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Operando: produtos e processos

Na operacionalização da agrobiodiversidade sob a lógica dos recursos, vimos, no caso do coco-anão, as dificuldades enfrentadas pelos conselheiros em definir o país provedor do material genético de um “produto” difundido por diversas regiões tropicais. Por se tratar de uma variedade pertencente a “um grupo em que h| uma especiação ainda bastante violenta”, os conselheiros n~o puderam alcançar o objetivo visado pela discuss~o, qual seja, “estabelecer conclusões de ordem mais geral sobre o processo de domesticaç~o da espécie”. No caso da goiabeira-serrana, por sua vez, as “formas de organizaç~o” dos coletivos humanos cultivadores foram tidas como “transformadas”, isto é, “j| haveriam ‘perdido’ sua tradicionalidade”, impedindo-lhes de ocupar a categoria jurídica de "comunidades locais”. Nesta perspectiva, destarte, esta última categoria assumiu um caráter restritivo, pois como afirmou o Secretário Executivo do CGEN: “nem todos os agricultores devem ser tratados como comunidades locais”.

Embora em ambos os casos os objetivos de demarcação precisa das fronteiras que limitam os conceitos de “propriedades características” e “comunidades locais” n~o tenham sido alcançados, por outro lado ficou clara a qualidade dos intentos visados pela instituição. A saber: buscar definições e estabelecer seccionamentos, isolando causas e efeitos no intuito de repartir benefícios. O fator diacrítico de destaque passou a ser, portanto, os produtos que resultam das operações agrícolas: “Nós temos três pontos: eles são agricultores familiares, eles estão na Serra Catarinense e eles têm árvores de goiabeira-serrana”, dizia o conselheiro do MAPA em um dos casos. Esta demanda por se estabilizar os produtos e as propriedades destas interações também se fez notória no exemplo da EMBRAPA com variedades tradicionais de feijão recuperado pela conselheira do DPG/MMA. Nesta pesquisa, caso as variedades tradicionais de feijão atestassem no nível molecular uma base genética alterada, as comunidades que as cultivam também passariam a serem consideradas como culturalmente distintas. Dito de outro modo, a partir da constatação de modificação genética do feijão, não apenas ele passaria a ser tomado como uma “variedade crioula” como também se

177 tornaria possível considerar seus cultivadores como pertencentes a uma “comunidade local”.

Já a operacionalização da agrobiodiversidade filiada à lógica do patrimônio imaterial apresentou um imperativo simetricamente inverso: a demanda neste enquadramento foi por “desmaterializar” os pleitos atomizados. No IPHAN, portanto, as discussões ganharam um tom de reunião de fatores, integração e incorporação de elementos a uma din}mica “cultural” que perpassa produtos e saberes para e conservar e valorizar seus processos. Ao contrário dos casos analisados pelo CGEN, nos quais se buscou delimitar as “propriedades características” das plantas cultivadas e as “comunidades locais” cultivadoras, o registro do SAT-RN pelo IPHAN não se ateve a

uma comunidade “detentora” dos conhecimentos e do acervo das plantas cultivadas,

mas sim à extensa rede de parentesco (multiétnica e multilinguística) que mobiliza trocas matrimoniais, rituais e agrícolas. Do mesmo modo, não se tratou de se restringir aos marcadores moleculares de uma justaposição de variedades, mas sim registrar toda uma onomástica associadas à produção das manivas – entendidas como uma coleção supra-material: “uma entidade global que tem seu próprio significado” (IPHAN, 2010: 84).

Uma decorrência marcante das categorias modernas utilizadas para mediar o registro do SAT-RN é o privilégio metodológico dispensado às redes de troca das manivas nomeadas. Ao se apoiar na metáfora da “modelagem” (IPHAN, 2010: 150), sob a égide da noç~o de “trabalho” (IPHAN, 2010: 51,53,153), o intento do registro fora justamente no sentido de não se restringir à catalogação das plantas, mas sim objetivar seus processos de “produç~o” e “troca”. Com efeito, a circulação das plantas teve que se apoiar nas manivas já individuadas, ou melhor, nomeadas. Em contrapartida, as

manivas-sem-nome, avessas a estes verbos, foram tomadas como:

“uma denominaç~o relativamente transitória, j| que o novo pé poder| ser descartado se não convém à agricultora, ou multiplicado e incorporado no estoque de manivas já existente, recebendo o nome de uma variedade morfologicamente próxima ou, eventualmente, um novo nome”. (IPHAN, 2010: 86).

178 Não por acaso, portanto, as manivas nomeadas, “produzidas” pelo “trabalho agrícola” e colocadas em movimento mediante relações de “troca” que acompanham as redes de parentesco ganharam destaque na objetivação do dossiê. Ao passo que as

manivas-sem-nome são tidas como ontologicamente provisórias, num estado pré-

individual, poder-se-ia dizer, ainda que suas singularidades sejam fundamentais para a imputação de diversidade na dinâmica do sistema agrícola. Pensando em termos comparativos, se na estabilização da agrobiodiversidade sob a lógica dos recursos as plantas foram depuradas a partir de dois substantivos, “cultivo” e “domesticaç~o”, em se tratando da estabilização dos patrimônios imateriais as mesmas foram mediadas a partir de três verbos: “trocar”, “produzir” e “trabalhar”. N~o obstante, ainda que se prestem a objetivos distintos, como os explorados nos capítulos precedentes, todos eles atualizam variações do pensamento hilemórfico, possibilitando seu manejo e os diálogos interministeriais através das politicas públicas estatais.

Por fim, uma última questão emergiu de maneira contrastante: a noção de “território”. Ambas as instituições demonstram preocupações voltadas { circunscriç~o de uma realidade territorial que se distinga de um todo, seja ele uma nação, uma comunidade, uma região ou ainda um sistema. Vários estudos sobre os Estados-Nações apontam para a centralidade do território em sua dinâmica de controle e ação administrativa (Souza Lima, 1998, 2002; Barreto Filho, 2005, 2006; Foucault, 2007). Mesmo abstendo-me, no momento, de extrair disso maiores resultados analíticos, é inevitável constatar alguns contrastes entre o CGEN e o IPHAN neste quesito.

No CGEN, vimos que a necessidade de identificação territorial é de suma importância, seja no tocante { definiç~o das “espécies nativas” (aquelas que “adquiriram suas propriedades características em território nacional”) ou {s “comunidades locais” (delimitando o território específico que lhe outorga a localidade). Já no IPHAN, parece existir uma articulação necessária entre o território nacional (afinal, a noção de patrimônio imaterial filia-se ao ideário da nação enquanto um valor, ainda que funcione de maneira atrelada ao caráter supranacional do patrimônio da humanidade) e uma territorialidade local que ativa um certo tipo de aspecto cultural distinto. Não apenas no caso do SAT-RN como também nos outros registros pertencentes ao Livro dos Saberes é not|vel esta estreita relaç~o entre o “bem”

179 registrado e uma territorialidade local que fornece tanto as “matérias-primas” necessárias quanto os diacríticos simbólicos que demarcam suas especificidades.

Restringindo-nos { tem|tica dos “centros de origem” e dos “centros de diversidade”, apresentadas no capítulo 1, poder-se-ia dizer que no CGEN a circunscrição territorial é operada a partir da identificaç~o dos “centros de origem” das plantas cultivadas, permitindo estabelecer os países detentores dos recursos genéticos. Já no IPHAN a identificação é (ou pelo menos foi no caso do SAT-RN) baseada nos “centros de diversidade”, almejando detectar regiões nas quais s~o encontradas relações de intensa promoção de diversidade cultural e vegetal. Poderíamos dizer, portanto, que, em relação à distinção temporal da territorialidade, no primeiro o interesse é diacrônico, calcado na busca cronológica pela região na qual uma determinada formaç~o fitogenética tenha desenvolvido suas “propriedades características” a partir de outra pré-existente. Já no segundo a atuação é baseada em critérios sincrônicos, pois a própria noção de “tradiç~o” é antes motivada por critérios lógicos (trocas e produções) do que refém de justificativas cronológicas (continuidade histórica e permanência de elementos culturais).

Por outro lado, quanto aos aspectos geográficos, no SAT-RN a territorialidade foi delineada pelos formuladores do dossiê de maneira menos restrita aos limites fundi|rios habitados pelos agricultores indígenas e mais enquanto uma “rede relações”. Mesmo não se abstendo em fixar e justificar as fronteiras do sistema, necessárias para o registro de um “bem” deste tipo, a noç~o de “província cultural” (IPHAN, 2010: 103) acionada indica uma clivagem de ordem mais geral entre o tratamento territorial do CGEN, com suas noções de “país de origem” e “centro de domesticaç~o”, e do DPI, onde as fronteiras geográficas do sistema foram delimitadas a partir de critérios mais “culturalistas”, como as redes de parentesco exogâmico e patrilocal. Uma exemplificação desta constatação pode ser encontrada a partir do contraste entre o enquadramento das “comunidades locais” cultivadoras da goiabeira-serrana, no qual a regionalização dos agricultores conduziu à descaracterização enquanto CTA, e o desenho do SAT-RN, onde a extensão e amplitude das redes de parentesco se prestaram justamente para endossar a legitimidade da patrimonialização.

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