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Considerações parciais: dos processos aos produtos

Apresentei no início deste capítulo o quadro normativo que regulamenta a atuação do CGEN, bem como explorei os impasses conceituais que definem as plantas cultivadas (ou domesticadas) e os conhecimentos tradicionais associados (ou intrínsecos) nas reuniões da CTCTA. Já no âmbito do Plenário, constatamos, no caso do coco-anão, os esforços dos conselheiros em delimitar quais tipos de pesquisa se enquadram como acesso a patrimônio genético nacional. Ao passo que o caso da

goiabeira-serrana ilustrou este mesmo exercício de estabilização, só que voltado aos

coletivos humanos sob a chancela do acesso aos conhecimentos tradicionais associados. Ambos os casos foram enquadrados como não pertinentes ao escopo da legislação de acesso. Ora, como bem notou Douglas (1986: 108-130), mesmo os casos anômalos ou desviantes são justamente o efeito de uma classificação precedente. Isto é, o que não se enquadra em um tipo de pensamento institucional também é parte integrante do exercício de classificação que lhe dá forma. Daí a pertinência dos casos selecionados.

Ao abordar os modos de relação humano-plantas cultivadas em termos de “patrimônio genético” e “conhecimento tradicional associado”, a aplicaç~o da MP acaba por demandar mecanismos de estabilização de dois pólos das relações agrícolas, um material e outro ideacional. Como bem alertara Nadasdy (2003) em sua magistral etnografia acerca das relações de manejo participativo envolvendo as populações indígenas Kluane e burocratas conservacionistas da província de Yukon, no Alaska, o próprio conceito de “conhecimento tradicional associado” (CTA), que entre os anglófonos é tomado como os “traditional ecological knowledge” (TEK), n~o deixa de

91 ser uma destilação moderna levada a cabo pelos aparelhos do Estado de captura dos modos de vida locais. Esta “compartmentalization and distillation of TEK” (2003: 123- 126) tende a enquadrar o conceito de “conhecimento”, seja ele “tradicional” ou n~o, de maneira formalista, abstrata e desatrelada dos engajamentos mundanos. Para Nadasdy, esta operação acarreta numa série de consequências; dentre elas o descompasso entre o que se entende por “conhecimento” e “modo de vida”:

“Kluane people are acutely aware of the culturally contingent nature of their knowledge about animals. At a conference on traditional knowledge, I once heard a wildlife biologist ask a member of the Kluane First Nation, ‘What exactly is “traditional knowledge?” She responded. ‘Well, it’s not really ‘knowledge’ at all; it’s more a way of life’. Since it is from that way of life that biologists and others hope to isolate and extract “traditional knowledge”, we need to know something about it if we are to have any hope of understanding the potential social political impacts of knowledge-integration”. (Nadasdy, 2003: 63, grifo meu)

Atento a tal descompasso, Tim Ingold (2004) apresenta elucidações pertinentes para que pensemos a triangulaç~o entre os ditos “conhecimentos tradicionais associados”, suas relações com os ambientes a eles acoplados nas atividades pr|ticas e os mecanismos estatais de estabilização desta relação. Para Ingold, ao invés de

aplicados, os ditos TEK são, de fato, gerados em atividades práticas por meios das quais

os organismos-pessoas (isto é, e organismo e a pessoa entendidos como uma informação em contínuo desenvolvimento) se filiam com o ambiente (2004: 302). Ingold contrasta dois modos distintos de se pensar os TEK, o primeiro que embasa o discurso moderno dos aparatos estatais e o segundo no senso vivido pelas populações locais.

O primeiro modo Ingold nomeia de MTK (em inglês, “traditional knowledge in modernista conception”). Esta acepç~o de conhecimento tradicional seria pertinente a um esquema de pensamento, implícito inclusive em algumas vertentes da antropologia, no qual os diagramas de parentesco representariam canais de transmissão de substância. Analogamente à transmissão de substância por consanguinidade, o MTK abordaria a circulação de conhecimentos como transmissão

92 seriam subestimadas em prol da maior importância dispensada aos aspectos estritamente cognitivos. Este MTK seria tribut|rio, portanto, do “modelo genealógico”, a saber: “this is based on the idea that the elements that go together to constitute a person are passed down, along one or several lines descent, from that person´s ancestors, independently and in advance of his or her life on the land, in an environment” (2004: 307).

Por outro lado, a segunda tipificação dos conhecimentos ecológicos seria o LTK (em inglês, “traditional knowledge in local conception”). Este, diferente do primeiro, seria o conhecimento ecológico tal qual vivido pelos grupos que os compartilham - isto é, os praticam. Tratar-se-ia aqui menos de “cognição” e mais de engajamento em atividades operativas – de modos de vida, poder-se-ia-dizer – por meio das quais os conhecimentos se originam em estreita relação com a territorialidade dos grupos. Deste modo, no caso do LTK, a ideia de transmissão de conhecimento, no sentido de um substrato imaterial que é sobreposto em uma matéria passiva, faz pouco ou nenhum sentido.

Por mais pertinentes que sejam estas tipificações analíticas fornecidas por Ingold, penso que, para os nossos intentos aqui visados, talvez seja mais interessante lançar perguntas sobre isso que tem sido chamado de “conhecimentos tradicionais associados”. Ou seja, ao invés de tentar preencher esta noç~o a partir de definições externas, cabe-nos aqui investigar as traduções envolvidas e seus efeitos acarretados. Ao adotar tal perspectiva, o exercício aqui proposto se aproxima de Leach & Davis (2012: 218), segundo os quais “the impetus to redefine things as knowledge or knowledge production is exactly the process we should be interrogating”. Os autores ainda reiteram que, ao invés de ambicionar levantar um inventário exaustivo de “coisas” ou “processos” que poderiam ser chamados de “conhecimento”, faz-se oportuno que o etnógrafo se atente ao que ocorre nas relações às quais o “conhecimento” é o foco da atenção.

Se tomarmos a noção de PG e CTA como “ethnographic subjects” (idem, 2012: 221), conforme sugerido pelos autores, perceberemos que nas deliberações sobre o

93 que sua “destilaç~o”44 se tornasse eficaz no plano operacional. Duas noções despontaram nestes dois casos analisados: a de “propriedades características” e a de “comunidade local”, a primeira referente { “matéria” do coco-anão e a segunda às “formas de organizaç~o” das comunidades cultivadoras da goiabeira-serra no interior catarinense. Ambas são definidas pelo quadro normativo, o que não impediu os dissensos em suas aplicações. Enquanto a primeira demandou a expertise de um “especialista em evolução de palmeiras”, j| a segunda foi confiada ao parecer de antropólogos, pois “só uma perícia antropológica poderia dizer se a comunidade é ou n~o tradicional”.

Uma terceira noção emergente, esta transversal aos dois casos do Plenário e ainda {s discussões na CTCTA, é a de “linhas de corte”. Na CTCTA as linhas de corte foram evocadas por representantes da EMBRAPA e do MAPA em seu sentido temporal, visando fixar os limites cronológicos das variedades que seriam tomadas como contendo CTA intrínseco. No caso do coco-anão esta noção visou estabelecer o território nacional no qual a espécie teria desenvolvido suas “propriedades características”, determinando, assim, qual o país seria o detentor de seu patrimônio genético. Enquanto que no caso da goiabeira-serrana, por sua vez, as linhas de corte foram acionadas para se delimitar as fronteiras das “comunidades locais”, incidindo diretamente na possiblidade de repartiç~o de benefícios. A noç~o de “linha de corte” se prestou, em suma, para evitar que “todos os países troquem royalties entre si”, em relaç~o aos recursos fitogenéticos das plantas cultivadas, e que uma “maioria”, como são os agricultores locais, passem a gozar de direitos específicos restritos às “populações indígenas e tradicionais”.

Deixemos para as comparações sintetizadas no último capítulo os avanços analíticos destas considerações parciais. Por hora, nos é suficiente a constatação etnográfica de que, sob a lógica dos recursos, a agrobiodiversidade é tomada mais pelos seus resultados e produtos. Sendo os processos etnogenéticos (dos coletivos humanos

44 A express~o “destilaç~o” é aqui tomada de empréstimo de Nadasdy (2003: 126), segundo o qual toda

uma série de histórias, valores, relações sociais e práticas que contribuem para relações indígenas com os ambientes, devem ser destiladas sob a rubrica dos TEK para serem incorporadas nas categorias institucionais de gestão científica.

94 cultivadores) e fitogenéticos (das variedades cultivadas) apenas um resíduo de baixo valor na implementação dos conceitos de acesso aos conhecimentos tradicionais associados e ao patrimônio genético das plantas cultivadas.

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Capítulo 2

Agrobiodiversidade sob a lógica dos