Projeto História: revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. EDUC, 2003.p.49 – 69.

p. 60.

27 Depoimento. Centro de Pastoral para o Migrante, Cuiabá, 30 mar. 2007. Apud. CASTRAVECHI, Luciene; JOANONI NETO, Vitale. Da histórica dominação sobre vidas prescindíveis. As muitas faces da violência sobre trabalhadores migrantes no nordeste de Mato Grosoo do final do século XX. In: HARRES,

76 Ao descrever o que acontece quando o trabalhador “sai no trecho”, o entrevistado nos proporciona uma descrição de sua experiência de desterritorialização, onde ele perde sua referência de território e sente dificuldades em reterritorializar-se. Guimarães Neto, referindo-se às relações construídas entre os trabalhadores rurais migrantes ou nômades na Amazônia:

Chegam a construir leis e regras de sobrevivência, como se vivessem em uma rede social “descolada” do controle e da disciplina implementadas pelo Estado. Um dos exemplos é a linguagem específica que utilizam no grupo. Falam em códigos, e, muitas vezes, dizem para as pessoas que afirmam não entendê-los que consultem o dicionário. Lançam, deste modo, um desafio à compreensão de seu mundo simbólico. Acrescente-se a isso, um modo de existência que deve ser seguido por todos do grupo, podendo custar a própria vida se não obedecido28.

Ou seja, mesmo quando entram em contato com a dura realidade do “trecho”, onde vigoram leis e regras próprias, nas quais a punição pela desobediência pode ser a morte, no processo de reterritorialização, os trabalhadores rurais migrantes, elaboram estratégias que o permitem relacionar-se com o novo espaço para o qual se dirige.

2.5 Os projetos agropecuários e de colonização, e a importância das rodovias federais