Abordar uma categoria discursiva típica da web, principalmente das redes sociais, em um trabalho acadêmico é uma tarefa instigante, ao mesmo tempo em que é árdua, pela escassez de literatura de referência. Até pouco tempo atrás, a maioria das categorias discursivas presentes na web e nas redes sociais sequer existiam. Tal realidade relega a elas um valor menor frente a outras categorias discursivas canônicas, como redação escolar, cartas (diversas), textos literários etc. abordadas na pesquisa acadêmica. Naturalmente, essas categorias têm seu valor, porém não se pode destinar a um plano inferior uma categoria tão presente na vida das pessoas quanto o tipo de meme image macro. O meme é culturalmente representativo e tem uma alta capacidade de exercer influência em outras mídias e em internautas, daí a importância de se conhecer como se constrói sentido nessa categoria discursiva, bem como de que forma os usuários evocam sentido a partir dela.
Nesta tese, mais do que um trabalho sobre elementos superficiais presentes nos memes, buscou-se apresentar, nos preceitos da Linguística Cognitiva Ecológica, uma contribuição teórica e metodológica para a análise de processos de construção de sentido a partir das dimensões de frames. Outra contribuição importante foi levar em consideração na análise de frames os comentários sobre os memes, os quais confirmaram quais dimensões do frame foram evocadas.
A partir dos diversos processos para construção de sentido empregados pelos autores dos memes, evidenciados nesta tese, é perceptível que o meme é uma categoria discursiva cujo conteúdo é comprimido: muita informação expressa de maneira dinâmica, a partir de indexadores verbais e não verbais. Assim, quando um internauta recebe um meme em alguma rede social, a leitura é rápida, mas carregada de uma gama significativa de conteúdo, capaz, por sua vez, de evocar diversas dimensões do frame. Então, um meme, em um intenso processo de compartilhamento, é capaz de disseminar, de maneira sintética e interativa, diversos tipos de conteúdo, do publicitário a ideologias políticas e filosóficas.
Quanto aos memes em análise, ao se observar o sobre Guilherme Boulos, é possível verificar, no concernente à imagem utilizada na composição textual, que existem duas fotografias associadas, aplicadas sobre um fundo vermelho. A
tonalidade de cor do meme é, predominantemente, vermelha e branca, combinação frequentemente associada à esquerda política, como já mencionado anteriormente. Além disso, o meme que aborda o homem na academia com uma camisa que representa o socialismo, embora não tenha manipulado a tonalidade de cores da imagem, a própria imagem fundo do meme tem esse papel, visto a sua posição de destaque no meme: no centro da imagem. Por outro lado, pode-se considerar que os memes de cunho mais progressista apresentam tonalidade mais neutra, uma vez que não houve nenhuma manipulação de cor com finalidade específica. Nesse sentido, com base na análise do objeto aqui em foco, pode-se afirmar que há um apelo extralinguístico mais significativo nos memes de cunho mais conservadores, dada a seleção das imagens, bem como a seleção das cores de fundo e das letras.
No tocante às dimensões do frame no processo de construção de sentido, frames conceptuais básicos evocados a partir de pistas linguísticas foram determinantes nas duas conjunturas. A importância desses indexadores se revela, especialmente, ao se observar os comentários sobre os memes, em que é possível constatar que os frames ativados são conceptuais básicos, evocados por indexadores linguísticos. Nos memes, a descrição do indivíduo – socialista, pelos conservadores; proletário e político no sistema capitalista, no terceiro e quarto caso, respectivamente – se dá a partir da desqualificação do outro, do que pensa diferente. Assim, as estratégias para construção de sentido, bem como os frames evocados, decorrem do mesmo processo de elaboração semântica nos memes. Os grafos seguintes apresentam os frames conceptuais básicos evocados em meme conservadores, figura 23, e em memes progressistas, figura 24.
Figura 23: frames conceptuais básicos acionados em memes conservadores
Fonte: autoria própria (2020)
A partir desse grafo, é possível perceber que, para conservadores – tanto autores dos memes e quanto usuários comuns (que curtiram o meme, que comentaram e que curtiram os comentários sobre os memes) –, o conceito de
CAPITALISMO, com exceção do frame conceptual básico TRABALHO, é construído em
termos de acesso a bens e serviços. Por outro lado, o conceito de SOCIALISMO não é
construído em oposição exata a ACESSO A BENS E SERVIÇOS, evocado por uma relação
de contiguidade. Os frames conceptuais básicos evocados por SOCIALISMO são,
portanto, IDEIAS INSUSTENTÁVEIS (por meio da expressão irônica “discurso lindo”), REVOLUÇÃO, VENEZUELA e a pessoa SOCIALISTA. É sobre a pessoa SOCIALISTA que mais
frames conceptuais são evocados. Esses frames, por sua vez, são sempre pejorativos e generalizantes. Assim, o sentido de SOCIALISMO construído gira em torno do
indivíduo, o qual vive, na tese dos autores dos memes, em situação de miséria, é criminoso e desprovido de capacidades intelectuais e força de vontade.
Fonte: autoria própria (2020)
De modo análogo, memes de viés progressista, para a construção do sentido de CAPITALISMO, também o fazem em termos da evocação de conceitos
associados à pessoa capitalista. Nos dois casos, em memes de uma e de outra página, observando que a construção de sentido ocorre atacando-se não o conceito teórico, mas sim a pessoa socialista ou capitalista, tem-se a implicação de que, quando o frame SOCIALISMO é evocado por conservadores, a informação evocada não
é o conhecimento científico sobre o conceito, mas sim uma imagem forjada do indivíduo socialista, em síntese: vagabundo, criminoso, miserável. O mesmo, de modo inverso, ocorre quando usuários mais progressistas têm conceito CAPITALISTA evocado.
Se, por um lado, para os conservadores, os socialistas são parasitas e se aproveitam das bonanças do capitalismo; para os progressistas os capitalistas são seres contraditórios, que parecem não perceber o paradoxo em se defender o acesso a bens, serviços e boa remuneração proporcionados pelo capitalismo, mesmo quando
Capitalismo Direita política Ostentação Regime exaustivo de trabalho Subserviente Baixa remuneração Trabalhador Desemprego “Liso” “Machão” Rico Dependente do governo Programas sociais Alienado Insatisfeito Contraditório Capitalista Bolsonaro Farsante Nojento Traste Encantador de crianças e analfabetos funcionais
eles não têm acesso a isso: na verdade, apenas uma parcela ínfima da população, de fato, tem, verdadeiramente, acesso a bens, serviços e boa remuneração. A maior parte da população trabalha para gerar capital para os capitalistas.
A imagem de fundo também tem seu valor nesse processo de construção, pois, embora não seja o aspecto mais saliente, ela é indispensável para evocação de frames e, portanto, para construção de sentido. Nenhuma delas é empregada arbitrariamente, pois as imagens de fundo evocam dimensões do frame. Vale dizer que elas, do ponto de vista discursivo, têm sempre a função de pano de fundo para os conceitos evocados pelas pistas linguísticas. Cada imagem, em si, poderia ser substituída por outra de mesmo valor: Manuela D’Ávila, política filiada ao Partido Comunista do Brasil, passeando por Nova Iorque-EUA, poderia ter sua imagem utilizada para uma construção de sentido análoga à do meme 1; ou mesmo a imagem de Julius Rock, no meme 3, poderia ser substituída por qualquer meme de trabalhador que não tenha acumulado capital, mesmo trabalhando exaustivamente. Sendo assim, embora as imagens não ocupem posição central no processo de construção de sentido do meme, elas são indispensáveis à construção de sentido nessa categoria discursiva pelas razões suscitadas.
As análises também permitiram perceber que a dimensão de roteiro do frame foi evocada em todos os memes, constituindo um importante recurso no processo de construção de sentido. No primeiro caso, quando se tem Boulos em um balcão de uma cafeteria, naturalmente, aciona-se o pressuposto de que ele aguarda um pedido, o que evoca o roteiro AGUARDAR PEDIDO EM UM BAR. No segundo meme, o
roteiro FREQUENTAR ACADEMIA também é uma importante dimensão evocada para a
construção de sentido. Nos dois casos, o frame de roteiro é evocado para estabelecer uma suposta contradição a partir do fato de “socialistas” estarem usufruindo de serviços – para os autores dos memes – exclusivos do capitalismo.
De modo análogo, os memes da página progressista também contam decisivamente com a dimensão de roteiro do frame para construir sentido. No primeiro caso, tem-se Julius Rock fardado indo para o trabalho, o que evoca o conceito de
TRABALHADOR, que aqui apresenta-se de partida para o trabalho com uma feição
insatisfeita. No segundo caso, dois frames de roteiro são evocados: ENTREVISTA e ASSALTO, no primeiro roteiro, a BRAVURA comentada na RESPOSTA à entrevista estaria
em contradição ao fato de Jair Bolsonaro não ter conseguido reagir a um ASSALTO.
Novamente, nos dois casos, a dimensão de roteiro do frame é decisiva para que os autores possam alcançar o sentido desejado.
Igualmente, os memes de cada uma das páginas evocam, nos compreendedores, frames relacionados à moral. Quanto aos memes de orientação mais conservador, a questão da moralidade é evocada quando consideram que bem- estar é SEGURANÇA PESSOAL e ACESSO A BENS E SERVIÇOS, as quais são violadas com assassinatos, vagabundagem, bandidagem, terrorismo, ausência de multinacionais etc. Por outro lado, o frame moral é violado nos memes de orientação mais progressista quando se é infeliz, quando se trabalha exaustivamente, quando se é alienado, quando não se é remunerado coerentemente ao trabalho desenvolvido, quando o Estado não exerce cuidados – “pai protetor” (LAKOFF, 1995) – sobre os cidadãos, quando se é contraditório e mentiroso.
Além disso, tem-se, também, o fato de os quatro em análise construírem sentido a partir de uma aparente contradição entre teoria e prática. Para tanto, apresentam uma imagem que parece, aos olhos dos autores dos memes, ser contraditória a algum fundamento teórico do socialismo, no caso de memes de viés mais conservador, ou do capitalismo, no caso de memes de viés mais progressista.
Para conservadores, é imoral não ter acesso a bens e serviços. É imoral ser um criminoso, marginal, miserável. Aqui, o tempo popular hoje para classificar um indivíduo que não tem essas características é “cidadão de bem”. Esse termo sintetiza todos os valores que conservadores consideram morais, os quais são, basicamente, o oposto dos frames conceituais evocados a partir de SOCIALISTA: trabalhador, respeita
a lei, combate o crime – mesmo sem ser policial –, sagaz, respeita o latifúndio, heroico, crítico (antônimo de PELEGO).
Na visão dos conservadores, não existe nenhum aspecto no socialismo, tampouco do socialista, que seja moral. Para eles, se for uma causa de luta de socialista, é imoral: independentemente se a causa for fim da desigualdade social ou denúncia a regime de trabalho análogo à escravidão, ainda sim são considerados imorais. Não pela causa em sim, mas porque levantar defender essas causas é coisa de vagabundo, terrorista, charlatão, criminoso etc., para usar as palavras dos
conservadores, muito embora sejam causas que beneficiem a sociedade indistintamente. Mais especificamente, esses adjetivos atribuídos a progressistas são frutos de – e reforçam simultaneamente – um processo de criminalização de progressistas no Brasil. Esse processo não é novo e, ao longo da história, se manifesta de inúmeras maneiras diferentes: rotulação midiática, ação repressiva da força policial do Estado, criminalização a partir da criação de leis específicas e, hoje, esse processo se dá a partir de memes como os aqui presentes. Trata-se de um texto sintético em volume e suficientemente profundo em conteúdo, o qual é rapidamente assimilado, enquanto evoca uma infinidade de informações em seus compreendedores a partir de indexadores verbais e não verbais.
Fica evidente, por fim, que nem conservadores e nem progressistas desejam uma sociedade pior. Ambos almejam uma sociedade melhor, porém por caminhos diferentes, o que revela um confronto das visões de mundo manifestas a partir do conceito de moralidade (LAKOFF, 1995) evocado por cada indivíduo. Em resumo, é imoral para conservadores não trabalhar e não ter acesso a bens e serviços; ao passo que é imoral para progressistas mentir e não receber remuneração justa ao que se produz.
Outro ponto a se observar é o fato de, pelo menos nos memes em foco, os de valor progressistas não evocarem pontos positivos contrários aos que criticam. Isto é, os memes progressistas criticam aspectos relacionados a CAPITALISMO, mas não
apresentam aspectos positivos relacionados ao que seria oposto ao capitalismo, a saber, SOCIALISMO. Lá, o que se tem é que o frame CAPITALISMO aciona aspectos
positivos e negativos do conceito. Porém, os aspectos positivos acionados são expressos na perspectiva de que a população, em geral, não tem acessos a eles, como SER RICO e OSTENTAR, por exemplo. Por outro lado, memes relacionados à DIREITA
política não somente apresentam aspectos negativos da concepção político- econômica da ideologia confrontada, como também apresenta aspectos positivos atrelados a ela própria: acesso a bens e a serviços.
Considerando a metodologia de pesquisa empregada, a de ponto de saturação (saturação teórica), os memes em análise apresentaram processos de construção de sentido semelhantes. A partir, principalmente, da evocação de frames de roteiro, frames conceptuais básicos e esquemas-I, o sentido é construído nos
memes em análise observando-se supostas contradições entre o discurso CAPITALISTA
ou SOCIALISTA e as respectivas práticas de seus defensores. Os conceitos
(re)modelados discursivamente (framing) a partir da indexação de frames conceptuais básicos são SOCIALISMO e CAPITALISMO, de modo a construir novos sentidos para
conceitos distintos dos postulados originais. Esse processo de remodelamento foi representado a partir de grafos de esquema-I, por meio de frames conceptuais evocados a partir de indexadores linguísticos. O recurso empregado para construção de sentido em memes é sempre o mesmo: apresentar uma contradição entre os supostos postulados teóricos e a prática de pessoas socialistas e capitalistas. A integração entre aspectos verbais e não verbais não é uma questão de estilo, de modo que a imagem evoca certos frames e indexadores linguísticos evocam outros frames, que se coadunam no processo de construção de sentido.
Uma vez cumpridos os objetivos propostos e respondidas as questões de pesquisa, esta tese se encerra, mas dela surgiram questionamentos os quais merecem ser considerados futuramente. Um deles é: qual o locus das redes sociais no ambiente (em termos e cognição ecológica)? Elas não consistem em uma estrutura conceptual porque ela não é um conceito, mas sim abriga virtualmente conceitos; por outro lado ela também não é física, do ambiente e, claro, também não é biológica. Preliminarmente, é sabido que o virtual, embora não seja físico, é real, constitui a nossa realidade e nele também habitamos de modo virtualmente real. O ambiente virtual, embora não seja físico, oferece affordances à cognição enquanto ambiente virtual? Que lugar as redes sociais ocupam no ecossistema?
Outra questão suscitada no decorrer desta tese é se os memes, com essa alta capacidade de influenciar, são capazes de interferir decisivamente em um pleito político a partir do disparo, por robôs, de memes sobre política em redes sociais. No século XXI, não há como pensar num pleito eleitoral que se dê longe das redes sociais. Não são raros os casos de investigação sobre possíveis manipulações da opinião pública a partir de conteúdo em redes sociais. Cabe verificar, a partir da metodologia aqui apresentada e subsidiada por literatura sobre política (nos termos das Ciências Sociais), se é possível que isso ocorra e, se sim, como esse processo ocorre.
Por último, surgiu uma questão que engloba, também, a Ciência Política, mas que não pode ser ignorada como objeto de análise em Linguística. Existem
alguns tipos de socialismo – sobre os quais não cabe uma detenção maior aqui –, a saber socialismo utópico, científico, cristão, democrata. Porém, na internet, parece existir um conceito de socialismo peculiar. E é possível falar em existência porque percebe-se que uma parcela significativa de indivíduos acredita e dissemina ideias baseadas nesse conceito em específico. Trata-se de uma concepção própria de socialismo, baseada em experiências que não são as científicas. Essa vertente, que, por hora, pode ser intitulada de socialismo de internet, carece ser academicamente compreendida. As evidências presentes nas análises desta tese são um ponto de partida para esse estudo.
Apesar do ponto de saturação do corpus selecionado, o aparato teórico e metodológico empreendido nesta tese não está esgotado. Pelo contrário, serve de horizonte para a promoção de novas pesquisas do gênero, considerando-se, por exemplo, memes e páginas sobre outros conteúdos: é possível investigar quais os processos de construção de sentido envolvidos em memes racistas, machistas, xenófobos, homofóbicos, entre outras temáticas. Assim, esse trabalho é findado ao passo que sementes são semeadas para frutos de pesquisa futuros.
Para além da contribuição acadêmica oferecida por essa tese, tem-se uma relevância social pela abordagem de uma categoria discursiva tão presente na vida dos brasileiros e que as análises aqui presentes evidenciam que o conteúdo dos memes têm alta capacidade persuasiva. Assim, espera-se que as categorias de análise aqui presentes possam ajudar a compreender processos de construção de sentido frequentemente empregados em categorias discursivas em que não se espera – ou não se saiba – que se tenha apelo manipulativo. Só se pode contra-argumentar aquilo que se pode perceber o caráter argumentativo, caso contrário, simplesmente se apreende determinado discurso, determinadas ideologias, sem o senso crítico para saber se é isso que se quer, se tal ideia beneficia o indivíduo e sua comunidade ou não.