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A INSERÇÃO DA SAÚDE BUCAL NA SAÚDE DA FAMÍLIA: O PAPEL

3 A MUDANÇA DE MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE: O PROGRAMA

3.4 A INSERÇÃO DA SAÚDE BUCAL NA SAÚDE DA FAMÍLIA: O PAPEL

A Saúde Bucal vem, de forma gradativa, ganhando maior visibilidade na política nacional de saúde, já que historicamente tal setor vinha sendo estruturado a partir de ações incipientes.

A necessidade de melhorar indicadores epidemiológicos e de aumentar o acesso exíguo aos serviços de saúde bucal, demonstrado pelos resultados do PNAD de 1998, aliada à pressão política exercida por entidades odontológicas como os sindicatos, os conselhos regionais e por alguns cirurgiões-dentistas engajados no movimento da Reforma Sanitária Brasileira, desde as décadas de 80, impulsionaram a incorporação desse setor ao PSF (BRASIL, 2000b; IBGE, 2000; DIAS, 2006). A inserção da saúde bucal na Saúde da Família foi formalizada em 2000, a partir da Portaria n° 1.444 de 28 de dezembro de 2000, a qual estabeleceu incentivo financeiro para reorganização da atenção à saúde bucal pelo Programa de Saúde da Família (BRASIL, 2000b).

Pela Portaria, são criadas duas modalidades de Equipes de Saúde Bucal (ESB) – a modalidade I, composta pelo CD e Auxiliar de Consultório Dentário (ACD); e a modalidade II, composta pelo CD, ACD e Técnico de Higiene Dental (THD), sendo necessário que haja disponibilidade de equipo e cadeira para o THD, para que a ESB possa ser considerada como de modalidade II.

Ficou estabelecido ainda que a ESB fosse responsável por uma população de aproximadamente 6.900 habitantes. Nos municípios com população superior a esse número, recomendava-se a proporção de uma ESB para duas ESF já implantadas ou em processo de implantação. Essa relação desigual entre ESB e ESF foi bastante criticada, pois a população adstrita a uma ESB seria o dobro da população de uma ESF. É apenas a partir da publicação da Portaria n° 673, de 3 junho de

2003, que a equiparação de uma ESB para uma ESF passa a ser permitida, porém, esta fica a critério do gestor municipal (BRASIL, 2000b ; DIAS, 2006).

Com a publicação da NOAS/2001, em 26 de janeiro de 2001, a saúde bucal passa a ser uma das sete áreas de atenção prioritária, junto com a saúde da criança, saúde da mulher, controle da tuberculose, da diabetes, da hipertensão e erradicação da hanseníase. Todavia, as ações de saúde bucal priorizavam a população de zero a quatorze anos e gestantes, de modo que a atenção à maioria dos demais grupos populacionais limitava-se aos atendimentos urgenciais, sem o agendamento prévio de consulta (BRASIL, 2001b; GONSALVES, 2005).

Em 06 de março de 2001 é publicada a Portaria n.° 267, a qual estabelece as normas e diretrizes de inclusão da saúde bucal no PSF, bem como o Plano de Reorganização das Ações de Saúde Bucal na Atenção Básica. Posteriormente revogada pela Portaria n.° 648, de 28 de março de 2006, tais documentos especificam ainda as responsabilidades de cada esfera do governo, o financiamento, o elenco de procedimentos de saúde bucal na Atenção Básica (ANEXO A) e as atribuições de cada profissional da Equipe de Saúde Bucal (ESB) (BRASIL, 2001a; 2006b).

Esses documentos reafirmaram os princípios e diretrizes do SUS, para a reorientação das ações de saúde bucal, e elencaram também os seguintes princípios: caráter substitutivo das práticas tradicionais, adstrição da população à USF, integralidade da assistência à saúde bucal, articulação da referência e contra- referência dos serviços com maior complexidade, definição da família como núcleo de abordagem, humanização do atendimento, abordagem multiprofissional, estímulo às ações de promoção de saúde, à intersetorialidade e ao controle social, educação continuada dos profissionais e acompanhamento e avaliação permanente das ações realizadas(BRASIL, 2001a; 2006b).

As mudanças no setor intensificaram-se ainda mais, após a divulgação dos resultados do levantamento epidemiológico nacional em saúde bucal realizado em 2003 e publicado em 2004, o SB Brasil. Pelo levantamento, ficaram evidenciados alguns pontos críticos da saúde bucal da população brasileira: alta prevalência de edentulismo entre adultos e idosos, com perda dentária iniciando-se precocemente,

declínio da cárie de maneira desigual entre as regiões brasileiras, municípios sem fluoretação de água com piores índices de prevalência de cáries quando comparados com os municípios com fluoretação, baixo acesso de adolescentes, adultos e idosos aos serviços de atenção à saúde bucal (BRASIL, 2004c).

É nesse contexto que as autoridades nacionais evidenciaram a saúde bucal como uma das prioridades de governo. Sendo assim, em janeiro de 2004 foram publicadas as Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal com o objetivo de ampliar e qualificar a Atenção Básica, possibilitar o acesso a todas as faixas etárias e ofertar mais serviços, assegurando atendimentos nos níveis secundário e terciário, de modo a buscar a integralidade da atenção, além da eqüidade e a universalização do acesso às ações e serviços públicos de saúde bucal (BRASIL, 2004a).

Para tornar possível tal expansão, em julho de 2004 foram criados os CEOs e os Laboratórios Regionais de Próteses Dentárias (LRPD), como uma das ações do Programa Brasil Sorridente15, criado pelo Governo Federal (BRASIL, 2004a; 2006a; 2006c).

A criação dos CEO foi um marco na história das políticas públicas de saúde, pois permitiu a incorporação das ações especializadas como – diagnóstico bucal, com ênfase no diagnóstico e detecção do câncer de boca; periodontia especializada; cirurgia oral menor dos tecidos moles e duros; endodontia e atendimento a portadores de necessidades especiais. A referência para o CEO deve partir das unidades básicas de saúde e unidades de saúde da família e o contra- referenciamento deve ser assegurado, para que haja continuidade na assistência ao usuário.

Todavia, por ser iniciativa recente e com oferta limitada de serviço especializado, os CEO não atendem a todas as demandas referenciadas, o que compromete os princípios da integralidade e da universalidade, conforme já vem sendo demonstrado por alguns estudos (SANTOS; ASSIS, 2006; SOUZA; RONCALLI, 2007).

15 Política Nacional de Saúde Bucal, lançada em 17 de março de 2004 e vigente até então.

Apresenta, como principais linhas de ação, a viabilização da adição de flúor a estações de

tratamento de águas de abastecimento público, a reorganização da Atenção Básica e da Atenção Especializada (através, principalmente, da implantação de Centros de Especialidades

Hoje, a expansão da saúde bucal no PSF e sua articulação com as ações especializadas são ações prioritárias do governo. De dezembro de 2002 até dezembro de 2007, foram implantadas 11.433 novas Equipes de Saúde Bucal (ESB) no PSF, totalizando mais de 76 milhões de pessoas cobertas por estas equipes (um aumento de mais de 192% na cobertura). A meta para 2010 é chegar ao total de 24 mil ESB em funcionamento (BRASIL, 2008b).

Apesar de ser indiscutível o aumento na oferta de serviços de saúde bucal, o crescimento em número de ESB não garante que esteja havendo, concomitantemente, a reorientação na qualidade dessas práticas. Na própria Diretriz Nacional é reconhecido que o maior desafio da inserção da saúde bucal no PSF diz respeito ao processo de trabalho e às práticas cotidianas dos profissionais.

Outro aspecto fundamental desta estratégia diz respeito ao processo de trabalho. Ao colocar para a saúde bucal a proposta de sua inserção em uma equipe multiprofissional, além de introduzir o ‘novo’, afronta valores, lugares e poderes consolidados pelas práticas dos modelos que o antecederam. Esta situação traz o desafio de se trabalhar em equipe. Para a Saúde Bucal esta nova forma de se fazer as ações cotidianas representa, ao mesmo tempo, um avanço significativo e um grande desafio. Um novo espaço de práticas e relações a serem construídas com possibilidades de reorientar o processo de trabalho e a própria inserção da saúde bucal no âmbito dos serviços de saúde. [...] As maiores possibilidades de ganhos situam-se nos campos do trabalho em equipe, das relações com os usuários e da gestão, implicando uma nova forma de se produzir o cuidado em saúde bucal (BRASIL, 2004a, p. 16).

Sendo assim, com relação ao processo de trabalho do CD inserido no PSF, cabe o desafio de trabalhar em equipe e de desenvolver novas formas de produzir o cuidado em saúde bucal, de modo que o papel a ser desempenhado por ele seja o de cuidador, o que transcende a mera reprodução mecânica de atividades e incorpora a dimensão subjetiva do trabalhar em saúde.

Além da relação com o usuário, muda também a relação com os colegas da equipe. Nesse sentido, há o deslocamento de um profissional que historicamente desenvolve suas atividades de maneira individualizada e fragmentada, para um lócus de trabalho coletivo, onde se faz necessário compartilhar responsabilidades e projetos com toda uma equipe de saúde. Pode-se então concluir que há mudança na cultura organizacional do trabalho do CD no PSF.

A atuação de todos os membros das ESB é atualmente regulamentada pela Portaria n.° 648, de 28 de março de 2006. As principais atribuições comuns a todos os

profissionais da equipe, o CD, a ACD e o THD, constam da organização do processo de trabalho de acordo com as diretrizes do PSF e plano municipal, da identificação das necessidades da população em saúde bucal, da promoção da saúde e da saúde bucal, com atividades de educação e prevenção, da execução de ações básicas de vigilância epidemiológica, da programação e realização de visitas domiciliares, do planejamento, da avaliação das ações desenvolvidas e do desenvolvimento de ações intersetoriais (BRASIL, 2006b).

Ao núcleo de ação do CD especificamente cabe a coordenação de ações coletivas e a supervisão do ACD e THD, a realização de procedimentos clínicos e a manutenção da integridade do tratamento, o desenvolvimento de atividades de educação em saúde, promovendo a integração entre atividades clínicas às de saúde coletiva, o encaminhamento referenciado para outros níveis de complexidade, o registro no SIAB e a realização de levantamentos epidemiológicos (BRASIL, 2006b). Enquanto promotor de saúde, o CD inserido na atenção básica tem a responsabilidade de desenvolver todas as atividades de maneira articulada, auxiliando os usuários a se capacitarem na busca de sua qualidade de vida e da coletividade, a partir de uma visão ampliada sobre o processo saúde-doença (AERTS; ABEGG; CESA, 2004; MANFREDINI, 2006; SHEIHAM; MOYSES, 2000). Todavia, alguns estudos sobre o trabalho do CD, no âmbito do PSF, mostram o predomínio do desenvolvimento das práticas de saúde bucal focalizadas no atendimento clínico (ARAÚJO; DIMENSTEIN, 2006; BALDANI et al., 2005; ESPOSTI, 2007; GONSALVES, 2005; OLIVEIRA; SALIBA, 2005).

Em contrapartida, Santos et al. (2008) encontraram que as práticas de saúde bucal no PSF facilitam o desenvolvimento de tecnologias do tipo relacionais, pois permitem o estreitamento do vínculo entre profissionais e usuários.

Além desses aspectos, foram também demonstradas a precariedade nas relações de trabalho do CD com o município e a necessidade de readequar o perfil do CD para o PSF (ARAÚJO; DIMENSTEIN, 2006; BALDANI et al., 2005; ESPOSTI, 2007; OLIVEIRA; SALIBA, 2005; SOUZA; RONCALLI, 2007).

Nesse sentido, Manfredini (2006) faz uma ressalva quanto ao perfil profissional dos CDs que vêm sendo inseridos nas equipes, já que muitos são incorporados ao PSF de maneira acrítica, sem que haja cursos de capacitação. Para o autor, a modalidade de contratação dos profissionais e as descontinuidades das ESF, também influenciam a qualidade do trabalho das ESB. Dessa forma, esses estudos apontam que a inserção da Saúde Bucal na saúde da família configura-se como processo em construção, e, como tal, muitos desafios se colocam para todos os profissionais das ESB, sobretudo para o CD, para que seja protagonista das mudanças de prática.

Para Zanetti (2001) e Moysés (2004), o trabalho na Saúde Coletiva exige dos CDs habilidades para ultrapassar o limite da ação individual (privada) para alcançar a ação coletiva, o que é desafiador para tal profissional, pois ainda é qualificado para a ação curadora e para a esfera privada.

Conforme aponta Silveira Filho (2002), a saúde bucal no PSF incita um amplo debate para o setor, já que o serviço público torna-se alternativa promissora de mercado de trabalho e há necessidade de revisão das técnicas de promoção e prevenção em saúde bucal, ainda centradas no preventivismo, de apreensão da epidemiologia social e do planejamento estratégico, de compreensão dos processos sociais e de se constituírem outros níveis assistenciais, como as especialidades de Endodontia e Prótese.

A Saúde Bucal, no lócus das práticas coletivas, necessita resgatar todas as suas tecnologias, incluindo as relacionais. Sendo assim, precisa ser ressignificada (BOTAZZO, 2005).

A operacionalização do PSF deixou visível a questão da formação dos CDs, uma vez que inclui a mudança dos cenários de prática, a partir de uma concepção de trabalho pautada pela interação em equipe e sob a forma de atenção interdisciplinar, em que a ampliação do trabalho do CD requer mudanças ético-políticas (SERRA; GARCIA; MATTOS, 2005).

Segundo Moysés (2004, p. 34):

As necessárias mudanças devem começar na formação profissional e na visão de mundo reproduzida dentro das academias, pois certamente nestes

espaços também começa a formação das possibilidades para a empregabilidade futura do cirurgião-dentista e de sua relevância social.

Torna-se fundamental que a Odontologia, protagonizada pelos CDs, ocupe de fato seu espaço dentro das discussões sobre as mudanças de modelo de atenção, sobre as competências a serem desenvolvidas pela categoria, bem como sua relação com as demais profissões de saúde, de forma que contribua de maneira concreta para a melhoria das condições de saúde da sociedade que atende (SERRA; GARCIA; MATTOS, 2005).