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INERÊNCIA TEMÁTICA: AMIZADE, PÁTRIA, PAIXÃO, MORTE, JUSTIÇA E

4. ANÁLISE DO CORO DE GOTA D’ÁGUA

4.3. TEMÁTICAS DO CORO DE GOTA D’ÁGUA

4.3.1. INERÊNCIA TEMÁTICA: AMIZADE, PÁTRIA, PAIXÃO, MORTE, JUSTIÇA E

As temáticas presentes no Coro de Gota D’água, provindas da tragédia Medeia, são aquelas que não poderiam ser derrocadas da obra, pois são inerentes ao enredo. Vejamos, de modo conciso, como os temas – amizade, pátria, paixão, morte, justiça e vingança – apareceram na obra.

O tema da amizade, que teve grande destaque na manifestação coral da obra

Medeia, foi transferido para Gota D’água com a mesma importância, tanto em relação aos

assuntos que abraçavam a temática da amizade quanto ao comportamento amigo do Coro. Elucidemos que, na tragédia de Eurípides, o Coro mostrou-se um companheiro fiel à protagonista e à sua prole, atuando como conselheiro e como apaziguador. Tal Coro, mesmo diante de uma mãe filicida, ainda demonstrou compaixão e nunca retirou a amizade, ou voltou- se rigorosamente contra Medeia. As mulheres coríntias foram, do começo ao fim, boas amigas da feiticeira, pois, mesmo criticando e apontando os erros, nunca a traíram, apesar de julgarem insanas as atitudes da protagonista. Em Gota D’água, também vimos um Coro amigo, aliás dois, um feminino e outro masculino, que se comportaram bastante solidários e preocupados;

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de um lado observamos as mulheres servindo de consolo e de defesa para Joana, do outro encontramos os homens que admiravam e corroboravam as decisões de Jasão123.

Contudo, frisemos que o Coro masculino foi fiel ao sambista do começo ao fim, já o Coro feminino não se comportou da mesma forma em relação à macumbeira. Diferente do Coro coríntio, as mulheres de Gota D’água, à exceção de Corina, foram desleais a Joana no final da peça. Lembremos que estas vizinhas aceitaram uma proposta de trabalho oferecida por Creonte, para auxiliarem nos preparativos do casamento de Jasão e Alma124. Estas mulheres, que pareciam genuinamente solidárias a Joana e que criticavam ferrenhamente Jasão, são as mesmas que aceitaram a proposta de ajudar a realizar a festa de casamento do ex-cônjuge da amiga. Enquanto Joana encontrava-se de rastos, devido ao recente abandono e às humilhações causadas por Jasão, as amigas comemoravam a conquista do novo emprego.

A paixão e a morte – causa e consequência – também tiveram espaço em Gota

D’água, e não poderia ser diferente, já que são temas principais da obra matriz. Na tragédia de

Buarque e de Pontes, o Coro trata a paixão e a morte de modo semelhante ao que vimos acontecer no Coro de Medeia. E é possível identificar esse mesmo jogo de causa e consequência que vimos existir na tragédia de Eurípides.

À maneira de Medeia, a paixão fez de Joana uma mulher menos racional, despertando-lhe coragem para tomar decisões radicais, como, por exemplo, abandonar o ex- marido, que lhe proporcionava uma vida segura e confortável, para viver com Jasão. Lembremos que o Coro feminino pôs esta atitude de Joana em evidência, durante um diálogo no início da peça (p.10).

Quanto à temática da morte, vimos o Coro se desesperar com a possibilidade de um final funesto, uma vez que Joana, tomada pela fúria causada pelo abandono de Jasão, asseverou ter coragem de matar e de morrer (p.47). Sobre esta questão, recapitulemos a imensa aversão

123 Salientemos que Egeu era o único amigo que julgava as atitudes de Jasão incorretas e o aconselhava sempre para o bem, demonstrando sincera preocupação com a família do amigo. Recordemos também que Egeu é esposo de Corina, ou seja, é “compadre” das crianças. Entre algumas cenas em que podemos perceber a presença deste bom amigo vejamos: (p.57).

124 “ (...) comunico desde já que as mulheres todas estão requisitadas pra trabalhar na nova indústria que abri: a indústria das bodas/ Conto com toda mão-de-obra do lugar/ Vamos preparar doces, salgados, bebida, para lotar dois Maracanãs. Eu falo sério, essa festa vai ser lembrada e conhecida por todos como a maior festa do hemisfério” (p.138) Estas foram as palavras de Creonte para conquistar as moradoras da Vila. As vizinhas aceitaram a proposta de trabalho, algumas ainda ficaram com sentimento de culpa, mas foram adiante com a decisão. Corina esteve fiel a Joana e, na tentativa de convencer as amigas a desistirem, interrogou-as em forma de reflexão: “Olha, essa menina roubou o marido duma amiga nossa e a gente ainda fez docinho?” (p.142). Corina não se rendeu ao dinheiro e continuou ao lado de Joana. Entre inúmeros pontos de semelhança desta personagem com o Coro de Eurípides, ainda podemos pôr em relevo esta questão.

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que as vizinhas de Joana tinham à morte, tal-qualmente se comportara o Coro de Medeia. Para além disso, destaquemos a presença do sofrimento do Coro, quando Corina, no papel de Corifeu, demonstrou grande abalo emocional, ao encontrar mortas as crianças e a sua amiga Joana (p.167).

Em mescla com os temas supracitados, ainda podemos identificar a suave presença da temática da Pátria que nos aparece em forma de metáfora, ou melhor, de associação. Nenê, uma das personagens que compõe o Coro feminino, pontuou que Joana deixara seu lar e o seu cônjuge para ficar com Jasão (p.10). Esta observação acaba por configurar um desamparo semelhante ao que vimos acontecer em Medeia, na altura em que esta encontrava-se sozinha e apátrida. Tal questão não chega a ser desenvolvida, mas pode ser percebida e interpretada de tal forma, como aqui fazemos.

A justiça e a vingança não aparecem no Coro de Gota D’água como temas de grande peso como vimos acontecer em Eurípides, no entanto não foram olvidadas. Estas temáticas construíram-se e ficaram restritas ao Coro feminino, podendo ser percebidas através dos diálogos das vizinhas de Joana. Recordemos a passagem em que a personagem Maria afirma que Exu punirá Jasão e pontuemos também o desejo das mulheres da Vila em ver Jasão ser castigado (p.10), porém nada foi muito além disso. Vimos o Coro nos apresentar uma temática contraproducente, que, no fim, acabou por enfatizar a injustiça. Rememoremos que Corina, indignada com os infortúnios de Joana, repetia a sentença “não é certo, não é certo”, fazendo desta frase uma máxima dentro da obra125, quase como um sinônimo de: “Joana não merece, isto é uma injustiça”.

A protagonista de Gota D’água não teve êxito nos seus planos de vingança em busca de fazer justiça. Definitivamente, estes temas não estavam “de mãos dadas” com Joana, mas sim em direção oposta ao seu caminho, visto que todas as previsões e projetos de vingança/justiça não passaram de conjecturas.

Percebamos que os temas inerentes à obra, provindos do enredo da tragédia Medeia, são exclusivos do Coro feminino, à exceção do tema da amizade que é comum a todos. Ressaltemos ainda que estas temáticas inerentes aparecem apenas nos diálogos corais e não nas músicas. A partir do próximo tópico, veremos as novidades temáticas aduzidas pelas odes corais.

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