A fragmentação entre os assuntos que constituiu nosso trabalho está espelhada, não sabemos precisar até que ponto, na própria escritura dos filmes. O hibridismo entre formas canônicas do cinema e as muitas formas de organização das equipes acabam nos encorajando a continuar pensando as imagens desse cinema como forma viva, que reflete e problematiza a organização social em curso. Filmes que fogem da “constituição moderna”, como nos fala Latour, que estão pouco interessados em processos de “purificação”, que buscam sua potência na resultante de um acúmulo de observações particulares do mundo, assumindo sua hibridização e potencializadas pelo fato de se reconhecer como esforço em grupo, nosso impulso encantatório seminal para a pesquisa. Estar em grupo possibilita que os projetos a ser realizados sejam considerados não a partir de uma estrita demanda comercial, mas a partir de necessidades expressivas, estéticas, afetivas compartilhadas. Ao colocar esses fatores em primeiro plano, um filme feito em grupo também precisa apresentar um processo poroso o suficiente para contemplar as necessidades expressivas, estéticas e afetivas de cada sujeito envolvido, uma atenção constante às diferenças, um exercício diário de alteridade. Entre o coletivo e o individual, existe o que podemos, existe o que existe. “Somos todos grupúsculos”, como diz Guatarri, e a experiência dos grupos parece radicalizar essa assertiva.
Fomos acompanhados em todo esse percurso pela iminência de convocar outros atores e mediadores que poderiam compor, talvez até de maneira mais eficiente, nossa compreensão sobre a produção com a qual decidimos dialogar. São muitos os artefatos sócio-‐técnicos em intensa relação com uma equipe de cinema, como os equipamentos de áudio e seus vários itens -‐ de microfones a pilhas – as cada vez mais portáteis ilhas de edição, a batalha dos softwares de edição para se firmar como a melhor escolha -‐ poderíamos falar da Apple ao invés da Sony. Poderíamos convocar os editais públicos dos outros estados e suas disposições locais, as leis de fomentos federais e suas mutações frente às mudanças de quadros de gestões governamentais. Poderíamos ainda pensar ideias de financiamento conjunto internas aos grupos, ou o crowdfunding, modalidade que vem ganhando cada vez mais espaço no imaginário e nos números de financiamento direto bancados por pessoa física. Ao mesmo tempo, os circuitos de exibição convencionais estão em franca batalha por manter-‐se enquanto que a circulação pela internet resiste à completa normatização. Ao longo da pesquisa, muitas novas parcerias se
firmaram, novos filmes aconteceram, locais de exibição foram inventados, tecnologias foram aprimorando possibilidades de circulação dos filmes – um streaming em 2013 já é bem superior a 2011. Não se trata apenas da dinâmica de trabalho em um país continental, mas de um espaço-‐ tempo como a humanidade nunca presenciou, com as imagens como constituintes decisivas das dinâmicas ligadas ao modo de organização das civilizações contemporâneas. Enumeramos essas possibilidades não como um a menos da pesquisa, mas como abertura de horizonte e maneira de internalizar que o esforço do pesquisador precisa ser continuado e a atenção às associações cada vez mais desdobradas, pelo que constituem de sociedade.
Destacamos esses grupos enquanto poderíamos estar falando de vários outros da mesma região ou de locais diferentes do Brasil. Se não o fizemos, é porque o momento inicial da pesquisa nos fez reconhecê-‐los como pontos de concentração e circulação de obras, informações e parcerias. As trocas entre esses grupos já estavam em curso, o que acabava por materializar desde aquele momento a intuição de que, ao falar de cada um dos grupos ou coletivos, já falávamos de um gesto mais amplo e que englobava uma série de outros atores. Ainda assim, gostaríamos de ter tido mais fôlego para falar de diversas iniciativas que consideramos excepcionais, como a Cavideo, de Cavi Borges, e os filmes de baixíssimo custo (já conta com mais de cem títulos) que vem produzindo, além da locadora que funciona como local de convergência no Rio de Janeiro. Ações como a Filmes a Granel, de João Pessoa, reunindo vários realizadores em forma de uma cooperativa fugaz, que se dissolve quando cada realizador, com a colaboração dos outros envolvidos, consegue concretizar seu filme, também é um tipo de configuração original e que aponta para conexões diretas com instituições como o SEBRAE, patrocinadores de ações culturais. Poderíamos enumerar muitos outros pontos separados geograficamente que se encontram a partir de valores estéticos e éticos.
Sobre os filmes, desde o começo nos acompanhava a sensação de que estávamos falando de uma só obra, modulada de formas distintas a partir da mesma matéria. Essa sensação foi reforçada diante dos recentes levantes populares ao redor do Brasil, nos meses de Junho e Julho de 2013. Sábado à Noite e O Céu Sobre os Ombros filmam locais onde ocorreram (ocorrem?) conflitos em suas respectivas cidades, locais onde habitam populações de baixa renda ou que são zonas comerciais, abandonadas durante a noite. Ainda assim, por paradoxal que seja, nos parece que o cenário comum aos filmes seria melhor definido como sendo formas de organização das cidades contemporâneas do que uma contingência de cidade ou uma vizinhança, já que esses filmes criam circuitos em locais onde geralmente as representações do espetáculo não estão. Pacific traz um questionamento estrutural sobre trabalho, tempo livre e espetáculo, talvez não muito diferente do tempo livre dos personagens que vimos nos outros filmes, enquanto que os passageiros e o navio são parte da mesma forma-‐cidade. Em todas as obras, nossos personagens são emanações desses embates, são percebidos em contato com as asperezas do mundo,
encontrando seus modos de existir mediante alguma porosidade que apresentam os eventos particulares, as instituições, as ruas em horários desfuncionalizados, quando a cidade dorme. Algumas vezes, a hierarquia entre humanos e não-‐humanos é reavaliada e o mobiliário urbano, os objetos de uma casa, os meios de transporte deixam de ser paisagem e passam para o primeiro plano. A rua e os interiores se confundem em suas funções de pontos de passagem e pontos de repouso. A vida privada das pessoas só interessa a essas obras enquanto o impessoal e a instituição de um comum puderem ser investigadas. Para esses desafios, novos olhares. Novos não como algo decalcado de uma pretensa originalidade, mas mais próximo de um re specto, olhar de novo para o que se naturaliza e teima em limitar o campo perceptivo.
Por último, nos fica a esperança de que essas formas vivas de organização e de expressão artística possam fundar novos modelos de continuidade para seus trabalhos, que esse momento não seja uma moldura para a nostalgia futura, mas prolongamento de linhas de força que tornem possíveis para mais indivíduos experimentarem mais possibilidades de existência, de acordo com seus desejos.
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