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2. INTRODUÇÃO

2.4 Os processos de cuidado em saúde mental e a participação familiar

A discussão sobre o acesso das crianças e adolescentes em intenso sofrimento psíquico no cotidiano dos CAPSi e, mais que isso, o fortalecimento de suas possibilidades de continuidade no acompanhamento, são questões prioritárias que necessitam estar presentes na realidade dos serviços, como também descritas na produção de conhecimento na área. Tais questões podem tratar de dimensões da organização da atenção bastante conectadas ao que atualmente tem sido discutido no campo do cuidado em saúde. Para a compreensão destas dimensões torna-se necessária a revisão de algumas contribuições feitas pelo movimento da Reforma Psiquiátrica que, operando no sentido da transformação das lógicas da assistência em saúde mental, buscou produzir rupturas não somente nos modos administrativos e técnicos de se assistir a experiência da loucura, como também buscou a radical transformação das produções subjetivas que ocorrem nas relações entre o sujeito suposto detentor do conhecimento técnico científico e aquele sujeito que apresenta suas necessidades de saúde. Nesse sentido, buscou-se alinhar as demandas de saúde mental, a partir da possibilidade de singularização do cuidado, entendido aqui também como produção de processos de construção de autonomia para os sujeitos atendidos (TORRE; AMARANTE, 2001; MERHY, 2007).

Na medida em que se propõe como conduta técnica e ética no interior dos serviços de saúde mental, a aposta na construção de processos de singularização das demandas e também das ofertas a serem construídas, instauram-se conexões que produzem processos de cuidado pautados naquilo que se efetua nas relações. Os CAPSi nesse jogo, podem prescindir de oferecer um quadro predeterminado de ações e programas, para então pautarem suas intervenções nas possibilidades construídas junto com os sujeitos das relações, aqui entendidos como as crianças e os adolescentes atendidos, suas famílias e a comunidade. Assume-se destarte, o caráter político e emancipatório que podem deter as práticas inseridas nestes locais (MERHY, 2007; BALLARIN; FERIGATO; CARVALHO, 2010).

Na garantia de que esta dimensão do cuidado se estabeleça, se faz também a possibilidade de construção partilhada do acompanhamento e de produção de saúde, favorecendo tanto a participação dos sujeitos como a criação de sentidos para o que se realiza. Toma-se o conceito de cuidado, enquanto processo relacional no qual há um tensionamento entre as forças presentes no sentido da atualização das possibilidades

entre as pessoas envolvidas, em que a transformação dos sujeitos envolvidos ocorre mutuamente. São acontecimentos com determinações macro e micropolíticas, que envolvem disputa de forças das mais variadas ordens: sociais, políticas, tecnológicas e ideológicas. Como resultados destes encontros podem-se depreender duas formas principais: produção de saúde e ampliação da vida, ou então assujeitamento, violação e aniquilamento (MERHY, 2007).

Considerar a perspectiva da produção de cuidado enquanto uma relação múltipla que se estabelece entre todos os envolvidos, é conectar-se a uma ideia de produção coletiva de sentidos para as demandas, desejos e necessidades não somente para as populações em sofrimento psíquico, mas também para toda comunidade envolvida. Implicar-se coletivamente na produção dos modos de cuidado que resultem em expansão das vidas, significa estar eticamente comprometido com o mandato social de produção de cidadania e de mais saúde, principalmente no que se refere aos profissionais das equipes dos CAPSi, dos quais,

as práticas cuidadoras em saúde podem ser resumidas como o exercício dos saberes profissionais no encontro com o usuário das ações e serviços de saúde. Esse é um lugar de aposta, não de convicções ou certezas, mas de oposição às posturas reativas à mudança. Uma tomada do pensar-sentir- querer será sempre uma aposta, requer um trabalho de educação no seu sentido mais forte: não será um trabalho de informação e nem de acomodação, será uma convocação ao aprender, um aprender de si e um aprender das novidades de si, assim como dos entornos e da criação (CECCIM, 2008).

Assim, os CAPSi, enquanto locais de excelência e de ativação das políticas e diretrizes da reforma psiquiátrica e também unidades base do fortalecimento da reabilitação psicossocial (ELIA, 2005), detêm a potência para a produção de relações de cuidado cunhadas na emancipação dos sujeitos, mesmo daqueles que por vezes se mostram em intensas dificuldades. Sua função organizadora pode residir na capacidade de produzir cidadania para as crianças e adolescentes por vezes afastadas de outros locais de sociabilidade.

Nesta direção como aponta Saraceno (1998), a função dos serviços, constituídos na perspectiva da reabilitação psicossocial é a de ser mediador entre a pessoa em sofrimento e a sociedade, no qual, a defesa técnica e política dos profissionais deve se direcionar para a

Construção de espaços onde a organização dos serviços seja uma garantia permanente, que esses serviços sejam fábricas de produção de sentido. Isso não é somente a melhor terapia para os psicóticos, mas é a melhor forma de manter despertas as pessoas, os profissionais e pacientes. É uma arte que está obrigada, todos os dias, todos os minutos, a produzir sentido. Ao invés de serem sentidos produzidos por outras pessoas. Nós não queremos ser reprodutores de sentido, mas sim produtores de novos sentidos. Esse é um exercício onde está a terapia, a ética, a política, é uma grande vocação (p.31).

Esta construção de relações de cuidado inventivas e emancipatórias, quando imersas no campo em estudo determina a importância da dimensão do cuidado enquanto ação destinada também às famílias. Importância esta duplamente estabelecida: por se tratarem de sujeitos em experiência de sofrimento psíquico, e por serem crianças e adolescentes. Reconhecidamente no campo da saúde mental assume-se a importância do cuidado com o familiar, principalmente a partir das mudanças na qualidade da assistência após o movimento da Reforma Psiquiátrica e a adoção da perspectiva da Reabilitação Psicossocial enquanto condutora das ações nesse âmbito, em que a família e a comunidade são entendidas como um fundamental território de trocas sociais e de produção de valores. Todavia, embora amplamente descrito nas políticas e propostas de saúde mental, a atenção às famílias no cotidiano dos serviços ainda apresenta algumas carências. De fato, denota-se a dificuldade de entendimento e de articulação dos familiares como verdadeiros protagonistas das ações e das intervenções realizadas no cotidiano dos serviços de saúde mental (CAMPREGUER, 2009; DOMBI-BARBOSA, 2009; DUARTE, 2007; KINOSHITA, 2001).

Logo, compreende-se que a possibilidade da construção do acesso, permanência e vinculação das famílias e dos usuários nos serviços de saúde mental, exige mais que a obrigatoriedade de sua presença, mais que a prescrição das intervenções. Demanda jogo de relações, produção de cuidado e construção de sentidos partilhados para as ações que se planeja realizar.

Verifica-se, portanto, a partir dos estudos da literatura da área, que há questões a serem elucidadas acerca das possibilidades de atendimento e cuidado oferecidas aos usuários – crianças e adolescentes em intenso sofrimento psíquico – pelos CAPSi.

Diante do exposto, algumas questões são relevantes para o aprofundamento da discussão acerca da efetividade das políticas públicas de saúde mental infantojuvenil, como por exemplo: os equipamentos existentes deveriam responder à população gravemente comprometida? Qual a opinião dos técnicos dos serviços acerca da premissa

de que os CAPSi devem receber e responder pelo tratamento desta população em intenso sofrimento psíquico? Como os CAPSi têm se organizado para atender às demandas dos usuários em intenso sofrimento psíquico? Como as famílias dos usuários se inserem nos serviços e quais das demandas trazidas por elas são respondidas pelas unidades?

Pelo exposto, apresenta-se esta pesquisa que pretende abordar a seguinte questão de estudo: O que tem sido oferecido pelos equipamentos públicos de saúde mental infantojuvenil à população em intenso sofrimento psíquico enquanto estratégias de cuidado?

Toma-se como ponto de partida o questionamento realizado no bojo do movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil - da qual a presente pesquisa se remete e objetiva tecer considerações – a respeito do mandato social presente na função dos técnicos de saúde. A que movimento respondem? Pelo que trabalham? Suas competências técnicas estão a serviço de qual projeto de ação em saúde? (PITTA, 2001).

Realiza-se esta transposição de questionamentos para o campo da pesquisa, e ainda mais, para o campo da pesquisa em saúde, que se torna relevante no sentido de nortear as ações e conduzir a percursos éticos no campo experimentado.Tais questionamentos constituem-se assim, não propriamente como objetivos descritos das produções científicas no campo, mas antes, devem ser o condutor ético político daqueles que se colocam à tarefa de conjutamente com grupos, instituições, sujeitos e coletividades construir pensamentos, teorias e percepções sobre os atuais caminhos da saúde pública nacional.

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