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É interessante remontar à crença comum a diversas culturas matrilineares de que o papel reprodutivo cabe somente à mulher. Por outro lado, as sociedades estruturadas/organiza- das com fortes bases no Patriarcado (patrilineares e, em geral, patrilocais), como no Ocidente moderno, muitas vezes invertem essa lógica, atribuindo ao homem o princípio ativo da repro- dução, cabendo à mulher apenas receber, acolher e alimentar o embrião enquanto este é gera- do (BEAUVOIR, 1980, p. 29).

Podemos considerar, levando em conta os argumentos de Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo, que, quando se acredita na exclusividade do papel da fêmea na reprodução, há um tipo de poder simbólico atribuído às mulheres que não tem paralelo com o tipo de poder atribuído aos homens, a quem a ordem social relega outros tipos de papel. Segundo Élisabeth Badinter (1986), “ao poder físico e metafísico do caçador, corresponde simetricamente o po- der procriador da mulher (BADINTER, 1986, p. 50). Era uma sociedade em que a divisão se- xual de papéis não implicava numa desigualdade, mas uma complementaridade. No entanto, quando o homem assume a participação na procriação e, principalmente, quando este papel é entendido como preeminente, temos a configuração de uma relação direta de dominação sim- bólica masculina, de um exercício de poder dos homens sobre os corpos das mulheres.

Outra das consequências, portanto, da construção social do sexismo e da dominação masculina é a representação da relação sexual como um ato de dominação do homem sobre a mulher (ou do masculino sobre o feminino). Pierre Bourdieu, em seu ensaio A Dominação Masculina, demonstra justamente isso (p. 30):

Uma sociologia do alto [sic] sexual faria ver que, como sempre se dá em uma relação de dominação, as práticas e as representações dos dois sexos não são, de maneira alguma, simétricas. Não só porque as moças e os rapa- zes têm, até mesmo nas sociedades euro-americanas de hoje, pontos de vista muito diferentes sobre a relação amorosa, na maior parte das vezes pensada pelos homens com a lógica da conquista (sobretudo nas conversas entre ami- gos, que dão bastante espaço a um contar vantagens a respeito das conquistas femininas), mas também porque o ato sexual em si é concebido pelos ho- mens como uma forma de dominação, de apropriação, de “posse” (BOUR- DIEU, 2002, p. 30).

Ao rejeitar em sua poesia uma certa sexualidade, marcada pela sujeição do corpo fe- minino pelo desejo masculino, e a reprodução sexuada, ou ao menos atribuindo a elas um va- lor negativo ou um conjunto de consequências nefastas, Augusto dos Anjos estaria automati- camente excluindo ou rejeitando as relações de dominação que as evolvem, especialmente a

relação de poder dos homens sobre as mulheres. A poesia do Eu carrega, portanto, uma veia de denúncia da dominação masculina.

O que vimos na representação da relação entre Mãe e filhos presente no Eu foi que a maternidade é sempre representada como um ato solitário, sem a participação de um coito, e que ela pode ser a representação mais sublime do amor, como em “Mater”. Aí, a mãe haure “amplo deleite” ao colocar “No lábio róseo [do novo ser] a grande teta farta”, e seu rebento, já adulto, demonstra imenso afeto por ela, quando ela mesma já está velha. Essa imagem ideali- zada da Mãe, sem “Nenhuma ignota união ou nenhum nexo / À contingência orgânica do sexo”, também é encarnada pela “mãe original das outras formas”, a “Mater Originalis”. Am- bas trazem à tona a representação do poder reprodutivo da mulher sem o controle masculino.

Porém, quando a reprodução sofre interferência de contingências externas, ela não se dá de maneira tranquila. No “Soneto” ao Filho, há uma força exterior, representada por um gi- gante, que tira da Mãe o direito a sua própria prole. É nesse ponto que a dominação patriarcal se faz sentir ao assumir o controle sobre a reprodução, tomando para si a propriedade dos fi- lhos e da própria mulher, que perde sua autonomia. O Pai de “A Árvore da Serra” explicita esse poder sobre o feminino ao podar o próprio filho de sua ligação com a Mãe-natureza.

Para a hetaira de “Depois da Orgia”, fica evidente sua sujeição ao papel submisso nas práticas sexuais de uma sociedade que encara as mulheres como objetos de desejo, indivíduos de quem se boicotam as possibilidades de expressão de sua subjetividade. As prostitutas de “Os Doentes” estão na mesma situação, e o Sátiro de “Monólogo de uma Sombra” reforça essa representação do sexo como relação de poder e violência dos homens sobre as mulheres, que em muitos casos se caracteriza como “animalidade sem castigo”.

Augusto dos Anjos consegue utilizar sua poética para dar voz às mulheres que so- frem a opressão de uma sociedade que controla seus corpos, seja para a procriação, seja para o usufruto do prazer sexual. Ele o faz com recursos estilísticos interessantes, como colocar-se no papel de Mãe mesmo quando está se referindo a um fato biográfico em que ele é pai, alter- nando isso com a posição contrária, a de filho diante da Mãe; usar a primeira pessoa para ex- pressar os sentimentos e pensamentos da hetaira; descrever de tão perto a prostituta que nos faz parecer que estamos compartilhando de suas sensações; e explorar a cabeça do Sátiro para desvendar o reconhecimento que ele tem de sua própria posição de poder diante das mulheres. O leitor é tomado pela empatia, sente o que a voz lírica e os personagens dos poemas sentem.

Esse Eu estampado em letras garrafais e vermelhas na capa da primeira edição do li- vro de Augusto dos Anjos não é símbolo de egocentrismo, mas a expressão de uma subjetivi- dade que se coloca à disposição para encarnar outras tantas subjetividades que compõem a hu-

manidade.

O eu que ganha voz na lírica é um eu que se determina e se exprime como oposto ao coletivo, à objetividade; sua identificação com a natureza, à qual sua expressão se refere, também não ocorre sem mediação. O eu lírico aca- bou perdendo, por assim dizer, essa unidade com a natureza, e agora se em- penha em restabelecê-la, pelo animismo ou pelo mergulho no próprio eu. So- mente através da humanização há de ser devolvido à natureza o direito que lhe foi tirado pela dominação humana da natureza (ADORNO, 2012, p. 70). Esse Eu procura uma reintegração do indivíduo à unidade com a natureza, ou ainda, reinterpretando as palavras de Adorno, um reconhecimento de que a dominação masculina so- bre o feminino deve ser desconstruída para uma reintegração dos homens (do sexo masculino) a suas próprias feminilidades, além de um reconhecimento da humanidade das mulheres.

Dessa forma, pensamos que Augusto dos Anjos cumpre de maneira significativa seu papel social de artista ao denunciar a dominação masculina que nega qualquer possibilidade de as mulheres manifestarem sua capacidade de procriar, ou melhor, de criar, de expressar sua criatividade, mesmo a poética, enquanto indivíduos dotados de autonomia. A elas deve ser re- conhecido o direito de manifestar seus próprios desejos enquanto sujeitos dotados de vontade, enquanto capazes de exercer sua subjetividade para contribuir com a humanidade em termos de igualdade com seus pares do sexo masculino. Os aspectos denominados de Mãe e de Mere- triz não dizem respeito a indivíduos separados, mas à própria Mulher, ou até mesmo ao Femi- nino existente nos homens e em indivíduos que não se enquadram nas definições dicotômicas tradicionais que dividem os humanos em mulheres e homens, ou seja, ao reconhecimento so- cial da criatividade e da subjetividade inerentes a todos os indivíduos humanos.

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