• Nenhum resultado encontrado

O ambicioso projeto da Universidade da Floresta se realizou, ao seu modo, ampliando o campus da UFAC em Cruzeiro do Sul. Hoje a instituição oferece mais opções de cursos superiores na região, mais vagas, conta com um número maior e mais diversificado de docentes e, mais importante, inclui mais estudantes moradores da região. Em suma, o campus Floresta – UFAC cumpre um importante papel na região do Juruá, o que é reconhecido por muitos entrevistados.

Neste trabalho procurei mostrar que os debates em torno do projeto de criação da Universidade da Floresta, desde o seu início, tiveram como principal ponto de discordância as diferentes concepções que os vários atores envolvidos nesse projeto tinham sobre “conhecimentos tradicionais” e sobre a forma de “incorporá-los” em uma instituição acadêmica.

Da sua parte, as populações indígenas e tradicionais, detentores dos conhecimentos tradicionais, embora não tivessem se oposto à ideia de “incorporar” os seus conhecimentos em uma universidade, tampouco avançaram em relação à questão dos regimes distintos que regem os conhecimentos tradicionais e o conhecimento científico, uma questão de grande relevância nas falas dos antropólogos envolvidos com o projeto Universidade da Floresta.

Os representantes das populações indígenas e tradicionais procuraram antes ocupar os espaços de discussão em torno do projeto de criação da Universidade da Floresta para trazer suas próprias reivindicações: contar com espaços de construção – e reconhecimento – de suas próprias “culturas” e “conhecimentos tradicionais”. Para os representantes das populações indígenas e tradicionais presentes nos vários fóruns de discussão, a transformação de seus complexos sistemas de conhecimentos em meros conteúdos no âmbito da academia – mais especificamente na “Universidade da Floresta” – parecia não preocupá-los tanto quanto preocupava os antropólogos envolvidos com o projeto.

Em geral, com exceção dos antropólogos, a noção de conhecimentos tradicionais que prevaleceu nos debates em torno do projeto de criação da Universidade da Floresta era a do senso comum: “um conjunto acabado que deve ser preservado, um acervo fechado transmitido por antepassados e ao qual não se deve acrescentar nada” (Carneiro da Cunha, 2009, p. 302). Trata-se, sobretudo, de uma visão que busca o “tradicional” nos conteúdos dos conhecimentos e não em suas formas de gestão, circulação, transmissão, etc.

O projeto Universidade da Floresta e a sua implantação não podem ser avaliados em termos de êxito ou fracasso ou de fidelidade ou desvio em relação ao seu propósito inicial. O grande mérito desse projeto foi ter desencadeado, no Acre, uma discussão que acabou tomando outros caminhos: de um lado, o campus Floresta – UFAC, que se realizou como ensino de graduação tradicional, voltado para a formação de quadros de profissionais para a região e para o estado, em uma região até então desprovida de oportunidades de formação de nível superior; de outro, o projeto se disseminou sob a forma de outras iniciativas inovadoras, com destaque para a criação do Centro Yorenka Ãtame em Marechla Thaumaturgo (AC).

Os conhecimentos tradicionais, ligados a sistemas de pensamento e de entendimento sobre o mundo, têm seus próprios processos de apreensão e transmissão de saberes e práticas, os quais observam também regras próprias. A proposta de incorporar ou de incluir conhecimentos tradicionais na universidade, onde o regime é o do conhecimento científico, parece uma tarefa de difícil operacionalização.

As tentativas de se estabelecer um paralelo entre processos de ensino e aprendizagem de natureza diferentes que, portando, não deveriam ser comparados, parecem ser as responsáveis pela a maior parte das dificuldades. Retomando, portanto, a pergunta inicial se a universidade seria o lugar dos conhecimentos tradicionais, a resposta parece ser não, pelo menos enquanto persistir entre nós, os modernos, a noção de universidade como lócus de formação e de credenciamento de profissionais para o mercado de trabalho e de desenvolvimento de pesquisa nos princípios da racionalidade e da cientificidade da ciência moderna.

REFERÊNCIAS

ALBERT, Bruce. O ouro canibal e a queda do céu. Uma crítica xamânica da economia política da natureza (Yanomami). In: ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida Rita (Orgs).

Pacificando o branco: Cosmologia do contato no norte –Amazônico. São Paulo: Ed. UNESP,

2002.

ALMEIDA, Mauro. Em favor da Floretania. Entrevista realizada por Renato Sztutman. Disponível em:<www.revistatropico.com.br/tropico/html/texto/2849,1.shl>. Acesso em: 21 set. 2012.

______. Universidade da Floresta vai reunir cientista e pajés. Entrevista realizada por Bruno Weiss em 18/04/2005. Disponível em:

<http://socioambiental.org/noticias/nsa/nsa/detalhe?id=1970(isa)>. Acesso em: 22 jul. 2014. ______. Linguagem Regional e Fala Popular. In: Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. VIII, n. 1-2, 1977, p 171-181.

______. Prêmio Chico Mendes de Florestania, 2007. Jornal Página 20. Rio Branco – Acre, quinta feira, 3 de janeiro de 2008. Disponível em: <http://www.pagina 20.net>. Acesso em: 22 jul. 2014.

_______. Diálogos ou inverdades? Papo de Índio Especial. Jornal Página 20. Rio Branco Acre, 6 de maio de 2007. Disponível em: <http://www.pagina20.net>. Acesso em: 22 jul. 2014.

AGENDA 21. Disponível em: <http:// www.mma.gov.br/responsabilidade- socioambiental/agenda-21agenda-21-global>. Acesso em: 03 fev. 2014.

ATTUCH, Iara. Os rumos da Intermedicalidade: o saber de dona Flor e o saber de

profissionais da saúde no Cerrado.In: LITTLE, Paul (Org). Conhecimentos tradicionais para

a século XXI: Etnografias da intercientificidade. São Paulo: Annablume, 2010, p. 109-114.

BIBLIOTECA DA FLORESTA. Memória da Floresta. Uma Publicação da Biblioteca da Floresta. Rio Branco, 2010, p. 1-130.

BATISTA ASSMAR, Olinda. Poesia de Cruzeiro do Sul/Acre: antologia dos poetas de Cruzeiro do Sul (1912-1915) – V.I. Rio de Janeiro:Publit, 2009,p. 299.

CALAVIA SÁEZ, Oscar. Prometeo de pie. Alternativas éticas y a la apropiación del conocimiento. ABA, mimeo, 2001.

CARNEIRO DA CUNHA; Manuela; ALMEIDA, Mauro. Populações Tradicionais e conservação ambiental”. In: CARNEIRO DA CUNHA; Manuela; Cultura com Aspas e

outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 277-300.

______. Introdução. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; ALMEIDA, Mauro W. B de. (Orgs). Enciclopédia da Floresta. O Alto Juruá: Práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 11-28.

______. Políticas culturais e povos indígenas. Uma Introdução”. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; CESARINO, Pedro Niemeyer (Org). Políticas Culturais e Povos

Indígenas. Cesarino. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014, p. 9-21.

______. “Cultura” e cultura: conhecimento tradicional e direitos intelectuais”. In:

CARNEIRO DA CUNHA; Manuela. Cultura com Aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 311-374.

______. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico. In: CARNEIRO DA CUNHA; Manuela; Cultura com Aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 301-310.

______. Brasil perdendo oportunidade. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 2, n. 17, fev. 2007, p. 50-55.

_______. Conhecimentos tradicionais e conhecimento científico podem viver juntos? O exemplo do Acre, 2006. Universidade de Chicago.

COFFACI DE LIMA, Edilene. Kampu, kampo, kambô: o uso do sapo-verde entre os Katukina. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 32, 2005, p. 254-267. ISSN: 0102-2571.

COSTA, Eliza Lozano; COFFACI DE LIMA, Edilene; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Casa. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; ALMEIDA, Mauro W. B de. (Orgs). Casa .

Enciclopédia da Floresta. O Alto Juruá: Práticas e conhecimentos das populações. São Paulo:

Companhia das Letras, 2002, p. 229-247.

BROWN JR; FREITAS. Diversidade biológica no Alto Juruá: avaliação, causas e manutenção. In: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; ALMEIDA, Mauro W. B de. (Orgs).

Enciclopédia da Floresta. O Alto Juruá: Práticas e conhecimentos das populações. São Paulo:

Companhia das Letras, 2002, p. 33-42.

JORNAL da Ciência 3279, de 06 de junho de 2007, p. 1.

JORNAL Ciência Amazônica. Edição 03 de junho de 2007, ano, 2. Edição Extraordinária. JORNAL Página 20, Edição 16 de julho de 2007.

JORNAL da Ciência n, 3280 de junho de 2007.

GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas. O Antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009, p. 204.

GALLOIS, Dominique. Os povos indígenas e a questão da autonomia. Caderno de Campo, Ano VII, n. 7, p .172-183, 1998.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. In: A ciência do concreto; tradução: Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 2006, p. 15-50.

LIMA, Henrique Afonso. Universidade da Floresta: Uma história de conquistas para a Alto Juruá. Brasília: Editora Câmara dos Deputados, 2010, p. 7-111.

LITTLE, Paul. Etnoecologia e direito dos povos: elementos de uma nova ação indigenista. In: LIMA, Antonio Carlos de Sousa; BARROSO-HOFFMANN, Maria (Orgs).

Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas, bases para uma nova política indigenista. Rio de

Janeiro: Contra Capa, 2002, p. 39-48.

______. Os conhecimentos tradicionais no marco da intercientificidade. In: LITTLE, Paul (Org). Conhecimentos tradicionais para a século XXI: Etnografias da intercientificidade. São Paulo: Annablume, 2010, p. 9-31.

MALINOWSKI, Bronislaw. Introdução: objeto, método e alcance desta investigação. In: MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pácifico Ocidental: um relato do

empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1976, 436 p. (Coleção Os Pensadores, v. 43).

MARTINS, Elson. Sonhos da Floresta. Jornal Página 20, 2007. Disponível em: <http://pagina 20.uol.com.br/23092007/almanacre.htp>. Acesso em: 27 jan. 2014. MENTORE, George; SANTOS-GRANERO, Fernando. Apresentação, Revista de

Antropologia da USP, 2006, v. 49 (1).

OVERING, Joanna. O fétido odor da morte e os aromas da vida. Poética dos saberes e processos sensorial entre os Piaroa do Orinoco, Revista de antropologia da USP, 2006, v. 49 (1).

PEREIRA, Eliete. O Centro Yorenka Ãtame e a ecologia xamânica comunicativa Ashaninka. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVI.

Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Manaus, AM, 7 set. 2013.

SANTOS-GRANERO, Fernando. Vitalidades sensuais. Modos não corpóreos de sentir e conhecer na Amazônia indígena. Revista de Antropologia da USP, 2006, v. 49 (1).

SCHIMINK, Mariana; CORDEIRO, Mâncio Lima. Rio Branco a Cidade da Florestania. Pará: EDUFPA, 2008, p. 15- 183.

SAHLINS, Marshall. O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção. (Parte I) Mana 3(1), p. 41-75, 1997. SAHLINS, Marshall. O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um ‘objeto’ em via de extinção. (Parte II) Mana 3(2), p. 103-150, 1997.

SANTILLI, Juliana. Desenvolvimento histórico e contexto político e social do surgimento do

movimento socioambiental no Brasil. São Paulo: Peirópolis, 2005, p. 19-49.

SILVA, Marina. História da Floresta, da vida e do mundo. In: VIANA, Gilney; SILVA, Marina (Orgs). O desafio da sustentabilidade – um debate socioambiental no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 199-212.

SOUSA, Áulio Gélio Alves de. História da Criação do Ensino Superior no Acre. Brasília: Thesaurus, 2006, p. 254.

TURNER, Terence. De Cosmologia a História: resistência, adaptação e consciência social entre os Kayapó. In: CASTRO, Viveiros de; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Orgs).

Amazônia: etnologia e história indígena. São Paulo: Núcleo de História e do Indigenismo da

USP; FAPESP, 1993.