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É por isso que quando nos tornamos parceiros sociais de crianças loucas, deixamos de ser terapeutas de enquadres pré-formados. Todos os nossos grãos de subjetividade ganham relevo. Pequenas habilidades, pequenos talentos, gostos desconhecidos. Fazem a diferença a cor dos olhos, o jeito dos cabelos, o tom de voz, os defeitos físicos. Isso tudo que costuma ficar nos bastidores do nosso potencial terapêutico. Aparecem as lacunas de nossas formações, a indisciplina dos saberes acumulados, as fronteiras com outros conhecimentos. Ficamos expostos ao mais cru e mais sofisticado de nós mesmos. Somos multiplicados sem perder o que somos. Ganhamos assim o poder de fabricar territórios expressivos a partir das nossas cores, e das cores que adquirimos na química com nossos pares e ímpares (ANDRE, BASILE, 1999, p. 118-119).

Este estudo objetivou identificar como ocorrem as práticas de cuidado para as crianças e adolescentes inseridos nos CAPSi que apresentam intenso sofrimento psíquico. Objetivou também identificar de que forma os profissionais compreendem a experiência do intenso sofrimento psíquico nas crianças e adolescentes que acompanham e também evidenciar as principais necessidades e demandas dos sujeitos em atendimento nos CAPSi a partir de diferentes perspectivas: a dos familiares/responsáveis e dos técnicos que atuam nas instituições. Ainda, se propôs, a descrever os modos com que se organizam as ações de cuidado, bem como as necessidades e percepções dos familiares que frequentam os serviços.

Ainda que se considere os limites deste estudo em relação ao recorte realizado para a definição dos CAPSi participantes, bem como do número de sujeitos envolvidos na pesquisa, considera-se que os objetivos propostos foram respondidos.

Ao apresentar e discutir as principais necessidades dos sujeitos atendidos nos serviços que se encontram em situação de intenso sofrimento psíquico a partir da percepção dos trabalhadores e dos familiares, evidenciando cada faceta e as diferenças entre estas percepções, o estudo possibilita a proposta do redimensionamento das ações dirigidas aos usuários dos CAPSi, bem como problematiza a construção das ações que são atualmente oferecidas, como por exemplo, o expressivo número de atendimentos individuais, as práticas constantemente realizadas no interior dos serviços e a baixa frequência, no geral semanal, destinadas às situações de grave sofrimento.

Ainda, ao referir as principais necessidades dos familiares das crianças e adolescentes atendidos, revela as múltiplas perspectivas da problemática do sofrimento

psíquico e as possibilidades de articulação familiar e comunitária para a garantia do cuidado e da atenção.

Acredita-se que ao revelar as dificuldades familiares, ampliam-se as miradas sobre o tema, na medida em que se entende que o sofrimento não é somente do sujeito, mas de todo o grupo com quem convivem, aludindo principalmente à solicitação dos familiares em participar mais ativamente na condução do cuidado.

Ao detalhar as ações realizadas nos CAPSi tanto para as famílias como para os usuários atendidos evidenciou-se também as dificuldades encontradas pelos trabalhadores dos serviços para o desenvolvimento de ações compartilhadas de cuidado: a extensão territorial, o grande número de usuários atendidos e as dificuldades de trabalho intersetorial são questões que têm comprometido o trabalho em seu objetivo de produzir aumento da circulação e da participação social das crianças e adolescentes.

Nota-se ainda que os profissionais, mesmo com situações por vezes adversas para a realização do trabalho, têm podido criar estratégias para a ampliação da atenção às crianças e adolescentes, bem como de suas famílias, cita-se como exemplo o oferecimento dos espaços de convivência e de hospitalidade-dia como intervenções que visam garantir espaços mais protetivos para as situações de crise.

Entende-se também que o estudo oferece discussões e elementos para reflexões ao problematizar junto aos técnicos dos serviços seus entendimentos acerca da problemática do intenso sofrimento psíquico em crianças e adolescentes. Ainda, revela sob quais paradigmas de saúde e de cuidado se opera neste cenário da atenção em saúde mental infantojuvenil no SUS.

Concretamente foi evidenciado um relevante descompasso entre aquilo que os técnicos enxergam por demandas e o que os sujeitos que procuram os serviços referem necessitar. A essa constatação, questiona-se em que medida estes sujeitos, envolvidos na dimensão do cuidado têm produzido efetivamente trocas, ou seja, como os familiares têm sido escutados pelos profissionais que estão nos serviços?

Pelo exposto nota-se que a dimensão dada às necessidades mantém-se intrinsecamente relacionada com as perspectivas que se adotam. Ao tratarem das necessidades das crianças, adolescentes e suas famílias, os técnicos dos CAPSi falam de suas dificuldades de articulação do cuidado e ao tratarem das dificuldades de seus filhos, os familiares tratam também de suas dificuldades para o exercício e manuntenção do cuidado. Estas perspectivas revelam, mais uma vez que a experiência do sofrimento

não se restringe à um sujeito; quando sofre uma criança ou adolescente, sofrem todos: sua família, sua comunidade, e mesmo o serviço que o acolhe.

Na medida, portanto, em que o entendimento sobre o sofrimento pode ser ampliado para uma rede de sujeitos, as estratégias de cuidado devem assim, comportar a entrada e as necessidades de outros participantes e o cuidado, por conseguinte, multiplica-se. O desafio de lidar com as famílias não apenas como meros informantes ou detentores da tarefa irrevogável de cuidar de um ente adoecido, pede que se una à elas, considerando-as na posição de atores do cuidado, de si e do outro na perspectiva de garantir o potencial de agenciamento que possuem, para junto com os serviços poderem trabalhar para a construção da cidadania das crianças e adolescentes e de si próprios no sentido do respeito às suas diferenças e singularidades.

Por fim, salienta-se que, na medida em que o estudo se delineia a partir da contribuição dos técnicos e dos familiares, aumenta-se o grau de problematização da questão em estudo assim como revelam-se novas dimensões a serem abordadas em estudos futuros.

Dentre novas questões de estudo apontam-se a possibilidade de aproximação com outros atores em jogo neste campo: profissionais com formação em nível técnico, crianças e adolescentes atendidos e coordenadores dos serviços, bem como parceiros de trabalho intersetorial.

Em tudo quanto olhei fiquei em parte.

Com tudo quanto vi, se passa, passo. Nem distingue a memória Do que vi, do que fui.

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