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Durante este longo passeio entre os versos corais de Medeia e de Gota D’água, deleitamo-nos sobre as construções literárias e sobre o notório retorno ao mito, ocorrido em ambas as tragédias154. Paralelo ao incomensurável prazer de trabalhar e de conhecer mais profundamente duas insignes obras, foi possível compreender e identificar as mensagens de cunho político e social presentes nas manifestações corais das peças apresentadas. Entretanto, por mais que tenhamos estudado duas obras, destinamos atenção especial à tragédia brasileira,

Gota D’água.

Vimos, no desenvolvimento desta dissertação, dois capítulos dedicados à análise literária do Coro das obras supramencionadas. Apesar de termos desenvolvido um conteúdo pormenorizado, ainda se é necessário fazer algumas observações importantes para complementar o presente trabalho. Far-se-á aqui uma copulação das características e das funções principais de cada Coro, de modo ilativo, não se resumindo apenas às questões comparativas, mas sim lançando um olhar para a individualidade de cada manifestação.

O Coro de Medeia reflete exatamente o estilo que Eurípides costumava seguir. Trata-se de um Coro menos atuante, ou seja, de uma personagem passiva e pouco participativa no que tange às ações. Assim sendo, a manifestação coral vista em Medeia é contrária àquilo esperado por Aristóteles155. As quinze mulheres coríntias exercem o exímio papel de amigas complacentes e conselheiras, contudo não atuam ativamente na construção do enredo. Aliás, se pensarmos na Medeia de Eurípides sem o Coro, constataremos que não haveria alteração no desenrolar da história, principalmente, no que diz respeito ao desfecho da obra. É válido recordar que o Coro cogitou a possibilidade de interferir na cena da morte das crianças, mas não levara esta hipótese adiante. Talvez, o próprio Eurípides tenha querido que assim fosse. Optando, portanto, por apresentar um Coro observador e sôfrego, que funcionasse mais como um elemento sensibilizador do que como uma personagem destemida e interveniente.

154 Ao afirmar que o retorno do mito acontece em ambas as peças trabalhadas nesta dissertação, queremos recordar que as personagens, Medeia e Jasão, são figuras mitológicas muito antigas e anteriores a Eurípides. Não nos esqueçamos de que os mitos se enraizaram na sociedade clássica, através da transmissão oral, antes de serem registrados por poetas e mitógrafos, tais como Hesíodo, por exemplo. Portanto, a expressão “retorno ao mito”, utilizada nesta conclusão, abrange às duas obras. Porém, a tragédia Gota D’água, além de retornar ao mito, tem a

Medeia de Eurípides, como modelo.

155 Como já evidenciamos outrora, Aristóteles afirma, em Poética (1456a, 26-31), que o Coro deve ser considerado como um ator participativo da ação, aos moldes de Sófocles, não como em Eurípides.

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O Coro de Medeia não desenvolve ações diretas na peça, mas isto não faz dele uma personagem desnecessária, até porque a sua ausência empobreceria demasiadamente a tragédia e, em especial, o trágico. O Coro, da referida obra, torna-se o grande responsável por depositar a ansiedade na audiência e inflamar a aflição – não que estas não sejam responsabilidades de um Coro, mas, em Medeia, o encargo de transmitir e intensificar as emoções é uma tarefa realizada, com excelência, pela voz coral. Enxergando por este prisma, defenderemos que o Coro em Medeia é o elemento mediador da kartasis156, a purificação esperada depois do desencadeamento da compaixão e do temor. Assim age o Coro de Medeia, despertando a compaixão e depositando o temor nos espectadores/leitores, aduzindo as mazelas sentimentais, mostrando-nos o ônus da paixão, alimentando a angústia, aterrorizando o pensamento sobre a morte e dando protagonismo ao medo.

Em Gota D’água, encontramos o Coro como o elemento mais importante e fundamental para que todas as ações aconteçam, divergindo, assim, do Coro de Medeia. Também não haveria de ser diferente, visto que o Coro da tragédia brasileira é formado por quase todas as personagens da trama157 e, caso retirado da peça, a obra simplesmente não

existiria. Lembremos que as personagens têm dupla função, a individual e a coletiva, e, muitas vezes, até nas atuações individuais é possível perceber resquícios de uma manifestação coral, como é o caso dos diálogos das mulheres da Vila do Meio-dia.

Aliás, nesta dissertação, defendemos que Gota D’água conta com mais de uma manifestação coral. No primeiro ato da peça, teremos, predominantemente, a participação do Coro que denominamos como hereditário, que se manifesta através dos diálogos das mulheres da Vila, reproduzindo as falas e o comportamento do Coro de Medeia, principalmente, ao desempenhar um papel obsequioso em relação à protagonista, Joana. No segundo ato, veremos a predominância das odes, demarcando uma inovação coral, dividida em dois grupos, um feminino e outro masculino, os quais se manifestam através das músicas, cantadas em conjunto ou em grupos separados por sexo.

Falando ainda sobre as odes do Coro de Buarque e de Pontes, identificamos a presença de uma alusão ao Coro de As Bacantes, que permitiu levar à Gota D’água um momento diferenciado, resultando em uma apresentação peculiar quase que um número aparte,

156 Aristóteles não desenvolve sobre a noção de Katharsis, em Poética. Sobre esta questão, ver a introdução feita por Maria Helena da Rocha. Cf: Rocha Pereira (2013) p.19.

157 Porém, se considerarmos a formação da última ode, o Coro atingirá a todos, haja vista que até as crianças participaram desta apresentação coral, que encerrara a peça.

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dentro da peça. Ainda recordando esta passagem, assinalemos que este Coro euripidiano, vindo de As Bacantes, configura uma personagem que foge do modelo de passividade visto em

Medeia, ou seja, para o momento de apoteose performática da manifestação coral de Gota D’água, serviu de parâmetro um Coro atuante158.

Explanemos agora sobre a função da voz coral em Medeia e em Gota D’água, ponto que também merece ênfase, nesta conclusão. A esta altura, já se pode entender e elencar, com facilidade, as mensagens enviadas pelos Coros aqui estudados. É sabido que ambos estavam envoltos a um discurso político e social. Gota D’água apresentou-nos um Coro bastante dedicado a delatar os problemas sociais brasileiros, enquanto o Coro de Medeia atuara de maneira mais sutil e menos agressiva do que a tragédia brasileira.

Em Medeia, no terceiro estásimo (vv.824-865), vimos a voz coral cantar a excelência e o apogeu de Atenas, numa tentativa de transmitir uma ideia de cidade-estado perfeita, onde até a natureza serviria de justificação para classificá-la como tal. Tragamos à memória que, em 431 a.C., Atenas ainda estava em seu auge de desenvolvimento e supremacia, no entanto ameaçada por Esparta e pela criação da liga do Peloponeso. Ademais, sabe-se que a Guerra do Peloponeso já estava iminente e que os atenienses tinham consciência de que necessitavam de apoio político e de fortalecimento bélico, para um futuro combate. Claro que elevar a imagem de Atenas, através de uma peça de teatro em um evento de prestígio, naquele momento, seria uma excelente saída para propagandear e valorizar a imagem de uma pólis que, há anos, liderava como a maior autoridade entre as cidades-estado gregas159, embora, naquela altura, se encontrasse em um momento pouco auspicioso.

Em Gota D’água, a mensagem da voz coral estava clara. O Coro denunciava os problemas sociais brasileiros, aliás é este o objetivo principal da peça. Dirijamo-nos à introdução da obra Gota D’água e destaquemos o que os autores de tal tragédia dizem sobre as intenções principais do texto. Buarque e Pontes enumeram três pontos, o primeiro deles é o desejo de criticar a experiência capitalista vivida pelos brasileiros, a qual definem como “radical, violentamente predatória e impiedosamente seletiva” (p.xi)160; o segundo interesse é

158A manifestação coral à maneira de As Bacantes apresentou-nos momentos de dominação do elenco, demonstrou ao público a força religiosa e coletiva, mas não serviu para concretizar a vingança de Joana. A apresentação apareceu como um número artístico, que acarretou apenas em dores de cabeça à personagem Alma, noiva de Jasão (p.90), mas não levou ninguém a óbito, como vimos acontecer em As Bacantes, com a morte de Penteu.

159 Não nos esqueçamos que Atenas, após as Guerras Médicas, ganhou prestígio e poder, destacando-se entre as demais cidades-estado gregas.

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valorizar a cultura do povo brasileiro que “ficou reduzido às estatísticas e às manchetes de jornais de crime (p.xvi); e a última preocupação é em relação ao teatro e à valorização da palavra, que não tinha a mesma função de antes, “a palavra deixou de ser o centro do acontecimento dramático” (p.xviii), ou seja, no teatro censurado, não havia mais espaço para a mensagem (para a reflexão sobre os problemas sociais), pois o texto não podia extrapolar limites.

Todas estas preocupações citadas acima podem ser identificadas na atuação coral de Gota D’água, principalmente a primeira. Vimos inúmeras vezes o Coro voltar-se para questões de cunho capitalista, tanto que, percebendo isto, dedicamos um tópico temático para falar sobre o capitalismo e a desigualdade social, que, aliás, configura o maior tópico visto nesta dissertação. Por trás de tudo, foi possível perceber uma ojeriza à Ditadura Militar, que também foi criticada pelo Coro, em todas as odes, especialmente, no encerramento da peça, por meio da música “Gota d’água” que, em sua segunda aparição, apresentou-nos intenções denunciantes que atingiam o regime militar como um todo.

Recordemos que Chico Buarque ficou responsável por desenvolver as músicas da peça, claro que sempre com a ajuda e conivência de Paulo Pontes. Assim sendo, devolveu a responsabilidade dramática à palavra. Aliás, durante toda a Ditadura Militar, Buarque desempenhara o papel de vociferar as inquietudes da sociedade, através da arte. No livro de Anazildo da Silva, Quem Canta Comigo: Representação do Social da poesia de Chico Buarque, contamos com uma excelente definição para o papel militante das obras do autor em questão. Anazildo define Chico Buarque de Hollanda como um “porta-voz lírico das angústias sociais e políticas brasileiras e uma das principais expressões da lírica brasileira do século XX.”( SILVA, 2010, p.9). Enfim, a função principal do Coro de Gota D’água era “afastar o cale-se” e externar as insatisfações do povo brasileiro, desde as desigualdades à falta da liberdade de expressão.

Enquanto o Coro de Medeia prioriza cantar os dissabores das paixões, o Coro de

Gota D’água centraliza-se nos problemas sociais. Observamos, portanto, o Coro Clássico

enaltecendo o mito e fazendo dele o centro principal da criação, por mais que também carregue uma mensagem de cunho político-social; em contrapartida, vimos a tragédia brasileira secundarizando o mito, porém utilizando-o como “tapete vermelho” para apresentar os problemas sociais. Afinal, o retorno ao clássico é um excelente arcabouço para dar visibilidade àquilo que se anseia desvelar.

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Contemplamos, portanto, uma eminente recepção literária, que arriscou trazer o Coro aos palcos modernos, e obteve êxito; inovando, mas conservando características próprias de uma voz coral clássica, em especial a função coletiva e educadora. Neste percurso, foi possível entender literariamente o Coro de Medeia de Eurípides e desenvolver, com segurança, a análise do Coro de Gota D’água. Pode-se, então, afirmar que os autores, Buarque e Pontes, souberam dar funcionalidade à manifestação coral, fazendo desta algo imprescindível, isto é, transformando-a no coração da obra.

A pesquisa ainda poderia estender-se e trilhar muitos outros caminhos, uma vez que as obras, sobre as quais discorremos, oferece-nos um leque de oportunidades de trabalho. Por isso, não ponhamos aqui um ponto final, mas sim reticências, haja vista que não se trata do fim, mas apenas do “desfecho da festa”. O desfecho da festa das palavras que ora foram músicas, ora foram versos, mas que, todo o tempo, significaram engrandecimento literário, histórico e cultural, presenteados pela antiguidade ou advindos dos tempos modernos.

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