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Taxa de grande

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os diversos elementos que pudemos organizar para esta dissertação nos revelam que, mais do que nunca, torna-se necessário, para a atualidade do nosso debate acerca da realidade que vivemos hoje e da posição que as mulheres e a classe trabalhadora de modo geral ocupam na sociedade, analisar este conjunto a partir do tripé “capitalismo-patriarcado-racismo”.

Nossa geração, sob a égide do sistema capitalista, convive cotidianamente com os rastros da alta concentração de renda que, no mundo inteiro, nos choca com os enormes contrastes e aberrações impostos por um sistema de caráter concentrador e exploratório. De outro lado, ideologicamente somos bombardeados para nos manter submissas e naturalizar este tipo de relação onde se reproduzem os valores individualistas, autoritários, machistas e perversos que o sistema impõe.

Este modelo de desenvolvimento capitalista tem produzido no mundo inteiro rastros de matança de pessoas e um nível de degradação ambiental jamais visto antes. Enquanto escrevo estas linhas finais sobre este trabalho, há dois dias, um avião sobrevoa passando veneno no entorno da escola família agrícola112 onde atuo como diretora, no município de Maracaju, neste momento da minha pesquisa e nesta etapa da vida. Nisso reside uma explícita demonstração de que não temos liberdade nem para escolher plantar sem venenos em nossos campos. Também não podemos comer alimentos sem venenos, e nem respirar ar puro. Nem podemos ter as nossas fontes de água protegidas, e ter os animais livres de contaminações. Também não podemos ter saúde plena. Ou seja, estamos vivendo uma espécie de ataque numa zona de guerra, e no lugar das bombas estão os litros de veneno por todos os lados!

Se, de maneira geral, a classe trabalhadora tem suportado um nível de exploração cada vez mais acentuado, sobre as mulheres camponesas essa realidade se torna ainda mais cruel quando analisadas as condições de vida de uma rotina de cerca de 12 horas de trabalho ao dia. As condições para a emancipação humana supõem tempo livre para estudar, para aprender novos conhecimentos, para fazer arte, para ter autodeterminação sobre si mesmo, sobre seu trabalho, sobre seu corpo.

Entretanto, é também no trabalho das mulheres que encontramos o planejamento da produção de alimentos para o sustento mais imediato das famílias. São elas que na sua grande maioria continuam plantando as ervas medicinais, continuam trocando as sementes e melhorando a biodiversidade, criam condições para que os pássaros e os pequenos animais tenham abrigo e alimentos. Enfim, cuidam de uma espécie de reconstrução do espaço onde estão do ponto de vista ambiental e social. Praticam, mesmo sem saber (que tem esse nome), elementos da ciência que conhecemos como agroecologia. E nas suas práticas, constroem a soberania alimentar chocando-se frontalmente com o modelo do agronegócio que impõe um ritmo exploratório e desagregador das comunidades.

112 Escola Família Agrícola Rosalvo Rodrigues da Rocha, localizada a partir de janeiro do ano de 2015 no município de Maracaju, maior produtor estadual de soja e milho, e o 4º maior de cana-de-açúcar. É considerado a capital estadual do agronegócio. A escola trabalha com adolescentes e jovens oriundos das áreas de assentamentos da reforma agrária de todo o Estado de Mato Grosso do Sul, onde faz formação do Ensino Médio integrado com o Técnico em Agropecuária com ênfase em Recursos Naturais, tendo como objetivo os princípios da ciência agroecológica para viabilizar a agricultura familiar e camponesa. Além das aulas teóricas, os estudantes fazem as práticas agroecológica no campo escola e nas comunidades onde vivem. Atualmente a escola está produzindo horta para consumo e comercialização, área de adubação verde, área de experimentos científicos dos estudantes do último ano de ensino, além da criação de pequenos animais.

As dificuldades que as mulheres encontram perpassam pelo lastro que o patriarcalismo tem em todas as esferas da vida humana, como uma ideologia reproduzida no cotidiano, sem que nem nos demos conta de como ela acontece. A naturalização de extensas horas de trabalho, a violência física e psicológica, a ausência total de lazer, a desqualificação de suas atividades, a não oportunidade de participar nas esferas de decisões quando o tema é produção de alimentos e créditos agrícolas, o impacto das contaminação dos alimentos, o fato de serem forçadas a trabalhar fora como diaristas por não conseguirem renda, a ausência de políticas públicas que cheguem até elas, a dureza com a qual se deparam com a terra na hora de produzir alimentos, as cadeias que as tornam reféns da verticalização da produção... são alguns dos elementos que visualizamos em nossa pesquisa de campo.

Ao longo da trajetória do MST, o movimento social ao qual se vincula o Assentamento Émerson Rodrigues, foram as mulheres que desde a década de 1980 visualizaram preliminarmente que a luta pela reforma agrária deveria ser radical, e que somente em grupos as mulheres poderiam promover o enfrentamento ao latifúndio e ao patriarcalismo. Nos anos pertencentes à década de 1990, as mulheres ocuparam todos os espaços e consolidaram as bases de uma organização camponesa de caráter nacional e com forte influência internacional que manteve firme princípios e valores humanistas e socialistas em tempos onde se pregava o fim das utopias pelos pensamentos de onda neoliberal. E nos anos da década de 2000 foram as mulheres camponesas que novamente voltaram à cena no enfrentamento radical ao agrohidronegócio e seu modelo devastador de produção. São as mulheres do MST e da Via Campesina que teimam em ações de caráter de enfrentamento a uma verdadeira guerra popular, permanente, prolongada e capaz de explicitar a atualidades das lutas de classe no campo brasileiro.

Ainda permanecem vários limites em nossa pesquisa. Sobretudo devido ao caráter da exigência do recorte geográfico e temporal. Porém compreendemos que, para nosso estudo de caso, tornou-se fundamental compreendermos as dinâmicas atuais do capitalismo, do patriarcado e do racismo e como estes se fundem construindo uma ideologia para manutenção das situações de opressão de uma classe sobre a outra.

Nossa pesquisa de campo suscitou outras questões para futuras análises, porque compreendemos que as mulheres devem ser pesquisadoras e pesquisadas, para darmos conta da totalidade da realidade. Porque compreendemos que as mulheres são metade da humanidade e a metade da produção do conhecimento acadêmico deve ser realizada pelas

mulheres. Porque a ciência não será neutra enquanto estiver sendo produzida pela maioria de homens, de ricos, de brancos.

As questões que levantamos no decorrer da pesquisa, nos reporta ao fato de que é urgente repensarmos quem somos e que tipo de humanidade estamos construindo. Por que chegamos a este grau máximo de exploração da vida e da natureza que nos destrói e nos torna escravos de nós mesmos? Como nós, mulheres, suportamos, não sem dor, carregarmos tanto peso (da violência física, econômica, social, emocional) por simplesmente nascermos mulheres em um mundo com uma condição de tanta desigualdade com os homens? Por que a nossa classe de trabalhadores e trabalhadoras não se insurge contra a injusta distribuição que acumula riquezas incalculáveis para os patrões? Por que suportamos extensas horas e cargas de trabalho em relações próximas à escravidão de nossos corpos? Por que nós como humanidade inventamos um sistema que nos autodestrói? Que tipo de humanidade sonhamos em deixar para as gerações que no futuro habitarão este planeta?

E, finalmente, acreditamos que existe, sim, a possibilidade de construirmos como humanidade outras formas de organização de uma vida em sociedade, anticapitalista e antipatriarcalista, e que tenha o ser humano como centro de seu projeto. E acreditamos que não é verdade que temos que nos adaptar a este modelo de sociedade, porém, questioná-lo em suas raízes e contribuir para transformá-lo radicalmente. Para isso, temos muito a aprender e a inventar. Temos aprendido, especialmente com os povos indígenas da América Latina, que a expressão “bem viver”113 que é a expressão da memória e do horizonte, é, para eles uma possibilidade de construção de outro mundo, a partir de um outro paradigma, assentado em outras formas de convivência entre seres humanos, entre seres humanos e a natureza, e com todo o cosmos. Para esta perspectiva se concretizar, mais do que nunca, torna-se fundamental que construamos nossas estratégias como classe trabalhadora, e façamos ecos à palavra de ordem, sempre atual em qualquer ponto do planeta em que estivermos: “Proletários do mundo: uni-vos!”.

Foto 34: fonte facebook/Espanha (2015). (Esta foto circulou entre as mulheres ativistas feministas da