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Considerações finais do capítulo 1

1. ÁGUA POTÁVEL: CONCEITO, CLASSIFICAÇÕES E IMPORTÂNCIA

1.7 Considerações finais do capítulo 1

Nesse primeiro capítulo, alguns objetivos específicos foram traçados com a intenção de facilitar a compreensão de alguns elementos que compõem a tese, que ora defendo, de que o reconhecimento do direito de acesso à água potável como direito fundamental é passível de gerar o dever de fornecimento de água nos serviços públicos de abastecimento.

Dentre esses objetivos, inicialmente destaco a definição de água potável, que à primeira vista (prima facie) parece ser tão simples, mas que se reveste de relevância e complexidade ao verificarmos que há serviços de abastecimento de água para dessedentação de animais que podem utilizar água não apropriada para o consumo humano. Portanto, no conceito que adoto de água potável o elemento central é a qualidade da água que deve ser própria para ser consumida pelo homem. Por outro lado, a água para consumo humano, grosso modo, compreende a utilizada na dessedentação, na alimentação, no asseio pessoal e na limpeza da casa e dos utensílios ou roupas, dentre outras utilizações.

Dessa forma a definição que formulamos é de que água potável é aquela que reúne as características necessárias para ser consumida sem importar qualquer risco à saúde e ao bem estar dos seres humanos, devendo apresentar determinada condição, relacionada à qualidade, própria para o consumo humano. Assim, deve estar livre de qualquer tipo de contaminação, e ser oriunda de uma fonte natural ou artificial, como nascentes, poços, estação de tratamento, dentre outras fontes.

A água potável natural pode ser encontrada sob as duas principais formas em que se encontra disponível para os diversos usos, ou seja, superficial ou subterrânea. Já a água potável oriunda de uma fonte artificial pode ser a obtida a partir de um processo de tratamento que incide sobre as

94 águas encontradas sob a forma de rios, lagos, aquíferos, lençóis freáticos, chuva, mares, neve, geada, granizo e tantas outras formas.

O processo de tratamento ou purificação das águas visando à potabilidade é uma necessidade devido à degradação que atingiu quase a totalidade da denominada água doce superficial existente no planeta. Essa degradação de rios e lagos ocorreu concomitantemente com o aumento da população mundial e com o consequente incremento das áreas agricultáveis e da produção industrial. Em consequência disso, as águas subterrâneas estão tendo uma real valorização pelo fato de que o tratamento dessas águas é menos oneroso, no entanto, as águas subterrâneas, ao contrário do que se imagina, vêm sendo atingidas por várias formas de poluição.

Quanto às águas subterrâneas, verificamos que o constituinte brasileiro se equivocou ao relacionar as águas subterrâneas como de domínio dos Estados e não da União, considerando a existência de águas subterrâneas que transcendem mais de um Estado ou de um País (águas transfronteiriças). No entanto, por esse tema não ser essencial para a investigação delineada na presente tese, entendi por não fazer o aprofundamento neste trabalho.

Nas diferentes classificações relacionadas às águas, apresentadas neste primeiro capítulo, a opção foi a de abordar sinteticamente aquelas que impactam ou se relacionam ao direito de acesso à água potável. Nesse sentido, as referências feitas aos múltiplos usos da água e à variada classificação que se adota, inclusive ao ciclo da água, são importantes para compreender e situar o elemento central desta investigação.

Cumpre assinalar que as águas ou os recursos hídricos em geral, pela reconhecida e fundamental importância que têm para o homem, devem receber a proteção do direito para assegurar às atuais e às futuras gerações a garantia da manutenção da vida e, para tanto, é necessário que sejam tratadas como um bem de uso comum de todos. Convém esclarecer que, quanto à terminologia utilizada, optei por não diferenciar as expressões “recursos hídricos” e “águas”, sendo que no decorrer deste trabalho elas serão empregadas como sinônimas.

95 Outro objetivo específico delineado nesse capítulo foi o de verificar o conceito de bem ambiental. Definido como microbem integrante do macrobem ‘meio ambiente’, passível de constituir-se em objeto de relações jurídicas ambientais, bem juridicamente protegido que visa a assegurar um interesse individual ou transindividual e, ainda, transgeracional, de que sejam titulares todos e cada um (do presente e do futuro).

É minoritária a posição doutrinária que tem o entendimento de que qualquer bem ambiental deve ser tratado como um bem difuso, cuja titularidade é transindividual e que não se enquadra mais na dicotomia estabelecida pelo Código Civil entre bens públicos e privados. Para essa corrente doutrinária, uma das características do “bem ambiental” é a de que esse é um bem ao qual as pessoas não se atrelam por meio do instituto da propriedade. A propriedade é baseada na ideia de usar, gozar, fruir e fazer o que se bem entende, ideia essa que não é possível aplicar ao ‘bem ambiental’, tanto pelo agente público, como pelo particular. Assim, para esses doutrinadores, o legislador, quando definiu na Constituição o bem ambiental como de uso comum do povo, estabeleceu um bem que não tem estrutura de propriedade e desatrelou um dos requisitos do instituto da propriedade, que é o uso, para vinculá-lo ao bem ambiental, estabelecendo, também, que o povo tem possibilidade de utilizá-lo, mas jamais de fazer dele uma estrutura de propriedade. No entanto, essa corrente doutrinária é minoritária e tem preponderado a defesa de ser o bem ambiental, quando de domínio público, espécie do gênero bem público de uso comum do povo.

O bem ambiental ‘água potável’ é considerado no ordenamento jurídico brasileiro um bem de domínio público, conforme a previsão do artigo 1º, inciso I, da Lei nº 9.433/1997. Nesse sentido, é correto o entendimento de que a água é bem ambiental que deve ser tratado como um bem de domínio público de uso comum do povo. Além disso, a água por ser um dos elementos do meio ambiente, um microbem que integra o macrobem ‘ambiente’, pode ser considerada de uso comum do povo por força do enunciado no artigo 225 da Constituição Brasileira que assim dispõe: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo (...)”.

96 A consequência principal da caracterização da água como bem de uso comum do povo é a garantia de que o acesso à água potável deve ser um direito protegido pelo Estado para que todos possam exercer esse direito, acessando água de qualidade e em quantidade adequada.

Assim, pela importância que tem a água potável e por ser um bem ambiental, ‘bem’ que deve ser protegido pelo direito para assegurar os interesses e carências das atuais e futuras gerações, entendo que deve ser tratada como um bem de uso comum de todos (frise-se das gerações do hoje e do amanhã), notadamente, por ser um bem ambiental passível de constituir-se em objeto de relações jurídicas, principalmente do direito subjetivo de acesso à água.

Quanto ao direito de propriedade sobre as águas, no ordenamento jurídico brasileiro vigorou até a Constituição de 1988 o entendimento clássico, oriundo do Direito Romano, de que as águas integravam-se ao próprio solo com o qual constituíam um todo, admitindo-se assim a categoria das águas particulares. No entanto, com a vigência das normas constitucionais que determinaram a dominialidade pública das águas e a definição da água e dos demais bens da natureza, no capítulo do meio ambiente, como bem ambiental, ocorreu a superação da legislação que previa, na classificação das águas, a espécie águas privadas.

Essa mudança significativa em relação à propriedade sobre os recursos hídricos deve-se, principalmente, ao estabelecimento da regra de que as águas são de domínio da União, conforme prevê o artigo 20, ou são de domínio dos Estados, de acordo com o estipulado no artigo 26, ambos da Constituição Brasileira. Além disso, essa definição da inexistência de águas particulares foi reforçada pela Lei que institui a Política Nacional dos Recursos Hídricos (Lei 9.433/97), no seu artigo 1º, inciso I, ao instituir que a água é um bem de domínio público. Entendo, dessa forma, que ficou nítida a opção do sistema jurídico brasileiro pela dominialidade pública dos recursos hídricos.

No entanto, essa interpretação de que a água por ser um bem ambiental não passível de apropriação por particulares e de que o Estado deve figurar apenas como o gestor desses recursos, que são de uso comum de

97 todos, encontra uma série de objeções jurídicas e práticas. Dentre as objeções, podemos referir a apropriação por particulares das águas como bens móveis, relembrando que é pacífica a doutrina no sentido de classificar como móveis as frações de água retiradas de um reservatório ou correntes, sendo que estas se autonomizam do regime daquelas aglomerações de água, ficando sujeitas à disciplina jurídica das coisas móveis, como ocorre com as águas engarrafadas. Há também outras objeções como: o processo de apropriação dos espaços comuns pelos Estados; as normas que autorizam a utilização mediante autorização ou concessão dos recursos hídricos e objeções práticas de exercício de poder sobre os recursos hídricos perpetrados pelos agentes do mercado. Portanto, entendo que essas e outras objeções devem ser, na maior medida possível, relativizadas para que a água potável, por ser um bem ambiental indispensável para a manutenção da vida, seja gerida como um bem comum, na acepção romana de “res communis”, jamais como “res nullius”.

Por fim, como último objetivo definido para o primeiro capítulo, analisamos, dentre as teses e teorias discutidas no meio acadêmico, duas alternativas à crise que atinge os bens ambientais.

A primeira é a teoria dos bens fundamentais de Luigi Ferrajoli, da qual parcialmente discordamos por entendermos demasiadamente positivista. Essa teoria aborda a questão da insuficiência da estipulação de direitos fundamentais, pelas constituições, para assegurar uma garantia adequada a todas as necessidades e aos interesses vitais, principalmente àqueles de tipo coletivo. A estipulação de alguns direitos como fundamentais nas atuais constituições não tem sido suficiente para garantir às pessoas a efetividade desses direitos. Nesse sentido, Ferrajoli entende que a efetividade de tais direitos depende de determinados bens, que devem ser alçados à condição de bens fundamentais, com proteções e garantias específicas. Assim, conclui que há necessidade de um disciplinamento autônomo e específico para os ‘bens fundamentais’, como a água, o ar, etc., porque esses bens garantem os correlativos direitos fundamentais, consistentes ora em expectativas negativas de não lesão (direitos de defesa), ora em expectativas positivas de prestação (direitos à prestação). Portanto, a nossa discordância em relação à teoria dos bens fundamentais é de que não há necessidade de instituir um rol de bens

98 que devam ser especialmente protegidos, bastando o reconhecimento substancial daqueles bens que são realmente fundamentais.

A outra alternativa analisada, com a qual concordo integralmente, trata de considerar os bens ambientais, notadamente a água potável, como patrimônio comum da humanidade. A justificativa utilizada para considerar a água bem patrimonial comum baseia-se no fato de que o uso e a conservação da água são resultado da história humana, com seu legado de conhecimento, práticas, instrumentos e organizações. Portanto esse é um patrimônio de todos, de toda a humanidade, sendo imprescindível que continuemos a considerar a água potável como patrimônio comum da humanidade para que as gerações do presente e do futuro tenham a possibilidade de exercer o direito de acesso a esse bem (tema do próximo capítulo) que é fundamental para a manutenção da vida.

99 CAPITULO 2