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3. ANÁLISE DO CORO DE MEDEIA DE EURÍPIDES

3.1. AS ODES CORAIS EM MEDEIA

3.1.7. QUINTO ESTÁSIMO: A CONCRETIZAÇÃO DO INFANTICÍDIO

Neste último estásimo, veremos uma ode que se assemelha bastante ao párodo, pois, além de cantar, o Coro dialogará com as personagens, o que ainda não havia acontecido nos estásimos anteriores. Esta última ode se difere de todas, tanto na questão comportamental do Coro, em que o pathos aparecerá com maior intensidade, quanto à organização estrutural do discurso.

Após o anúncio do mensageiro, revelando que a princesa e o rei de Corinto morreram, devido aos presentes envenenados enviados por Medeia, é chegada a hora da feiticeira concluir o ciclo de crimes que arquitetara. Nesta cena, que antecede a entrada do quinto estásimo, teremos uma Medeia contraditória: por um lado feliz pela morte da corte

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coríntia; por outro lado, envolta numa angústia por ter de matar os próprios filhos. Em seu discurso final, observaremos uma briga entre a razão e a emoção, onde encontramos duas mulheres opostas: uma mãe que reconhece o valor de um filho e uma esposa, profundamente ferida, que não se permite acovardar diante da vingança planejada. Mesmo sabendo que no futuro se arrependerá, Medeia prefere ir adiante com o crime (vv.1246-1250):

Anda, ó minha desventurada mão, empunha a espada, move-te para a meta dolorosa da vida, não te deixes dominar pela cobardia, nem pela lembrança dos teus filhos, de como eles te são caros, de como os geraste. Mas por este breve dia, ao menos, olvida, que depois os chorarás. Porque, mesmo matando- os, eles te são sempre caros e eu — que desgraçada mulher que eu sou!

O Coro, consciente de que as crianças estão à mercê da morte, retoma o desespero e, desta vez, de modo mais intenso. Essa grande agitação coral não se deve às angústias de Medeia, pois, como frisamos, o Coro já não se prende aos desequilíbrios da protagonista, como era costumeiro. Agora, as mulheres coríntias estão preocupadas com o destino das crianças que caminham para morte. Quando as portas da casa de Medeia cerram-se, o Coro, sabendo que o pior acontecerá, volta-se para os deuses com um lamento quase igual ao que fizera na sua primeira antístrofe do párodo: “Ó Terra, ó raios do Sol coruscantes, vede, oh! Vede esta mulher perdida, antes que com mão suicida ela ataque os próprios filhos.”(1251-1254). O Coro persiste em seus pedidos aos deuses para que impeçam a morte das crianças e, na antístrofe subsequente, questiona Medeia sobre o porquê da realização de tal crime contra a descendência que lhe é cara.

Se observarmos todos os outros estásimos iremos reparar que, em Medeia, as odes são organizadas de forma harmônica. Todas são compostas por quatro trechos divididos em estrofes e antístrofes, sendo que os primeiros trechos são voltados para um discurso temático, e os dois últimos têm sempre um discurso referente a Medeia, ou seja, na última estrofe e antístrofe, o Coro fala diretamente com Medeia, tratando-a como interlocutora. Geralmente, estes discursos são advertências ou tentativas de persuadir a protagonista a refletir sobre seus atos.

Neste quinto estásimo, o Coro comporta-se de maneira diferente, ainda mais do que acontecera no interlúdio. As mulheres coríntias quebram a ordem supracitada, e iniciam o discurso dirigindo-se a Medeia já na primeira antístrofe (vv.1261-1262): “Em vão o trabalho dos filhos, em vão a descendência cara tu geraste.” Notemos que o Coro volta a se dirigir à protagonista, mas agora não mais para aconselhar e sim para condenar seus atos. As quinze

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mulheres coríntias seguem o discurso oscilando entre dirigir-se a Medeia e a fazer reflexões sobre as decisões desta. Esta última ode, como enfatizamos, segue mais ou menos a mesma linha de organização do párodo. Talvez, tenha sido proposital, a fim de mostrar que o Coro terminou o ciclo coral da mesma forma como começou: em aflição.

A aflição é justamente a componente que sustenta este último canto, uma vez que, durante tal ode, as crianças serão assassinadas pela mão materna e, devido a isso, o Coro viverá o seu momento mais histriônico da peça. Se formos buscar à métrica, perceberemos que há uma considerável diferença no comportamento coral neste último canto, posto que os versos, que antes não demonstravam grandes alterações emocionais, mudaram para dócmios56. O ritmo

dócmio está relacionado com momentos de alta emoção57, seja ela boa ou ruim. Neste caso,

aplica-se a uma situação de sofrimento acutíssimo, em que o Coro já não vê salvação para as crianças.

No quinto estásimo, temos ainda a passagem do infanticídio, onde o Coro dialoga com as crianças exatamente no momento pré-morte (vv.1270-1278). A cena é tão comovente que as mulheres coríntias cogitam a possibilidade de invadir a casa e salvar os infantes do crime, mas não intervêm58. Ainda seria interessante pontuar a diferença de ritmo entre o diálogo das

crianças e do Coro, pois este continua em dócmios e os infantes manifestam-se em trímetro jâmbico59, sem aparentar alteração emocional.Apesar de as crianças demonstrarem medo da

situação e implorarem por socorro, talvez a inocência pueril não os permitisse compreender que morrer era algo definitivo, por isso a ausência de uma aflição mais pungente e expressiva como a do Coro.

Em remate, devemos dar relevância à questão do sofrimento exacerbado, por parte do Coro, que reparamos no quinto estásimo. Vem, então, a calhar a necessidade de elucidar as três partes essenciais para que o enredo de uma tragédia esteja completo. Neste capítulo, já foram mencionadas duas: o reconhecimento e a peripécia, e as mulheres coríntias, que

56 Vejamos o esquema métrico do diálogo entre o Coro e as crianças, momentos antes do infanticídio (vv.1273- 1281): Segunda estrofe, Coro: 2 δ | 2 δ || Primeira criança: 3 ia || Segunda Criança: 3 ia ||Coro: 2 δ | δ || Primeira criança: 3 ia || Segunda Criança: 3 ia ||Coro: : 2 δ | δ|2ia ∫ | δ || Cf: Lourenço (2011) p.153. 57 “In Medea, the chorus sings for most of the play in dactylo-epitrite rhythm; but when the events of the tragedy lead inexorably to the murder of Medea’s children, they change to dochmiacs.” Lourenço (2011) p.31

58 Se o Coro pensa em entrar no palácio é porque tinha alguma possibilidade de fazê-lo, entretanto não o faz. Este ponto leva-nos de volta à famigerada questão de que o Coro de Eurípides não é interveniente, porém vemos que esta não-intervenção se dá por escolha, ou quiçá por respeito às ações das outras personagens.Talvez, o Coro se porta deste modo também para colaborar com o pathos. Imaginemos que ele invada a cena e salve as crianças, o trágico esvai-se.

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compõem o Coro, estiveram presentes em ambas, ora como interlocutoras, ora como testemunhas. A terceira e última parte trata-se do pathos, ou melhor, do patético, que Aristóteles classifica em Poética como uma ação destruidora ou dolorosa60. No que diz respeito ao pathos,

vimos esta passagem acontecer no quinto estásimo e podemos asseverar que o Coro foi protagonista deste momento. Além de interlocutor, foi testemunha e sofredor latente, haja vista que conversou com as vítimas durante o crime, ouviu toda a cena da morte e, aparentemente, foi a personagem que mais demonstrou dor e desespero diante do aterrador filicídio.