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Para onde os resultados desta pesquisa apontam, sugerem aprofundamentos e perspectivas? É o que procuro responder nestas considerações finais.

Privilegiando a mediação de textos escritos e imagens, analisei sentidos produzidos em aulas que compuseram uma temática abrangente em torno da gravitação newtoniana.

Envolvendo movimentos discursivos diversos, a leitura de textos aparece como espaço de significação, e não apenas instrumento de um processo que ocorre em outra instância, paralelamente. Na constituição deste espaço de significação que é a leitura, as análises permitem destacar a criação de situações que privilegiaram e valorizaram a relação dos estudantes com os textos, deslocando a significação e a memória de um espaço, o da física escolar, que, tradicionalmente, tem produzido uma identificação entre a voz do texto e a voz do professor (Silva, 1997; Silva e Almeida, 1998), dificultando ou impedindo a explicitação de sentidos produzidos nas relações dos estudantes com os textos.

A análise dos processos discursivos em torno da síntese newtoniana revelou que textos e imagens podem funcionar produzindo sentidos que compõem uma perspectiva ampla de formação cultural pela educação científica, incluindo a própria prática de leitura nesta formação. Os textos são importantes na escola porque faltam no cotidiano dos estudantes; as imagens, pelo motivo inverso, porque o constituem implacável, sutil e massiçamente. Por isso textos e imagens, suas leituras, suas condições, fizeram parte do currículo que se configurou nas práticas que compuseram a unidade de ensino.

Como se pode sintetizar a produção dos sentidos cujas análises apontaram indícios de constituição? Tenho chamado a este conjunto de aulas de unidade, enquanto as análises parecem descrever uma grande dispersão. Que unidade pode ser configurada a partir desses sentidos?

Nas leituras dos textos de jornais e do texto do PSSC, apontei a produção de sentidos sobre alguns aspectos da produção do conhecimento científico e tecnológico num discurso

que possuía como referente o próprio conhecimento científico. Esses sentidos foram produzidos simultaneamente a um trabalho que incorporou temas da física dos séculos XX e XXI. Falou-se da ciência de hoje, cuja marca temporal presente ecoou uma ampla gama de informações e sentidos veiculados pelas mídias. Falou-se da ciência de ontem. E neste falar, também foi significada a ciência de hoje, contribuindo para o sentido de sua historicidade.

Por outro lado, a produção do conhecimento científico também foi significada, implicitamente, quando o objeto do discurso era o mundo natural, principalmente na leitura do texto de Feynman. Faço algumas retomadas para aprofundar essa questão.

Como coloca Orlandi (1996), “a vida é função da significação e dos gestos de interpretação cotidianos, ainda que não sentidos como tal” (p. 10).

A dispersão de sentidos observada a partir das análises pode ser interpretada como resultado de um contexto em que as diferentes histórias de vida, interesses, expectativas, memórias dos estudantes tiveram espaço para fazer funcionar suas interpretações, suas leituras. Contexto que parece ter ligado a sala de aula à cotidianidade, à vida dos estudantes; uma cotidianidade da qual a ciência e a tecnologia fazem parte.

Na perspectiva da AD, sentidos são produzidos em relação a outros sentidos, num processo envolvido na tensão paráfrase/polissemia. As interpretações, leituras, dos estudantes se constituíram tanto em relação a discursos inscritos em formações discursivas da física, quanto em relação a discursos inscritos em outras formações discursivas. Mais do que isso, puseram essas formações discursivas em contato.

A compreensão da especificidade dessa relação entre sentidos, e entre formações discursivas, aponta para a consideração das condições de produção do conhecimento científico como parte fundamental do conhecimento escolar.

Retomo Lopes (1999), onde encontro elementos para uma determinada compreensão desta relação, quando a autora diz que,

“(...) assim como não podemos conceber a cultura como um todo homogêneo e uniforme, não se pode compreender os diferentes saberes sociais como reflexos de uma mesma matriz epistêmica ou de uma mesma razão totalizante e totalitária.” (p. 104)

E continua,

“Neste sentido, o processo de constituição do conhecimento escolar ocorre no embate com os demais saberes sociais, ora afirmando um dado saber, ora negando-o; ora contribuindo para sua construção, ora se configurando como obstáculo a sua elaboração por parte dos alunos. Dentre os diferentes saberes sociais, o conhecimento científico e o conhecimento cotidiano se mostram como dois campos que diretamente se inter-relacionam com o conhecimento escolar nas ciências físicas, mas não sem contradições. Primeiro, porque o conhecimento escolar, por princípio, se propõe a construir/transmitir aos alunos o conhecimento científico e, ao mesmo tempo, é base da transmissão/construção do conhecimento cotidiano de uma sociedade. Segundo, diretamente associado à questão anterior, porque o conhecimento cotidiano e o conhecimento científico têm entre si uma nítida ruptura que, frequentemente, é mascarada pelo conhecimento escolar.” (p. 104)

Se é fundamental a participação do estudante no espaço discursivo escolar, é preciso considerar que o discurso dos estudantes se inscreve numa história e é constituído também “fora” da escola. Nesta instituição, este discurso é posto em contato com outro discurso, o científico. É uma determinada maneira de relacionar esses discursos que configura o espaço discursivo escolar e os conhecimentos que ali são produzidos.

No caso da gravitação e da mecânica newtonianas, este modo de significar o mundo natural constituiu-se, historicamente, como vimos, em oposição a outro discurso que separava o mundo celeste do mundo terrestre. Este discurso, no entanto, tratava-se de uma extraordinária e coerente teoria física e cosmológica, a filosofia aristotélica. E, como afirma Koyré, esta

“não é nem um prolongamento grosseiro e verbal do senso comum, nem uma fantasia infantil, mas sim uma teoria, isto é, uma doutrina que, partindo, bem entendido, dos dados do senso comum, os submete a uma elaboração sistemática extremamente coerente e severa.” (p. 21)

Ainda segundo Koyré, é a matematização (geometrização) do espaço e da matéria, o ponto fundamental desta ruptura, implicada nos trabalhos de diferentes cientistas, entre eles, Kepler, Descartes, Galileu e Newton. Sobre as idéias de Galileu, o autor diz:

“A forma geométrica é homogênea à matéria: eis porque é que as leis geométricas têm um valor real e dominam a física. Eis por que é que, tal como nos diz Galileu numa passagem justamente famosa de O

Ensaiador, é uma linguagem matemática que a natureza fala, uma

linguagem cujas letras e cujas sílabas são triângulos, círculos e rectas. E é por isso que é nessa linguagem que há que a interrogar: a teoria matemática precede a experiência.

“Esta concepção implica, isso é evidente, uma concepção totalmente nova da matéria: já não será suporte do devir e da qualidade, mas sim, pelo contrário, suporte do ser inalterável e eterno. Poder-se-ia dizer que a matéria terrestre é de ora em diante promovida ao nível celeste. E assim vimos a ciência nova – física geométrica, geometria física – nascer nos céus para descer à terra e tornar a subir aos céus.” (p. 352-3)

Os resultados das análises apontam um movimento discursivo implicado na construção de um outra realidade, a realidade da física, diferente da realidade do senso comum. Construção, eu diria, discursiva, pois, “é no discurso que o homem produz a realidade com a qual ele está em relação” (Orlandi, 1996, p. 39).

“Do ponto de vista da significação não há uma relação direta do homem com o mundo, ou melhor, a relação do homem com o pensamento, com a linguagem e com o mundo não é direta assim como a relação entre linguagem e pensamento, e linguagem e mundo tem também suas mediações. Daí a necessidade da noção de discurso para pensar essas relações mediadas.” (Orlandi, 1996, p. 12)

Percebemos, a partir das análises, o peso da concretude dos objetos e situações da cotidianidade dos estudantes, incluindo objetos e situações no espaço cósmico.

“Com efeito, no mundo real – o mundo físico –, não há retas, nem planos, nem triângulos, nem esferas; os corpos do mundo natural não possuem as formas regulares da geometria.” (Koyré, 1986, p. 350-1) Mas os resultados apontaram também para movimentos discursivos em direção a uma abstração física, produzidos na mediação do texto de Feynman quanto inserido num determinado conjunto de atividades precedentes.

O discurso da abstração da física na escola não luta contra uma teoria, ainda que fundada em dados do senso comum, mas contra imagens e experiências (corpóreas e visuais) que fundam o próprio senso comum.

Os discursos dos estudantes parecem ter sido guiados por ontologias assistemáticas, “imagens de natureza”, ou seja, “nossas concepções a respeito das entidades que constituem a natureza, suas propriedades e suas inter-relações” (Abrantes, 1998, p. 9)1, que não estão organizadas num sistema filosófico coerente, mas ainda assim, imagens da natureza, a partir das quais eles significam o mundo, a realidade. Imagens formadas numa cotidianidade que também tem sua história e que é construída numa sociedade da qual a ciência e a tecnologia fazem parte.

Mas é o sentido do outro que é preciso destacar como efeito fundamental deste discurso escolar, caracterizando-o por uma heterogeneidade constitutiva peculiar: a que relaciona duas formações discursivas, e que produz reciprocamente a diferença de ambos os discursos, re-significando nossa relação com o senso comum como a única forma de conceber a realidade, e, simultaneamente, o conhecimento científico como extensão dessa forma única de concebê-la. O sentido implícito deste discurso escolar é o de que o real não é um todo único, e mais, que esta pluralidade, diversidade do real é produção humana, associada à produção social do mundo em que vivemos. O que está em jogo são ideologias diferentes, pois sem ideologia não há realidade.

Ao falar de movimentos discursivos do concreto (cotidiano) para o abstrato (científico e, em última instância, matemático, no caso da física), estou falando implicitamente das condições de produção do conhecimento científico.

Pudemos ver a relevância das imagens nesses movimentos. Boa parte das imagens do espaço cósmico a que estamos acostumados a assistir em filmes, na TV, a língua da realidade2, implicam numa ampliação da escala da nossa realidade abarcando situações que incluem o espaço cósmico.3

1

Sobre esta noção, o autor acrescenta: “Uma imagem de natureza possui um caráter difuso, incorpora de forma assistemática um grande número de idéias e intuições das quais não se tem muitas vezes consciência, ou não se consegue traçar as origens. Diferentes imagens podem superpor-se, havendo uma tolerância com respeito a inconsistências” (Abrantes, 1998, p. 12).

2

Expressão utilizada por Almeida, Milton. A educação visual da memória: imagens agentes do cinema e da televisão. Pro-posições, 10, n. 2 (29), 1999, p. 9-25.

3

Note-se como as imagens do espaço cósmico do filme 2001: Uma odisséia no espaço nos incomodam, parecem irreais, quando são fisicamente “corretas”, enquanto da maioria dos outros filmes como Asteróide,

A experiência visual dos estudantes, vivendo na “era espacial”, ampliou estes dados do senso comum para abarcar situações, objetos no espaço cósmico. O senso comum dos estudantes é diferente do senso comum de Aristóteles. Para Aristóteles, seria difícil pensar um objeto pesado (grave) flutuando. Para os estudantes, não, porque vivem numa cultura cuja experiência imediata é composta e mediada por outros elementos. Os discursos mediados por textos e imagens sobre o espaço cósmico trouxeram para a sala de aula esta experiência imediata contemporânea dos estudantes.

A importância de se levar em conta o fato de os estudantes de hoje viverem em contato com uma ampla variedade de imagens do espaço cósmico, ao se pensar o ensino da gravitação foi apontada por Noce et al. (1988).

“As crianças vêem a Lua no céu e talvez tenham observado seu movimento e suas fases. Ela está longe no espaço mas alguns homens chegaram lá usando naves espaciais e, através de verdadeiras ou fantásticas histórias, as crianças adquiriram o conhecimento de que na Lua não há ar para respirar e as coisas têm um peso menor. Durante as discussões em sala de aula (...) as crianças pareceram estar muito certas dessas noções, como se elas tivessem pessoalmente viajado para a Lua.” (p. 66)

“Desde que as crianças tenham visto imagens na televisão de astronautas flutuando em suas espaçonaves, elas generalizaram tal flutuação como sendo o estado natural para todos os mundos pelo espaço, incluindo a Lua. O mundo da Terra é especial e diferente: somente aqui existe ar e a queda é um movimento natural. Na Lua, num mundo espacial, as coisas não caem naturalmente mas flutuam.” (p. 66)

Os autores vão notar que os fatos “experimentais” conhecidos pelos alunos sobre a gravidade não se restringem aos presenciados na Terra.

“A maioria das crianças entretanto parecem pensar que a gravidade pertence à Terra. (...) Assim, parece que a Terra e a Lua (no sentido de ser um lugar diferente da Terra) são pensados como dois mundos que diferem quanto ao fenômeno da gravidade, mais ou menos do mesmo modo como era pensado pelas pessoas na antigüidade, antes da introdução de uma teoria física unificadora da gravitação por Newton.”

As situações cotidianas que compõem a base do senso comum dos estudantes fazem parte de uma história da qual a ciência e a tecnologia também participam, contribuindo para a construção do nosso mundo cultural, social.

No entanto, a ruptura com o conhecimento cotidiano implicada na constituição do conhecimento científico passa por uma abstração que requer a linguagem matemática. Nas análises apresentadas, apontei possibilidades de significação da matemática como parte da produção do conhecimento científico.

É preciso lembrar que esta unidade de ensino foi elaborada e desenvolvida no início do ano letivo, com classes de primeira série. Os resultados apresentados apontam para um movimento discursivo que poderia incorporar gradativamente a linguagem matemática na perspectiva de continuidade e aprofundamento dessa abstração.

Estas considerações, baseadas nos resultados que apresentei, se alinham à perspectiva da consideração da relação constitutiva entre linguagem e conhecimento. E é neste sentido que posso apontar como eixo central que dá unidade ao conjunto das aulas, do ponto de vista discursivo, o trabalho, explícito e implícito, sobre as condições de produção do conhecimento científico; trabalho no qual os saberes cotidianos dos estudantes assim como o espaço para que possam expressar esses saberes são imprescindíveis. Unidade, no entanto, inacabada, e por isso mesmo, acredito, rica em suas múltiplas e amplas possibilidades de aprofundamento.