Torquato Neto
3. Ao fim do percurso, eles foram abordados e convidados a ceder suas imagens para um documentário
Corte para imagens sem foco aparente, como se filmadas acidentalmente. O adorno de um vestido, a escuridão, mãos. Enquanto isso, vozes cautelosas tentam se ajudar na missão de operar a câmera. Duas senhoras tentam “domar” o objeto, que está ligado e fora de controle. Uma voz mais jovem junta-‐se à discussão e percebe que a câmera já está funcionando: "-‐Pronto, tá gravando!"
Corte para um grupo de dança com roupas de gala prateadas, incluindo cartolas reluzentes, executando New York, New York28. A pouca iluminação faz com que ocorra a diminuição automática do shutter29, o que confere um aspecto fantasmagórico, de rastro, ao ambiente de luzes roxas. Muitas outras câmeras estão apontadas na direção da atração: Start spreadin' the news / I'm leaving today / I want to be a part of it / New York, New York. Com a
28 A música-‐tema do musical homônimo de 1977, dirigido por Martin Scorsese. Os personagens de Liza Minelli (Francine Evans, cantora) e Robert de Niro (Jimmy Doyle) se conhecem no dia em que acaba a segunda guerra mundial e tem início o romance. A música ficou muito popular nas vozes de Liza Minelli e Sinatra.
29 Mecanismo que controla a velocidade de exposição da câmera à luz incidente. Quanto maior o valor relativo, menor é a quantidade de luz chega ao sensor da câmera e o sensibiliza, dificultando tomadas em situação de pouca luminosidade.
música ainda tocando, surge o título do filme: Pacific. Abaixo, num lento fade in, "um filme de Marcelo Pedroso". I wanna wake up in that city / That doesn't sleep / And find I'm king of the hill / Top of the heap.
Essas são as cenas iniciais, prólogo do filme. Elas anunciam o que veremos durante os próximos setenta minutos, acompanhando turistas a bordo de um Cruzeiro, nome original do projeto de curta-‐metragem que culminou na realização do longa-‐metragem Pacific. Antes das cenas iniciais, outras imagens marcam o início da projeção: a logo da Símio filmes -‐ grupo do qual Pedroso faz parte -‐ surge, ficando alguns segundos na tela, seguida de outra cartela onde vemos três marcas alinhadas: do lado esquerdo a da Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco); no centro, a da Secretaria de Educação; e, no canto direito, Governo de Pernambuco. Estas instituições estão envolvidas no financiamento do filme através do Edital do Programa de Fomento ao Audiovisual do Estado de Pernambuco, nosso objeto de investigação neste segundo capítulo. Por meio do acompanhamento da trajetória de Pacific, o longa, elencaremos outras experiências de filmes produzidos pela Símio e outros grupos atuantes em Recife, como a Trincheira Filmes.
Ao fazer esse movimento nos aproximamos também de outros grupos do Brasil, já que a política de editais públicos para o audiovisual tem sido a principal fonte de financiamento para grupos de realizadores independentes. Interessa entender melhor como os grupos mobilizam os editais e como os editais mobilizam os grupos.
A Símio filmes nos interessa por concentrar várias experiências de financiamento. Entre filmes cuja verba sai inteiramente do bolso dos realizadores, como no caso do curta-‐metragem 15 centavos (2005) de Marcelo Pedroso; assim como longas-‐metragens que receberam incentivos muito abaixo do patamar de baixíssimo orçamento do MinC30, variando entre Amigos de Risco (2007), dirigido por Daniel Bandeira, com orçamento de cinquenta mil reais; até KFZ 1348 (2008), dirigido por Marcelo Pedroso e Gabriel Mascaro, com orçamento de quinhentos e cinquenta mil reais31.
Amigos de Risco obteve repercussão após sua estreia no 40º Festival de Brasília, em 2007. Realizado em Mini-‐Dv e finalizado em 35mm (exigência para participar do Festival de Brasília) o filme foi destacado, entre outros fatores, por apontar uma relação entre técnica e
30 O Edital de Apoio à Produção de Filmes de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura contemplou projetos no ano de 2012 com um milhão e duzentos mil reais. Amigos de Risco foi feito com menos de dez mil reais, assim como Estrada para Ythaca (2010) e Os Monstros (2011), ambos da Alumbramento. A continuidade de projetos como esse são impensáveis, já que os realizadores não conseguem se manter, mas aponta para um outro padrão possível de financiamento de filmes, capaz de mover todo o contexto produtivo desse mercado.
31 Prêmio concedido através do edital Documenta Brasil, uma parceria entre a Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão (ABPI-‐TV), a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, a Petrobras e o SBT Sistema Brasileiro de Televisão. O edital teve uma única edição. A produtora responsável pela gestão dos recursos foi a REC Produtores. O filme ainda contou com apoio do Governo do Estado para um transfer em 35mm.
estética que traria de volta um debate sobre modos de produção, como aponta o crítico Cléber Eduardo:
No volume póstumo Trajetória no Subdesenvolvimento, que inclui o texto “Uma Situação Colonial?”, Paulo Emilio Salles Gomes desenvolve a ideia de que, sendo o Brasil subdesenvolvido, seu cinema também o é, com os filmes refletindo, de alguma forma, os traços da própria formação brasileira. Se não sabemos copiar o “outro”, o “ocupante” (o cinema americano), só nos restaria fazer um “outro” cinema, que espelhasse a condição de “sub”.
e
O comunicado escrito no começo dos anos 70 para um congresso, a rigor, retoma com diferenças o manifesto “Por uma Estética”, de uma década antes, ao entender a condição periférica no capitalismo como estímulo para uma estética adequada à realidade. Nesse sentido, Amigos de Risco, sem ser glauberiano em nenhum fotograma, traz de novo essa questão à tela – agora em um momento histórico no qual o padrão de imagem e de som é rigoroso, com código técnico de exibição pautado pelo “perfeccionismo”, mas sem necessariamente uma postura estética em relação a seu material (EDUARDO, 2007).
Se as condições de produção são radicalmente diferentes das que Paulo Emilio encontra em seu tempo, modificações substanciais também ocorrem do momento em que Cléber Eduardo escreve sobre o lançamento de Amigos de Risco, em 2007, até agora. A Mostra de Tiradentes, da qual Eduardo é curador, por exemplo, torna-‐se um local importante de discussão, como veremos no capítulo seguinte. Por hora, gostaríamos de entender melhor quais condições de produção ligadas ao financiamento público de cinema em Pernambuco possibilitaram o atual panorama, em que o estado aparece como um dos principais contextos de produção, pesquisa e reflexão sobre cinema autoral do país. Interessa explicitar os movimentos que se fazem entre o trabalho de uma produtora importante no cenário contemporâneo, as práticas de produção e a presença do Estado nessas práticas; para isso nos centraremos em um filme: Pacific.