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Todo ponto de vista é apenas a vista de um ponto.

Leonardo Boff

Ao finalizar o estudo, algumas perguntas puderam ser respondidas e outras tantas foram (re)construídas. Sabendo da parcialidade de tomar apenas o ponto de vista do profissional CD, e da parcialidade do olhar do investigador, chega-se ao consenso de que o fenômeno estudado envolve campos interdisciplinares que ultrapassam a possibilidade de apreendê-lo em todas as suas dimensões, as quais vão além da capacidade reflexiva do pesquisador. Na verdade, com este estudo não se pretendeu esgotar o assunto, mas sim apontar caminhos que pudessem contribuir para a consolidação da saúde bucal no PSF.

O estudo demonstrou que a inserção do CD no PSF está vinculada à saturação da Odontologia no espaço privado e à possibilidade de estabilidade financeira para o profissional. Sob nova política de atenção, numa perspectiva coletiva, os CDs começam a redefinir as habilidades exigidas nesses serviços: habilidades não apenas técnicas, mas, sobretudo relacionais, que, conforme argumenta Zanetti (2001), possibilitam enfrentar as incertezas e dificuldades características da esfera pública.

Ao proceder à coleta de dados, os resultados apontaram para mudanças importantes no cotidiano do CD, ao contrário do que era esperado pelo pesquisador, já que a revisão de literatura sobre o assunto mostrava poucas mudanças no processo de trabalho e nas práticas de saúde bucal no PSF em outros cenários. Foi possível apreender a dimensão mais subjetiva das mudanças, no nível mais relacional. Dessa maneira, pode-se compreender que o modelo proposto pelo PSF, estrutura mudanças organizacionais no processo de trabalho do CD, que ao sair do espaço exclusivamente clínico, a partir das visitas domiciliares, das reuniões de equipe, dos encontros na comunidade, amplia seu horizonte profissional e seu olhar sobre o processo saúde-doença-cuidado.

A responsabilização pelos usuários advindos de territórios específicos e a interação proporcionada pelo trabalho em equipe também demonstraram ser potentes dispositivos de transformação das práticas, agenciando a construção recíproca de vínculo entre os CDs e os demais trabalhadores das equipes, e desses com a comunidade, produzindo cuidado.

Todavia, tal cenário é marcado de conflitos e contradições, caracterizando uma linha de tensão cotidiana vivida pelo CD, que depara com uma grande demanda por necessidades curadoras a qual não legitima as atividades do CD realizadas fora da clínica.

A análise do cotidiano do CD no PSF demonstra a fragmentação entre as ações clínicas e aquelas de cunho educativo-promocional. A relação desigual entre ESB e ESF dificulta sua atuação de forma integral, já que passa a ser parte de várias equipes e a ser responsável por mais de um território, tendo situações de relação com até quatro territórios, impossibilitando que, de fato, haja mudança no modelo de atenção. Portanto, pode-se inferir que existem mudanças nas práticas e nos sujeitos, mas questiona-se se há mudança concreta no modelo de atenção à saúde bucal tradicionalmente curativo.

Dessa forma, para a consolidação das práticas de saúde bucal no PSF de Vitória, os sujeitos reportam desafios tanto na ordem da organização dos serviços, tais como: organização da demanda espontânea e a necessidade de contratação de mais profissionais, a necessidade de ampliar a atenção especializada, a falta de levantamento epidemiológico e de padronização do sistema de informação, bem como desafios de ordem mais relacional, nos micro-processos de trabalho, a saber: a integração entre profissionais da equipe, a motivação e interesse dos diversos profissionais para a Saúde Coletiva e a construção de vínculos, afetos e responsabilizações entre profissional-paciente.

Os sujeitos também reportam desafios mais estruturais da própria categoria profissional, como: maior politização da classe, e processo de formação mais condizente com as necessidades de saúde bucal da população e com a amplitude interdisciplinar envolvida no campo da Saúde Coletiva, sobretudo ao que diz respeito

às ciências sociais e humanas e ao desenvolvimento de competências mais relacionais envolvidas no processo do cuidar.

Antes de finalizar, pode-se destacar alguns pontos que, por não terem sido objetivos primários desse estudo, necessitariam maior reflexão. O primeiro é que o CD faz poucas menções ao usuário como sujeito político, co-responsável pelo ato de cuidar, o que leva a questionar a participação do sujeito usuário nesse processo.

Outro ponto para reflexão é que é possível afirmar que existem mudanças significativas no cotidiano do CD operadas pelo modelo do PSF, todavia, é mais por uma pressão do mercado que o profissional vê a necessidade de abraçar esse novo caminho, e capacitar-se para isso, o que explica a movimentação dos sujeitos para especializarem-se em Saúde Coletiva. Essa asserção levanta a necessidade de serem realizados estudos mais aprofundados que possam abordar a influência das mudanças societárias, como os efeitos da globalização, sobre a Odontologia e suas práticas, no momento atual.

O terceiro ponto é que a problematização da saúde bucal no PSF remete a questões do SUS como um todo, em todos os seus níveis, e passa a exigir novas articulações institucionais para fazer frente, com alguma competência, às demandas acumuladas.

O esforço institucional de gestores de US e da própria coordenação de saúde bucal do município vem sendo reconhecido de maneira positiva pela maioria dos profissionais, sobretudo no que diz respeito às especializações em Saúde Coletiva, patrocinadas pela instituição. Campos (2007) afirma que a mudança opera quando há um esforço conjunto entre os trabalhadores da saúde, incluindo gestores, e desses com os usuários, de modo que o objetivo final seja atender à necessidade de saúde desse usuário.

Não se pode deixar de mencionar que muitas vezes a gestão de saúde é ‘engessada’ pela própria estrutura do Programa, que separa a saúde bucal da saúde geral, e regulamenta a pactuação de metas entre a esfera federal e estadual, com o município, de acordo com produtividade.

Levando em consideração os desafios destacados pelos próprios CDs para o desenvolvimento de seu trabalho no PSF, considera-se necessário: ampliar o quadro de CD, para que seja possível trabalhar minimamente dentro dos princípios de territorialização, ampliando o acesso da demanda aos serviços; capacitar as equipes de saúde bucal regularmente; incorporar projetos intersetoriais e avaliar os serviços prestados; estimular maior integração das equipes, sob a lógica da humanização do cuidado e da dimensão ético-solidária do trabalho; estimular maior participação e empoderamento dos usuários; redimensionar a formação em Odontologia para o sentido ético-social da prática; avaliar o arcabouço do Programa, tendo em vista a integralidade das ações.

Nesse sentido, acredita-se que a inserção concreta do CD no PSF depende não somente da postura do profissional, mas também de mudanças em todas as dimensões envolvidas na organização do serviço de saúde bucal, sendo necessária a construção de um elo entre os trabalhadores, os usuários e os gestores, em harmonia com o projeto institucional.

Foi possível observar que, sob a lógica do cuidado e da integralidade em saúde, a construção de projetos coletivos torna-se viável, e os cirurgiões-dentistas redimensionam suas práticas, trazendo a possibilidade de configurar processos de trabalho que não operem somente sob um agir instrumental, mas que permitam construir novas relações de trabalho, espaços de negociação e escuta, entre profissionais e usuários. Enfim, concorda-se com Honorato e Pinheiro (2007) quando dizem que, no campo da saúde, é preciso pensar a alegria na atividade, não apenas como estímulo que antecede e justifica o trabalho, mas como sendo gerada na atividade, potencializando-a.

Finalizando, o estudo permitiu conhecer a condição dialética vivida pelo CD em seu processo de trabalho no PSF, que aponta possibilidades para o sucesso, a partir de um espaço de contradições e dificuldades.

Nesse sentido, o PSF indica um processo em construção, em que os desafios estão colocados. A superação dos mesmos implica em estratégias que permitam recriar os espaços, e que possam abraçar a complexidade envolvida na produção do cuidado

integral em saúde, cuja responsabilidade é dos envolvidos no sistema como um todo.