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Capítulo III – O deslocamento de trabalhadores rurais do Nordeste para a Amazônia e as relações de trabalho em áreas com predominância de

3.4 O “trabalho escravo contemporâneo”.

Segundo Bhavna Sharma, da Anti-Slavery Internacional (ASI), a “escravidão por dívida” é a forma mais comum, nesse campo, na contemporaneidade. Segundo a autora, essa modalidade de trabalho forçado ocorre, quando:

[...] uma pessoa empenha sua mão-de-obra em troca do pagamento de comida e de remédios, por motivos familiares e etc. e, uma vez contraída a dívida, perde o controle sobre suas condições de trabalho ou sobre a remuneração que deveria receber, caindo em uma armadilha, em condições de escravidão. A quitação da dívida é extremamente dificultada pelo artifício de acrescentar despesas adicionais com comida e aluguel, de forma que o trabalhador mal tem acesso ao salário a que teria direito (pág. 40).

A autora, ainda, afirma, baseada em dados da Organização das Nações Unidas (ONU), que cerca de 20 milhões de pessoas, em todo o mundo, encontram-se impossibilitadas de

desligar-se de seus trabalhos, por conta de dívidas com o empregador59. Essa modalidade de

trabalho super-explorado, está intimamente, ligada à questão migratória60. Isso ocorre por que

muitos trabalhadores migrantes se encontram em posição vulnerável nas cidades para as quais se dirigem. Alguns, são atraídos por falsas promessas de “gatos”, que viajam por cidades do interior do Nordeste, em busca de mão-de-obra para ocupar os postos de trabalho abertos nas áreas que recebem investimentos federais. Outros, se deslocam por conta própria, seja por conta de notícias enviadas por algum “parente”, ou, porque tiveram algum contato com as propagandas veiculadas pelo governo e por empresas privadas, sobre as oportunidades de emprego nas áreas de ocupação recente, na Amazônia. De uma forma ou de outra, esses trabalhadores migrantes, distantes de suas famílias, veem como única forma de sobrevivência, as oportunidades apresentadas pelos empreiteiros. Quando “contratados”, os peões são presos a uma rede de dívidas.

As despesas de viagem, que, por lei, deveriam ser responsabilidade da empresa contratante, são a primeira corrente que liga o trabalhador aos chamados “empreiteiros” ou

59 SHARMA, Bravna. A Anto-Slavery Internacional e o combate ao trabalho escravo. In. CERQUEIRA, Gelba Cavalcante. FIGUEIRA, Ricardo Rezende. PRADO, Adonia Antunes. LEITE COSTA, Célia Maria. Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: contribuições para sua análise e denúncia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. p. 40.

60 No campo da historiografia encontram-se diversos trabalhos que relacionam o aumento do deslocamento populacional para o território amazônico e o recrudescimento das relações de trabalho por meio de violência física e simbólica. Cf. HARRES, Marluza; JOANONI NETO, Vitale. História, terra e trabalho. Ensaios teóricos e resultados de pesquisas. São Leopoldo: Oikos: Unisinos; Cuiabá: EDUFMT, 2009; GUIMARÃES NETO, Regina B. História, política e testemunho: violência e trabalho na Amazônia Brasileira. A narrativa oral da presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Confresa - Mato Grosso. In: História Oral: Revista da Associação Brasileira de História Oral, v.13, n.1, jan-jun. 2010. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de História Oral, 2010. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Vira mundo, vira mundo: trajetórias nômades. As cidades na Amazônia. Projeto História, São Paulo, PUC, n.27, p. 49-69, 2003.Entre outros.

125 “gatos”, figuras frequentes, nos depoimentos daqueles que conseguiram escapar. A falta de parte do pagamento ou, até mesmo, a total ausência desse, é uma das mais comuns reclamações dos trabalhadores, auxiliados pela Prelazia de São Félix do Araguaia. A troca do pagamento, pelo chamado “vale”, uma espécie de cupom que pode ser trocado por mercadorias, na mercearia da fazenda, também, é uma ocorrência frequente.

Encontra-se, na documentação analisada, depoimentos de empreiteiros que, quando questionados sobre a falta de pagamento a os trabalhadores, respondem que “não pagava os

peões em espécie porque eles iam gastar tudo com cachaça”61. A entrega de vales podem ser

trocados, por produtos fornecidos pelo chamado “barracão”, uma espécie de loja que fornece desde produtos de higiene a roupas e equipamentos de trabalho, era uma prática comum. Os preços dos produtos, nesses estabelecimentos, geralmente, aqui superfaturados. Encontra-se no arquivo, recibos de venda de um barracão, deste caso da fazenda Tamakavy, de outubro de 1971. Esses recibos são uma rica fonte de informação de como funcionavam os barracões e o tipo de produto que forneciam.

A maioria das notas se refere a compras de remédios, os mais comuns, sendo lactopurga (laxante), vitaminas, sorisal, entre outros. A existência desses recebidos, denominados como “compras de farmácia”, já fornece a prova de que, ao contrário do que era prometido aos trabalhadores, a fazenda não fornecia atendimento médico. Os trabalhadores eram responsáveis pela compra de remédios, sem qualquer orientação médica, muitas vezes, a preços bem acima do mercado. Os recibos de compra, ainda, apresentam a aquisição de vários outros produtos, tais como, facões, caixas de fósforo, roupas, redes e etc62. Segue abaixo alguns exemplos de recibos da Fazenda Tamakavy:

61 Arquivo Prelazia de São Félix do Araguaia. Digitalizado. Pasta: B08.1.2 – 1971. Documentos: B08.1.2.01 P1.2/P2.2. B08.1.2.02 P1.6/P6.6. B08.1.2.03 P1.19/P19.19.

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Figura 1 – Recibos de compras da Agropecuária Tamakavy

Como podemos observar através dos exemplos acima, os “barracões” das fazendas vendiam uma grande variedade de produtos, desde utilidades domésticas a roupas e remédios. Todas as compras realizadas nesses estabelecimentos eram descontadas no salário final dos trabalhadores.

Também, encontram-se no arquivo tabelas de controle de despesas de viagem do mês de junho de 1971. As maiores despesas são com alimentação, pensão e passagem. Cada trabalhador começa o serviço devendo uma média de C$140,00 ao empreiteiro, segundo o documento acima. Um grupo de dez trabalhadores terminou a viagem, devendo C$1.369,43. Esse valor total está demarcado, com um sinal de menos (-), o quer dizer que ele foi descontado, no saldo final que os peões receberam, pelo contrato. Ainda, são colocadas, como despesas de viagem, a compra de cobertores, cigarros e etc, caracterizadas, como “despesas de estrada”.

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Figura 3 – Verso da imagem anterior63

Joanoni Neto fala sobre o impacto que o endividamento tem na vida desses migrantes. Uma vez endividados, mesmo depois da libertação, muitos hesitam em voltar para suas famílias, pois não alcançaram o objetivo que buscavam: ganhar dinheiro o suficiente para ajudar os parentes, em seus estados de origem. É dramática a forma como os trabalhadores descrevem sua impossibilidade de retorno, por conta da situação atual em que se encontram. Muitos afirmam que é melhor continuar onde estão, pois não “querem dar trabalho à família”. A volta torna-se impossível, para os indivíduos, diante de uma concepção de tentativas por um novo trabalho que lhes rendessem um salto qualitativo, em suas vidas e de seus familiares. Como aponta este trabalhador ao retratar suas condições de trabalho, em uma situação:

Eu tô aqui há um ano e oito mês sem vê meu filho, minha mulher, minha filha, tá vivendo de favor. Não tá de favor porque minha família tá mais ou menos no Rio Grande do Sul, mas eu volta pra lá desse jeito com o saco nas costa? Volto não[...]64

63 Transcrição: Esta é a conta de despesa de viagem apresentada na chegada à fazenda, quando perminem que xxx(ilegível) de graça e por conta da fazenda.

64 Depoimento. Centro de pastoral para o Migrante, Cuiabá, 30 mar. 2007. Apud. CASTRAVECHI, Luciene Aparecida. JOANONI NETO, Vitale. Da histórica dominação sobre vidas prescindíveis. As muitas faces da violência sobre trabalhadores migrantes no Nordeste de Mato Grosso do final do século XX. In. HARRES, Marluza Marques. JOANONI NETO, Vitale. História Terra e Trabalho em Mato Grosso. Ensaios teóricos e resultados de pesquisas. São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá: EdUFMT, 2009.

129 Por conta do sentimento de fracasso, muitos trabalhadores se envolvem com “gatos”, sendo, repetidamente, resgatados ou fugindo de situações de trabalho análogo ao de escravo ou degradante. Esses indivíduos encontram-se às voltas com um ciclo de exploração e violência, no qual, o máximo de futuro que visualizam é o próximo trabalho, a próxima cidade. São chamados, também, de “peões de trecho”, pois, suas vidas se constituem em um incessante caminhar65.