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As operações de diversificação das plantas cultivadas, bem como as atuações das políticas brasileiras que objetivam estas operações, conduziram a dissertação ao conceito etnográfico de agrobiodiversidade. Por sua vez, a malha semântica e administrativa associada a este conceito demonstrou estar filiada tanto às políticas públicas da “cultura” quanto as da “natureza”. Diante desta primeira constataç~o etnográfica, somada aos interesses por questões mais amplas acerca das relações entre natureza e cultura no pensamento moderno, a pesquisa foi direcionada para um enfoque comparativo. Comparação esta que – importante dizer – apenas adquire sua validade uma vez rejeitada, de maneira deliberada, algumas das dimensões contextuais no intuito de privilegiar o nível eminentemente ideológico (Dumont, 2000; 1985). É certo que, como adverte Dumont, “enquanto o analista pode naturalmente sofrer devido ao seu insuficiente conhecimento do contexto, é mais seguro para ele deixar de lado na an|lise o que n~o pertence estritamente ao seu objeto” (2000: 42).

Para um empreendimento desta qualidade se tornar viável, fez-se necessário, seguindo as recomendações de Dumont (1985), estabelecer algum aspecto englobante, que perpassasse as duas séries comparadas. Em termos etnográficos, notamos que tanto no CGEN quanto no IPHAN a dualidade matéria/forma se apresentou como uma

tensão, nos fornecendo o eixo privilegiado do exercício almejado. Assim arquitetada, a

dissertação dedicou-se a explorar as soluções acionadas pelas políticas dos recursos

fitogenéticos e dos patrimônios imateriais para enquadrar e condicionar as

problemáticas decorrentes da agrobiodiversidade dentro desta tensão matéria/forma. Sob a lógica dos recursos, a agrobiodiversidade foi concebida como um tema de difícil assimilação e enquadramento, uma vez que a legislação correlata foi elaborada para lidar com as plantas “silvestres”. Frente a isso, a Câmara Temática dos Conhecimentos Tradicionais (CTCTA) dedicou três de suas reuniões para debater os conceitos de “cultivo”, “domesticaç~o” e as possibilidades de conceber as plantas adjetivadas por estes dois substantivos como contendo “conhecimentos tradicionais intrínsecos”. Ainda que contando n~o apenas com os “especialistas”, mas também com

181 representantes da “sociedade civil” e membros de comunidades indígenas e tradicionais, o debate ocorreu sob a égide da cosmologia neo-darwinista, que torna possível a diferenciação dos dois conceitos debatidos. Desde este tipo de pensamento, enquanto o conceito de “cultivo” condiz com o conjunto de pr|ticas agrícolas direcionadas a uma determinada planta, permitindo-a se desenvolver nas condições estipuladas pelo agricultor, já o de “domesticação” refere-se à escala de tempo evolucionária, a partir da qual uma população particular das espécies manejadas sofre alterações em seu patrimônio genético, diferenciando-a de suas ancestrais selvagens.

Esta classificação entre dois tipos de variedades agrícolas, as cultivadas e as domesticadas, tornou possível, ainda que de maneira provisória, conciliar a cosmologia evolutiva à necessidade de reconhecimento das contribuições indígenas e tradicionais para o desenvolvimento das variedades agrícolas. Entretanto, a denominação desta contribuição sob a rubrica dos CTA seguiu sendo uma questão em aberto. Com efeito, na reunião do Plenário do CGEN que debateu a identificação de CTA associado à

goiabeira-serrana, os conselheiros adotaram a espécie como sendo “domesticada”, no entanto tiveram dificuldades em delimitar os agricultores a ela associados como “comunidades locais”. Por outro lado, o caso do coco-anão atesta que, para ser deflagrada enquanto uma “espécie nativa”, as variedades agrícolas devem demonstrar terem adquirido suas “propriedades características” no território nacional. Em ambos os casos, a expressão “linha de corte” se apresentou como um imperativo na política dos recursos fitogenéticos, seja para estabelecer as fronteiras materiais do patrimônio genético nacional, seja para demarcar os limites formais das comunidades que podem gozar de direitos específicos das populações indígenas e “comunidades locais”. Para todos os efeitos, portanto, a ênfase nestes casos foi colocada nos produtos resultantes das operações agrícolas.

Já sob a lógica dos patrimônios imateriais, vimos que a agrobiodiversidade foi acolhida pela política dos registros, que enfatiza a feição dinâmica e processual da “cultura”, em contraposiç~o { política reificante de tombamento dos “bens” materiais. Em conformidade com esta política, o primeiro registro da agrobiodiversidade enquanto patrimônio imaterial do Brasil se deu no âmbito do DPI, a partir do Livro dos

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Saberes, reportando-a menos aos elementos que a compõem e mais aos processos que

garantem sua reprodutibilidade.

O projeto PACTA, vetor importante desta patrimonialização, tramitou também pelo CGEN no intuito de obter autorização de acesso ao CTA para fins de pesquisa científica. Na ocasião, uma das coordenadoras do projeto, Laure Emperaire, lançou questões sobre duas noções que, coincidentemente, causaram dificuldades no enquadramento do coco-anão e da goiabeira-serrana, quais sejam, “variedade” e “comunidade”. De fato, pudemos ver que, { maneira como foi estruturado pelos formuladores do projeto, o SAT-RN não se ateve a uma “comunidade local”, nos termos da MP nº 2.186-16/2001, assim como fez da noç~o biológica de “variedade” justamente um de seus temas de pesquisa. Neste sentido, a equalização dos conceitos normativos com os pontos de vista locais (indígenas), bem como das dimensões materiais e imaterias que compõem a agrobiodiversidade, demonstrou a desenvoltura do projeto em termos (i) “intercientíficos” (Little, 2010), correlacionando os conhecimentos científicos com os saberes locais, (ii) interdisciplinares, a partir da mobilização de uma equipe de pesquisadoras provenientes da antropologia, do direito e da etnobiologia, e também (iii) burocráticos, tendo em vista que o SAT-RN demonstrou ser uma sofisticada e árdua construção analítica para articular as atividades agro-indígenas à gramática estatal da patrimonialização.

Para estabilizar os amálgamas que compõem a agrobiodiversidade, a noção de “sistema agrícola” foi protagonista na abordagem empregada. Com o emprego desta noção, o intento fora justamente estabilizar os fenômenos menos como objetos e mais no sentido de conexões relacionais de um conjunto de elementos. Como resultado, a objetivaç~o do “bem” registrado alcançou uma envergadura temática sem precedentes na política dos registros. Além disso, o SAT-RN logrou criar o que chamei de afinidade

tática com a legislação que regulamenta o patrimônio imaterial nacional.

Considerando que, para responder as demandas da “viabilidade” do registro e da salvaguarda, se privilegiou a eleiç~o das “redes de parentesco” e das “espécies estruturantes”, ao invés de atomizar os resultados das operações agrícolas.

183 Os enquadramentos lógicos da agrobiodiversidade como recursos fitogenéticos e patrimônios imateriais apresentaram ser dois modos muito distintos de estabilização e operacionalização das problemáticas decorrentes da diversificação agrícola. O que não permite, de maneira alguma, plasmar suas singularidades em nome de uma suposta totalidade que neutralizaria as diferenças. Neste sentido, nem mesmo o “Estado” pareceu ser um plano favorável de análise, sendo muito mais rentável tomá-lo como um conjunto de práticas do que uma entidade abstrata68. Afinal, a pesquisa tratou de apontar para uma realidade múltipla e repleta de sutilezas, boa parte das quais não puderam ser consideradas aqui. Dentre estas segmentações não abordadas, poder-se-ia mencionar, no caso do CGEN, as clivagens políticas entre a bancada da agroindústria (MAPA e EMBRAPA) e a ala conservacionista (IBAMA e MMA), tema da dissertação de Loss (2013). Do mesmo modo, Cardoso (2010) e Garcia (2004) também já demonstraram que, no IPHAN, os critérios de legitimação e eleições de prioridades se dão em meio a uma série de dilemas políticos para equalizar a diversidade cultural com a identidade nacional.

Sendo assim, para ao mesmo tempo considerar os fatores comuns, mas evitando o risco de homogeneização, presente em todo esforço comparativo, optei por acionar a noção de níveis, no intuito de que as disposições englobantes que perpassam as duas políticas analisadas não eclipsassem suas inúmeras diferenças. Adotando este tipo de procedimento, vimos que, no nível da concepção, a imagem dos seres enquanto um engendramento de matéria e forma se atualiza tanto na lógica dos recursos quanto na dos patrimônios imateriais. No entanto, esta concepção transversal não inibe uma diferença de ênfase que é central: na primeira, as formas de conhecimento são tomadas como atalhos para a depuração dos produtos da agrobiodiversidade, ao passo que na segunda os elementos constitutivos destas interações só têm sua razão de ser se correlacionados em conjunto.

68 É também o que afirma Abrams (1988:61): “It seems necessary to say, then, that the state, conceived of

as a substantial entity separate from society has proved a remarkably elusive object of analysis. Aridity and mystification rather than understanding and warranted knowledge appear to be the typical outcomes of work in both the traditions within which the analysis of the state has been regarded as a significant issue in the recent past”.

184 No nível da estabilização, por sua vez, as diferenças entre as duas políticas são ainda mais explícitas. Foram brevemente explorados o pensamento neo-darwinista e a teoria dos sistemas agrários, uma vez que estas duas referências teóricas exerceram influências importantes, ainda que tácitas, nos enquadramentos da agrobiodiversidade. Importante deixar claro, todavia, que em nenhum momento o intuito foi estabelecer uma relação direta entre estes dois referenciais teóricos e os enquadramentos da agrobiodiversidade sob as lógicas dos recursos genéticos e dos patrimônios imateriais. Ainda assim, é inegável que os casos analisados atualizaram de maneira mais ou menos explícita algumas variações destas racionalidades. Consequentemente, se ambas partem de uma certa noção de estabilidade para modelar as transformações, a maneira como isso se dá é muito distinta nos dois casos. Na variação do neo-darwinismo evocada no CGEN, a separaç~o entre os conceitos de “cultivo” (seleç~o de fenótipos) e “domesticaç~o” (estabilização de genótipos) é tributária de uma disjunção anterior entre a dimensão da forma (fenotípica) e a dimensão da matéria (genotípica), acarretando ainda no desdobramento segundo o qual as alterações ontogenéticas das formas não alteram a matéria, bem como apenas as características da segunda é que são transmitidas através das gerações. Por outro lado, na teoria dos sistemas agrários desenvolvida por Mazoyer & Roudart (2008) e referenciada no SAT-RN, as operações ontogenéticas também não são privilegiadas pela análise. No entanto, neste caso há uma opção deliberada por objetivar as manifestações agrícolas em termos lógicos e organizacionais a partir de suas trocas e circulações de pessoas, plantas e artefatos. Algo que torna possível, dentre outras coisas, estabilizar os fenômenos em termos de escalas, elementos e subsistemas.

Já no nível das operações, pudemos adentrar de maneira comparativa no dossiê de registro do SAT-RN e nos dois casos debatidos no Plenário do CGEN. Enquanto nos dois últimos as objetivações se deram em termos de causalidades e seccionamentos – visando, portanto, os produtos derivados das operações agrícolas –, a formulação do SAT-RN almejou justamente maximizar as hibridações do sistema, reunindo fatores e correlacionando elementos para objetivar os processos. Diferenças quanto à territorialidade (em termos temporais e geográficos) também foram marcantes. No CGEN, as noções de “país de origem dos recursos genéticos” e “comunidades locais”

185 podem ser contrapostas {s noções de “província cultural” e “redes de parentesco”, acionadas no registro do SAT-RN.

Por último, a título de comentário final, acredito que o esforço que compõe este trabalho cumpre as questões suscitadas a partir do curso realizado na Embrapa- Cenargen. Uma vez que tratamos aqui da caracterização da agrobiodiversidade tanto como recurso fitogenético quanto como patrimônio imaterial, e ainda da conexão entre elas. Se isto nos levou a adentrar brevemente em searas tão complexas tais quais a metafísica hilemórfica, o pensamento neo-darwinista e a teoria dos sistemas, foi como estratégia de compreensão das expressões diversas da agrobiodiversidade, igualmente complexas e desafiadoras em sua maneira de conjugar dilemas metafísicos, diferentes ramos da ciência e formatações de políticas públicas. A esperança que nos motiva é de que outros pesquisadores e estudiosos se atentem a estas conexões, usufruam de seus erros e acertos, bem como prossigam este exercício de aproximação.

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