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Mãe e meretriz: empatia e denúncia da dominação masculina na poesia de Augusto dos Anjos

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM. THIAGO LEITE DE BARROS. MÃE E MERETRIZ Empatia e Denúncia da Dominação Masculina na Poesia de Augusto dos Anjos. NATAL/RN 2017.

(2) THIAGO LEITE DE BARROS. MÃE E MERETRIZ Empatia e Denúncia da Dominação Masculina na Poesia de Augusto dos Anjos. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos da Linguagem – PPGEL da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Literatura Comparada Orientador: Prof. Dr. José Luiz Ferreira. NATAL/RN 2017.

(3) THIAGO LEITE DE BARROS. MÃE E MERETRIZ Empatia e Denúncia da Dominação Masculina na Poesia de Augusto dos Anjos. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos da Linguagem – PPGEL da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, para a obtenção do título de Mestre em Letras.. Aprovada em _____/_____/__________.. ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. José Luiz Ferreira Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Orientador ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Derivaldo dos Santos Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Membro interno ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Wellington Medeiros de Araújo Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN Membro externo à Instituição. NATAL/RN 2017.

(4) Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Sistema de Bibliotecas – SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN – Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA Barros, Thiago Leite de. Mãe e meretriz: empatia e denúncia da dominação masculina na poesia de Augusto dos Anjos / Thiago Leite de Barros. 2017. 95f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, 2017. Orientador: Prof. Dr. José Luiz Ferreira. 1. Dominação Masculina. 2. Gênero. 3. Mãe. 4. Meretriz. 5. Anjos, Augusto dos, 1884-1914. I. Ferreira, José Luiz. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA. CDU 821.134.3(81)-1.

(5) Dedico a minha mãe, meu pai e a Sandra Erickson..

(6) AGRADECIMENTOS Por tudo o que pude conquistar nesta empreitada de pesquisa e escrita, agradeço a: Professora Tânia Lima, que me orientou às portas do Departamento de Letras e me mostrou caminhos possíveis, além de ter sido influente professora durante o curso; Betânia Monteiro, grande amiga que me convenceu a escolher as Letras e me ajudou a lapidar o projeto desta dissertação; Os professores da Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, especialmente: Derivaldo Santos, que contribuiu para o entendimento das teorias literárias e, especialmente, deu uma verdadeira aula sobre Literatura na ocasião da defesa desta dissertação; e Regina Simon, que me trouxe uma compreensão sobre a significativa presença da Mulher na Literatura; Os colegas do curso, que estiveram próximos nas aulas, nos trabalhos em grupo e nas ocasiões lúdicas; Professor José Luiz Ferreira, que me orientou, dando-me ao mesmo tempo valiosas lições e liberdade para criar meu texto; Professora Sandra Erickson, parteira intelectual da monografia de graduação na qual iniciei meus estudos sobre o poeta paraibano, e que apontou direções possíveis e significativas para a realização desta dissertação; Professor Wellington Medeiros, membro da banca, que trouxe profundas contribuições para os desenvolvimentos futuros desta pesquisa; Thaís Cordeiro, cuja motivação me ajudou a trilhar o extenuante caminho até a consecução deste texto e sua apresentação final diante da banca de defesa..

(7) “Augusto foi o autor de poemas [...] que louvam, defendem, colocam como primeiro ponto de pauta, não apenas o princípio feminino da vida, mas mulheres.” (Sandra S. F. Erickson).

(8) RESUMO A poesia de Augusto dos Anjos é marcada por contrastes, apresentados pelo poeta como oposições complementares. As figuras da Mãe e da Meretriz, presentes em sua obra, são facetas antagônicas que representam o mesmo princípio feminino. O caráter subversivo da poesia de Augusto dos Anjos e seu tom de crítica social (HELENA, 1984; SOUZA, 2009; SANTOS, 2009; GARCIA, 2009), através dos temas da solidariedade e da empatia (ERICKSON, 2015), nos levaram a ver na Mãe e na Meretriz imagens com as quais o eu-lírico se identifica. Analisando sua poesia através das lições do Estudo Analítico do Poema (CANDIDO, 1996) e das teorias da literatura comparada (ADORNO, 2012; MERQUIOR, 2013; BOSI, 2013; BARTHES, 2002), observamos que, por um lado, a Mãe representa o tema da reprodução assexuada e, por outro, a Meretriz carrega a ideia da rejeição da sexualidade. O estudo das imagens da Mãe nos poemas “Mater Originalis”, “A Ideia” e no “Soneto” ao Filho nos levaram a entender ainda que a rejeição da reprodução sexuada se relaciona à revolta contra o controle masculino sobre o aspecto reprodutor do corpo feminino (Beauvoir, 2009), enquanto as imagens da Meretriz no soneto “Depois da Orgia” e na parte VI do poema longo “Os Doentes” trouxeram à tona a questão da dominação sexual do corpo feminino pelo poder masculino (Bourdieu, 2002). Observamos que as figuras masculinas do Pai (no soneto “A Árvore da Serra”) e do Sátiro (versos 91-144 de “Monólogo de uma Sombra”), em oposição à Mãe e à Meretriz, condensam o simbolismo do controle do Patriarcado sobre os corpos femininos em seus aspectos reprodutor e sexual, respectivamente. Estabeleceram-se pontes entre as diversas imagens analisadas, em conjunção com os símbolos que com elas se articulam. Concluímos considerando que a poesia de Augusto dos Anjos traz uma compreensão sobre a posição subalterna das mulheres na hierarquia dominada pelo androcentrismo, que poda sua criatividade e sua subjetividade, e se apresenta como uma obra poética repleta de sentimento de revolta contra as relações de poder perpetuadas pelo Patriarcado em nossa sociedade. Palavras-chave: mãe; meretriz; dominação masculina; gênero; Augusto dos Anjos..

(9) ABSTRACT The poetry of Augusto dos Anjos is marked by contrasts, presented by the poet as complementary opposites. The images of the Mother and the Prostitute, present in his work, are antagonistic facets that represent the same feminine principle. The subversive nature of Augusto dos Anjosʼ poetry and its aspect of social criticism (HELENA, 1984; SOUZA, 2009; SANTOS, 2009; GARCIA, 2009) by means of themes such as solidarity and empathy (ERICKSON, 2015) allowed us to see the Mother and the Prostitute as images with which the poems ʼ personae identify themselves. Analysing his poetry by means of the lessons from Estudo Analítico do Poema (CANDIDO, 1996) and theories of comparative literature (ADORNO, 2012; MERQUIOR, 2013; BOSI, 2013; BARTHES, 2002), we observed that, on one hand, the Mother represents the theme of asexual reproduction and, on the other hand, the Prostitute is accompanied by the idea of rejection of sexuality. The study of the images of the Mother in the poems “Mater Originalis”, “A Ideia” (“The Idea”) and in the “Soneto” ao Filho (“Sonnet” to the Son) also helped us understand that the rejection of sexual reproduction relates to the revolt against the masculine control over the reproductive aspect of the feminine body (Beauvoir, 2009), whilst the images of the Prostitute in the sonnet “Depois da Orgia” (“After the Orgy”) and in the part VI of the long poem “Os Doentes” (“The Sick”) brought forth the question of sexual domination of the feminine body by masculine power (Bourdieu, 2002). We noticed that the masculine images of the Father (in the sonnet “A Árvore da Serra” – “The Tree on the Hill”) and the Satyr (verses 91-144 of “Monólogo de uma Sombra” – “Monologue of a Shadow”), in opposition to the Mother and the Prostitute, put together the symbolism of Patriarchyʼs control over the feminine bodies in their reproductive and sexual aspects respectively. We built bridges between the various images annalised, along with the symbols with which they articulate. We consider at last that the poetry of Augusto dos Anjos brings forth an understanding of the subaltern position of women in the hierarchy dominated by androcentrism, which cuts off their creativity and their subjectivity, and presents itself as a poetic work full of the feeling of revolt against the power relations perpetuated by Patriarcchy in our society. Keywords: mother; prostitute; masculine domination; gender; Augusto dos Anjos..

(10) SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO...................................................................................................................11 2. POESIA E SUBVERSÃO DA LINGUAGEM..................................................................20 2.1. Fortuna Crítica de uma Poesia Socialmente Comprometida....................................25 2.2. Solidariedade e Empatia no Eu....................................................................................28 3. A MÃE E A REPRODUÇÃO ASSEXUADA....................................................................34 3.1. “Mater originalis”: o Eu-lírico como Filho.................................................................35 3.2. “A Ideia”: Alegoria Neurológica da Reprodução Assexuada.....................................39 3.3. “Soneto” ao Filho: o Eu-lírico como Mãe....................................................................42 3.3.1. Filho natimorto, ideia natimorta...............................................................................44 3.3.2. O gigante como Pai..................................................................................................46 3.3.3. Androginia do papel procriador...............................................................................47 3.4. “A Árvore da Serra”: o Pai contra o Filho..................................................................53 4. A MERETRIZ E O PROBLEMA DA SEXUALIDADE.................................................62 4.1. “Depois da Orgia”: a Voz da Hetaira...........................................................................63 4.2. “Os Doentes”: os Sonhos Perdidos das Prostitutas....................................................72 4.3. “Monólogo de uma Sombra”: o Sátiro e as Bacantes.................................................80 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................89 REFERÊNCIAS......................................................................................................................92.

(11) 11 1. INTRODUÇÃO A virada do século XIX para o XX foi marcada pela aparição de um dos autores mais singulares do período dominado pela poesia parnasiana no Brasil. Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, nascido em 20 de abril de 1884, no Engenho Pau d’Arco, município de Cruz do Espírito Santo, Paraíba, não foi notadamente bem recebido pela crítica de seu tempo, mas seria posteriormente lembrado e grandemente celebrado pelo grande público, por estudiosos e por artistas das mais variadas áreas. Augusto dos Anjos fez seus primeiros estudos em casa, com a tutoria do pai, e estudou no Liceu Paraibano, onde veio a ser professor em 1908. Começou a estudar Direito na Faculdade do Recife em 1903 e morou no Rio de Janeiro a partir de 1910, onde lecionou em diversas escolas. A história da publicação de seus poemas começa em 1900, com o soneto “Saudade”, publicado em um periódico. Mas foi em 1912 que a obra de sua vida e de sua pós-morte ganhou forma, seu livro único de poesia, Eu, um volume contendo 58 poemas. Após seu falecimento, aos 30 anos de idade, em 12 de novembro de 1914, na cidade de Leopoldina, Minas Gerais, Órris Soares organizaria uma edição chamada Eu e Outras Poesias, incluindo peças inéditas até então (ANJOS, 1996, p. 35-37). Porém, não recebeu a atenção devida pelo público contemporâneo, além de ter sido mal compreendida: Mesmo tendo recebido, inicialmente, uma referência favorável de Mário Pederneiras, no periódico Fon-Fon, o livro de Augusto não teve sucesso nem entre os remanescentes do Simbolismo, nem no bojo dos herdeiros do Parnasianismo. Ora considerada como mais uma manifestação parnasiana, ora um simples eco simbolista, a obra de Augusto foi, de início, repelida, além de ter passado despercebida pelo grupo modernista. Desamado de todos, salvo de uns raros amigos que continuaram a exaltá-lo e a colaborar para suas reedições, o EU nascia feito anjo torto, sob o signo do hibridismo e da contradição. (HELENA, 1977, p. 18). A fortuna crítica sobre a poesia de Augusto dos Anjos é vasta e múltipla. A partir de tão heterogêneo conjunto de escritos percebemos quão difícil, senão impossível, é esgotar o que se há para dizer sobre o Eu. Somente na Obra Completa (ANJOS, 1996), o organizador, Alexei Bueno, nos apresenta vinte e um textos, entre pequenos ensaios e artigos, de críticos literários, estudiosos e intelectuais de diversas áreas, que servem como minúscula amostra daquilo que se pode encontrar no mercado editorial e na produção acadêmica em todo o Brasil. As discrepâncias que se podem encontrar nessa fortuna crítica começam nas tentativas de classificar o poeta em sua filiação literária, a escola/período a que pertenceria na histó-.

(12) 12 ria da literatura brasileira. Essas discrepâncias são demonstradas por Lúcia Helena (1984), que aponta para o fato de Augusto dos Anjos ter sido identificado como simbolista, parnasiano, neoparnasiano, pré-moderno, entre outras classificações, dependendo do viés de cada crítico. Helena enfatiza cinco características que aproximam Augusto dos Anjos do Modernismo, colocando sua obra numa posição privilegiada na história da literatura brasileira, como uma produção à frente de seu tempo: 1) a desvinculação entre poesia e o conceito estabelecido de beleza; 2) a forte presença de temas telúricos; 3) a opção por uma abordagem crítica; 4) a utilização de recursos impressionistas e 5) a presença de aspectos que antecedem o expressionismo (HELENA, 1984, p. 23-26). Já Maria Esther Maciel (1990) considera que a dificuldade de se encontrar um lugar para a poesia de Augusto dos Anjos na literatura brasileira se deve ao “jogo de margens a ela inerente” (MACIEL, p. 4). É uma poesia que se inscreve, segundo ela, entre três margens: a da tradição poética do século XIX, a da ruptura característica do Modernismo e “a margem da excentricidade e da estranheza, a que está fora de qualquer rótulo e de qualquer centro” (MACIEL, p. 4). Para Maciel, a obra de Augusto dos Anjos não estaria nem na primeira, nem na segunda, nem na confluência das duas primeiras margens, mas sim na terceira, “a margem da qual nada se sabe, que está lá, na fenda, no não-lugar entre as outras duas – onde habita o gozo da linguagem e onde a morte se insinua. A margem da estranheza e da diferença, responsável por todos os sobressaltos do leitor” (MACIEL, p. 6). Assim, vários críticos abriram mão de enquadrar o poeta paraibano numa classificação canônica tradicional, ou ao menos encaixá-la num modelo estético único, reconhecendo, ao contrário, sua singularidade literária, sua heterogeneidade e a multiplicidade de significados que se pode tirar dela. Derivaldo dos Santos (2002) considera a obra de Augusto dos Anjos um misto das tendências parnasianas de seu tempo com aspectos originais que prenunciam o Modernismo. O resultado dessa confluência é uma obra grandiosa, incapaz de ser totalmente abarcada pela crítica em tudo aquilo que diz e pode dizer, inapreensível dentro de uma classificação tradicional, que só empobreceria o entendimento de suas nuanças. Em toda a profusa produção crítica sobre a obra do poeta paraibano, é unânime considerar sua poesia como dotada de uma notável originalidade. Manuel Bandeira (ANJOS, 1996, p. 114) destaca o uso das sinéreses como forma de representar a impossibilidade da língua, ou da matéria, para expressar os ideais do espírito. Eudes Barros (1974) nota o uso inusitado dos adjetivos por Augusto dos Anjos, e qualifica seus substantivos como extremamente sinestésicos, criando dimensões desconhecidas para a adjetivação convencional. Vários desses.

(13) 13 recursos fonéticos e sinestésicos podem ser visto neste único verso do soneto “O Mar, a Esca da e o Homem”: “Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!” (ANJOS, 1996, p. 255). As análises e interpretações sobre sua obra variam muito, tanto na escolha dos temas considerados mais relevantes quanto nas abordagens teóricas seguidas por cada pesquisador. Seja através de análises psicológicas e psicanalíticas de sua poesia, seja por estudos históricosociológicos, ou ainda considerando sua produção poética como alegoria ou metalinguagem, a fortuna crítica sobre sua obra poética não para de se diversificar e enriquecer com o passar do tempo. Dessa forma, o poeta paraibano está longe de passar despercebido ou de ser considerado irrelevante para a história da literatura brasileira. Entre os temas mais comuns e sempre lembrados na obra de Augusto dos Anjos está a melancolia que se revela em muitos de seus poemas. Vemos a atmosfera melancólica neste trecho de “Solitário”: Como um fantasma que se refugia Na solidão da natureza morta, Por trás dos ermos túmulos, um dia, Eu fui refugiar-me à tua porta! (ANJOS, 1996, p. 226). Essa melancolia é interpretada de múltiplas maneiras e segundo abordagens bastante diversas. Uma vertente de críticos, dos quais Ferreira Gullar (1978) é um exemplo, acredita que essa melancolia é fruto do contexto sócio-histórico em que viveu Augusto dos Anjos, ou seja, o Brasil na passagem do século XIX para o XX. Outros procuram explicar esse caráter melancólico através de conceitos psicológicos, como Eudes Barros (1974), ou psicanalíticos, como é o caso do célebre ensaio de Chico Viana (1994). A origem da melancolia da poesia de Augusto dos Anjos estaria, na abordagem de Viana, em dramas edipianos típicos de uma visão freudiana. Há ainda aqueles que, como Sandra Erickson (2003) 1, analisam a poesia de Augusto dos Anjos baseada em sua criatividade como artista, de acordo com a teoria da angústia da influência de Harold Bloom. O artista seria plenamente consciente de sua capacidade como poeta e de seu potencial para realizar uma grande obra. A melancolia da voz lírica viria da luta pela superação dos “mestres” para realizar algo novo. Ligada a essa melancolia, outro tema sempre muito lembrado da obra de Augusto dos Anjos é uma certa “teratologia”, com imagens de putrefação, morbidez, dor, horror e morte, como nesta estrofe de “Monólogo de uma Sombra”:. 1. Ressaltamos que a produção posterior de Erickson foi marcada por uma revisão dessa teoria e uma ampliação de perspectivas. Voltaremos a ela mais adiante. V. Erickson (2015)..

(14) 14 A desarrumação dos intestinos Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos Dentro daquela massa que o húmus come, Numa glutoneria hedionda, brincam, Como as cadelas que as dentuças trincam No espasmo fisiológico da fome. (ANJOS, 1996, p. 197). Esse talvez seja um dos mais resistentes estereótipos atribuídos ao poeta paraibano, condensados na expressão “Poeta da Morte”, título de um artigo de Antônio Torres (ANJOS, 1996, p. 52), e propagado até hoje pelos mais diversos leitores. A marca da lugubridade foi também reforçada por Órris Soares (ANJOS, p. 60), editor póstumo do Eu e Outras Poesias, e diversos outros críticos e intelectuais, como Gilberto Freyre (ANJOS, p. 76) e Carlos Burlamaqui Kopke (ANJOS, p. 151), para quem a teratologia se relaciona com o uso da racionalidade pelo poeta, e portanto de conceitos científicos. Chama atenção, aliás, a terminologia científica na poesia do Eu, presença excêntrica dentro do quadro literário em que foi publicado. Ainda segundo Kopke, a Ciência seria uma forma de superar a angústia da materialidade e dos sentimentos, mas é também um saber que lhe traz sofrimento, por causar o desencantamento do mundo, contrapondo-se à Arte, vista como uma maneira de suportar a realidade crua da natureza. Em outro trecho do poema supracitado, a “Sombra” nos revela: Ah! Dentro de toda a alma existe a prova De que a dor como um dartro se renova, Quando o prazer barbaramente a ataca... Assim também, observa a ciência crua, Dentro da elipse ignívoma da lua A realidade de urna esfera opaca. Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, Abranda as rochas rígidas, torna água Todo o fogo telúrico profundos E reduz, sem que, entanto, a desintegre, À condição de uma planície alegre, A aspereza orográfica do mundo! (ANJOS, p. 199). Dessa forma, sua própria poesia pode ser entendida como um meio de se amenizar o sofrimento causado pela consciência da realidade promovida pelo saber racional da Ciência. A angústia advinda da tensão entre Ciência e Arte é um exemplo entre muitos de outra das mais fortes marcas de Augusto dos Anjos: os contrastes e antagonismos. Há forte presença de paradoxos, ironias e antíteses, bem como o cotejo de ideias e conceitos contrastantes. Idealismo e materialismo, dualismo e monismo, heterogeneidade e homogeneidade, amor e dor, morte e.

(15) 15 vida. O próprio escritor deixa isso bem claro no soneto “Contrastes”: A antítese do novo e do obsoleto, O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina, O que o homem ama e o que o homem abomina. Tudo convém para o homem ser completo! (ANJOS, p. 260). Aqui o poeta deixa claro que todas os antagonismos encontrados em sua complexa poesia são complementaridades, ou seja, não se caracterizam como oposições maniqueístas, mas sim como a conciliação de contrários.2 Foi tendo em vista esse aspecto que, na monografia de graduação em Ciências Sociais (BARROS, 2004), observamos a representação da Mãe e da Meretriz como figuras que abarcam símbolos opostos de uma mesma feminilidade, personificada nas mulheres cuja liberdade é tolhida pela dominação masculina. Considerando, além disso, trechos dessa poesia que mostram o poder masculino como opressor (simbolizado principalmente pelas figuras contrastantes do Pai e do Sátiro), propomo-nos aqui realizar uma leitura sobre as articulações entre essas imagens e como essas relações demonstram a lucidez do poeta a respeito da violência exercida sobre as mulheres na sociedade patriarcal. Consideraremos como pertinente para esta análise a noção de que a reprodução sexuada é problematizada no Eu. A partir daí, um dos fundamentos da interpretação será a complementaridade entre reprodução/esterilidade e/ou nutrição/exaustão, correspondentes à díade Mãe/Meretriz. Teremos, portanto, como temas principais: por um lado, a Mãe oposta/complementar à Meretriz (enquanto duas facetas de um mesmo símbolo, o feminino e a mulher); e, por outro, o Pai oposto/complementar ao Sátiro (enquanto símbolos do Patriarcado). Como temas secundários, teremos: a reprodução (entendida como papel tradicionalmente considerado 2. Todos esses temas são repetidos à exaustão como definidores da poesia de Augusto dos Anjos, seja por críticos de literatura, seja por professores. Porém, essa definição acaba por perpetuar uma injustiça para com a grandiosidade da obra do poeta paraibano. Se esta não se deixa apreender por uma escola/período, tampouco se esgota na possibilidade de ser abordada pelas mais diversas teorias, nem nos temas que revela. Como diz Sandra S. F. Erickson (2015): “Como no caso de Shakespeare, qualquer metodologia e teoria podem servir de paradigma para analisar a poética radical de Augusto” (p. 49). Lúcia Helena (1984) fala de uma cosmogonia; Maria Esther Maciel (1990) explora a atopia na poesia do Eu; Montgomery José de Vasconcelos (1996) analisa a obra de Augusto dos Anjos de acordo com o conceito bakhtiniano de carnavalização; Henrique Duarte Melo (2005) encontra no tema da noite pontes com correntes estéticas deformativas (Simbolismo, Expressionismo e Surrealismo); Waleska Cristina Moreira Morais (2009) relaciona a poesia do Eu com a obra de Alexei Bueno através do existencialismo sartreano; Iara Maria Carvalho Medeiros dos Santos (2009) aborda o niilismo utópico em Augusto dos Anjos, trazendo conceitos de Nietzsche e Benjamin; Erickson (2015) explora a presença do sublime no Eu, relacionando-o com o budismo; só para citar alguns trabalhos, entre artigos, dissertações, teses e ensaios..

(16) 16 como feminino e, portanto, atribuído à mulher), a sexualidade e o controle exercido pela dominação masculina sobre essas funções e sobre a sexualidade feminina. Para nos guiar na escolha do corpus que será objeto deste trabalho, baseamo-nos na ideia, defendida por Lúcia Helena (1977) de que os poemas do Eu estão unidos por um veio comum, como partes de um todo significativo. Para ela, o “artesanato poético” de Augusto dos Anjos tece uma cosmogonia e representa a construção de um mundo, desatrelado de sua vida pessoal e do mundo/época em que viveu: O traçado épico prende-se ao caráter unitário desse mundo construído na linguagem, e que assume a forma de uma cosmogonia: uma espécie de história mítica que relata a origem, o aparecimento de algo. Uma narração sempre ligada ao tema da criação do universo, à predição do fim dos tempos e ao surgimento de uma nova humanidade. Uma reflexão sistemática que se repete ao longo de todos os seus poemas (HELENA, 1997, p. 11).. Helena aponta para a necessidade de se considerar em sua análise apenas os poemas que compõem o Eu, selecionados pelo próprio poeta segundo seus próprios critérios. Daí considerar que o livro de Augusto dos Anjos tem alguma coesão temática, pelo que Helena toma o Eu como um único poema dividido em várias partes. Em vista do caráter composto de seus poemas, em que ao lirismo romântico das barcarolas e da ama Guilhermina misturam-se o satanismo e o macabro, o épico e o dramático, podemos afirmar que Augusto dos Anjos sempre escreveu, ao longo de toda sua obra, um único poema, incansavelmente repensado: o poético interrogar da destinação e da trajetória do homem, que encontra na Arte a expressão máxima da existência (HELENA, p. 11-12).. De fato, vários outros estudiosos da obra de Augusto dos Anjos analisam e interpretam os temas dessa poesia com base na ideia de que o Eu representa, em seus diversos poemas, uma unidade. Chico Viana (1994), por exemplo, encontra na maioria dos poemas do Eu os traços característicos da melancolia. Sandra Erickson (2016) mostra que a consciência do poeta sobre as influências que nutriram sua obra e seu papel como influenciador de poetas posteriores é um tema onipresente nas poesias de Augusto dos Anjos. Derivaldo dos Santos (2002) encontra nessa obra os traços de uma poética de ruptura e transição na história da literatura brasileira. Consideraremos que o conjunto de poemas que serão trabalhados é parte de um mesmo todo coerente, como capítulos de um mesmo texto, com referências mútuas e entrelaçamentos, que nos permitem pensar diversos aspectos e facetas, numa leitura do conjunto. Pro-.

(17) 17 curaremos entender de que forma o Eu ressignifica (ou ajuda a ressignificar) as representações tradicionais de gênero. Porém, contrariando em parte a noção de Lúcia Helena, também faremos referências a poemas que estão fora do Eu (e que, portanto, compõem as chamadas Outras Poesias), pois eles repetem e, mais do que tudo, desenvolvem e reelaboram muitas das ideias, temas e visões presentes na obra principal do poeta. Nisso, analisaremos com atenção poemas que tratem desses temas. A Mãe e a reprodução assexuada serão os temas explorados em “A Ideia”, “Mater Originalis”3 e o “Soneto” ao Filho4. A negação da sexualidade e a Meretriz serão vistas em “Depois da Orgia” e trechos de “Os Doentes” onde aparece a figura da prostituta. O Pai como símbolo do controle da reprodução aparecerá em “A Árvore da Serra”, enquanto o Sátiro que simboliza o desregramento masculino e o controle da sexualidade feminina em sua relação com a Meretriz (e seus des dobramentos: a hetaira, a bacante, a prostituta) será encontrado em trechos de “Monólogo de uma Sombra”. Faremos também referências a outros poemas que contribuam para compreender essa representação. Devemos levar em conta que a mensagem que pretendemos apreender de Eu e das Outras Poesias deve se embasar naquilo que está dito na extensão dos sonetos e poemas longos que compõem essa obra, pois, “se queremos fazer com que nossa interpretação de um livro pareça plausível, não podemos simplesmente glosar um ou dois versos ou cenas. Teremos de dizer alguma coisa sobre o que a maioria dos outros versos ou cenas estão fazendo ali” (RORTY, p. 112). Remeter-nos-emos a outros textos literários, notadamente de autores gregos e romanos5 que registraram os mitos mediterrâneos antigos, as histórias sobre deusas-mães e deuses patriarcais. Traremos também exemplos da prosa moderna que tratam dos conflitos advindos da dominação masculina, como A Metamorfose, de Franz Kafka (2001), bem como poemas pinçados de O Livro das Cortesãs, coletânea organizada por Sergio Faraco (1999) que reúne poesias em língua portuguesa sobre mulheres sexualmente estigmatizadas. Tentaremos assim estabelecer um diálogo com os diversos discursos poéticos a respeito da dominação masculina e da condição da mulher nas sociedades ocidentais. 3 4. 5. Alguns dos títulos dos poemas estão grafados originalmente em itálico, por estarem escritos em outros idiomas (latim, neste caso). Mantemos essa grafia, sendo que as aspas indicam que se trata de um título de poema e não de um livro. Este poema, no Eu, está intitulado apenas como “Soneto”. Para diferenciá-lo de outros sonetos sem título definido, presentes na obra do poeta, vamos chamá-lo de “Soneto” ao Filho, tendo em vista que ele foi dedicado ao “primeiro filho nascido morto” de Augusto dos Anjos. Preferimos essa forma à normalmente utilizada com poemas sem título, que consiste em denominá-lo com o primeiro verso (neste caso, “Agregado infeliz de sangue e cal”), por tornar a leitura mais fluida e remeter sempre ao tema central do soneto. Apuleio (2014), Eurípides (1993), Hesíodo (2013), Sófocles (2001), Virgílio (2017)..

(18) 18 A análise de cada poema precederá à sua interpretação, e nisto seguimos as lições de Antonio Candido (1996) sobre o trabalho de leitura do texto poético: “Todo estudo real da poesia pressupõe a interpretação, que pode inclusive ser feita diretamente, sem recurso ao comentário, que forma a maior parte da análise. A análise como comentário é um preâmbulo” (CANDIDO, 1996, p. 14). No trabalho de interpretação, teremos sempre em mente a noção de obra aberta, defendida por Umberto Eco (2005), segundo a qual a obra literária é um campo aberto à investigação do leitor/pesquisador. Neste sentido, inspiramo-nos também em Roland Barthes (2004) quando colocamos o papel do leitor na construção do texto (entendido como a tessitura provocada pelo desdobramento das leituras e releituras) como mais importante do que o do autor na consolidação da obra, ideia que Jorge Luis Borges (2000) muito bem condensou: “[…] I think of writing as being a kind of collaboration. That is to say, the reader does his part of the work; he is enriching the book” (p. 119)6. Essa interpretação será feita em diálogo com teorias de autoras e autores que investigam questões de gênero. Simone de Beauvoir (2009) trará contribuições quanto às diversas formas de desmontar os discursos ideológicos que naturalizam as relações de poder entre homens e mulheres. Pierre Bourdieu (2002) é importante na compreensão das diversas formas pelas quais a dominação masculina se legitima como normal, especialmente nos mecanismos de controle do corpo feminino. Élisabeth Badinter (1986) será fundamental na desconstrução das dicotomias de gênero, mostrando-nos que os tradicionais dualismos que engessam nossa visão sobre as supostamente naturais oposições entre masculino e feminino podem ser subvertidos no texto poético, bem como denunciando o poder patriarcal nas relações entre o masculino e o feminino. Esperamos que esta pesquisa contribua para suprir a falta de uma fortuna crítica sobre Augusto dos Anjos que trate de maneira mais ampla e profunda sobre as questões de gênero presentes em sua obra. Essa lacuna não se dá por qualquer falta de figuras femininas nos poemas do poeta paraibano. Há uma forte presença de mulheres como personagens marcantes nesses versos: as bacantes, a prostituta, a ama-de-leite, a mãe, a morte, a hetaira, a sereia, entre outras. Todas elas poderiam suscitar interessantes discussões no bojo dos estudos feministas. Mas talvez não tenha chamado suficiente atenção dos estudiosos o fato de em diversos trechos do Eu (e em várias partes das Outras Poesias) ser possível perceber uma representação das relações de gênero, da dominação masculina e da condição subalterna da mulher. 6. “[…] eu penso que a escrita é um tipo de colaboração. Isso quer dizer que o leitor participa da obra; ele enriquece o livro” (tradução livre)..

(19) 19 No próximo capítulo, discutiremos o caráter subversivo da poesia de Augusto dos Anjos e seu viés social, tendo em vista os temas da solidariedade e da empatia, tão presentes em sua obra, apesar de ainda pouco explorados pela crítica. A partir disso, veremos de que forma a Mãe e a Meretriz aparecem como imagens com as quais o eu-lírico se identifica, articulando os temas da reprodução assexuada e da rejeição da sexualidade. Em seguida, no capítulo 3, conduziremos o estudo da imagem da Mãe e sua articulação com o tema da reprodução assexuada, partindo do poema “Mater Originalis”. Exploraremos também “A Ideia” como uma alegoria da reprodução assexuada e veremos o eu-lírico assumindo o papel de mãe no “Soneto” ao Filho. Essa análise será feita em conjugação com observações sobre a figura masculina do Pai, no poema “A Árvore da Serra”, como complemento relacional da Mãe, representando o elemento opressor que controla o corpo reprodutor. Traremos então, no quaruto capítulo, a imagem da Meretriz, perscrutada em diálogo com a questão da dominação sexual do corpo feminino, e para tanto elencaremos o soneto “Depois da Orgia” e a parte VI do poema longo “Os Doentes”. Traremos ainda a figura masculina do Sátiro, presente nos versos 91-144 (estrofes 16-24) do longo poema “Monólogo de uma Sombra”, como complementar à Meretriz em seu aspecto de controlador do corpo feminino sexuado. No último capítulo vamos retomar as ideias discutidas ao longo do trabalho, fazendo considerações finais sobre como a poesia de Augusto dos Anjos traz uma compreensão sobre a posição subalterna das mulheres na hierarquia dominada pelo androcentrismo, bem como a natureza dos anseios daquelas que têm suas liberdades tolhidas pelo Patriarcado..

(20) 20 2. POESIA E SUBVERSÃO DA LINGUAGEM […] o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao universal por tornar manifesto algo de não distorcido, de não captado, de ainda não subsumido, anunciando desse modo, por antecipação, algo de um estado em que nenhum universal ruim, ou seja, no fundo algo particular, acorrente o outro, o universal humano. A composição lírica tem esperança de extrair, da mais irrestrita individuação, o universal. (ADORNO, 2012, p. 66). Theodor W. Adorno, na “Palestra sobre Lírica e Sociedade” (2012), nos fala da importância da linguagem lírica em seu papel de evidenciar, através da expressão individual, uma realidade social universal. Para o teórico alemão, o poeta é tanto mais eficaz em seu trabalho quanto mais seu poema permite ao leitor experimentar algo além da própria subjetividade, ou seja, identificar-se com a experiência humana: “Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade” (ADORNO, 2012, p. 67). Esse poder da poesia, ou da própria literatura e, é claro, da Arte, se evidencia independentemente da “assim chamada posição social ou a inserção social dos interesses das obras ou até de seus autores” (ADORNO, 2012, p. 67). Com o que concordaria José Guilherme Merquior (2013), para quem a posição da pessoa que escreve não explica aquilo que se vê em sua obra enquanto artista: “Às vezes, a ʽideologiaʼ do artista, conscientemente professada, está em desacordo com a real” (MERQUIOR, 2013, p. 231). Roland Barthes (2002) também o diz: As forças de liberdade que residem na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor que, afinal, é apenas um “senhor” entre outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua (BARTHES, 2002, p. 17).. A língua nos sujeita a formas estereotipadas de dizer, pois através dela “sou obrigado a escolher sempre entre o masculino e o feminino, o neutro e o complexo me são proibidos” (BARTHES, 2002, p. 13). Não existindo meio de fugir da língua, só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura (BARTHES, 2002, p. 16).. Através do texto literário é possível escapar da simples delimitação dualista de identidades de gênero, fazendo-nos não apenas reconhecer o caráter inventado daquilo que chama-.

(21) 21 mos feminilidade e masculinidade, mas também experimentar pela linguagem identidades mistas ou completamente fora desse dualismo. O olhar veiculado pela obra poética é subversivo: “Obras de arte […] têm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde” (ADORNO, 2012, p. 68)7. É o próprio aspecto estético da literatura que nos leva a reconhecer o papel ético do escritor e sua responsabilidade social: Qualquer ideia acerca da responsabilidade social do artista tem que incorporar essa crença na arte como função cognitiva, porque, sob pena de andarmos em nuvens, não há outro meio de se exigir do artista uma determinada atitude a não ser reconhecendo nele um instrumento de visão (MERQUIOR, 2013, p. 229).. Essa especificidade do papel social do escritor leva em conta o poder que tem a literatura de nos fazer vivê-la como vida concreta e vibrante, e através dela apreender um “fimes tecido de sigificações” (MERQUIOR, 2013, p. 232). A arte é o retrato natural da existência humana, e daí permitir que nela o homem reconheça, numa só ação, a proximidade e a distância, o estar-vivo imediato e a mediatíssima perspectiva em que a vivência foi objeto da consciência e da crítica, foi degrau na marcha de um autoconhecimento que se relativiza a cada etapa de história. Arte é mimese, mas não do produto da vida, e sim da vida-em-produção (MERQUIOR, 2013, p. 232).. Para Alfredo Bosi, é porque “a linguagem permite que as coisas ganhem um sentido público e comunicável na teia intersubjetiva” (BOSI, 2013, p. 9) que o texto literário pode exercer sua função de provocar no leitor a empatia por aqueles que a sociedade desumanizou: Então vem o poeta e divisa na massa amorfa que passa pela rua uma fgura humana, mulher, homem, velho, jovem, criança; em um relance, o que era sombra errante vira gente. O que era espaço opaco transparece varado pela luz da percepção amorosa ou perplexa, mas sempre atenta. Aquele vulto que parecia vazio de sentido começa a ter voz, até mais de uma voz, vozes. Irrompe o fenômeno da ex-pressão. Quem tem ouvidos, ouça! (BOSI, 2013, p. 10).. 7. É importante esclarecer que o termo ideologia está sendo usado de maneira irônica por Merquior, enquanto Adorno o emprega em seu sentido próprio de acordo com o conceito marxista: “Para Marx, claramente, ide ologia é um conceito pejorativo, um conceito crítico que implica ilusão, ou se refere à consciência deformada da realidade que se dá através da ideologia dominante: as idéias das classes dominantes são as ideologias dominantes na sociedade” (LÖWY, Michael. Ideologias e ciências sociais: elementos para uma análise marxista. São Paulo: PUC, 1991. p. 12). A ideologia é um mascaramento da realidade, um apagamento da historicidade, ou seja, da origem histórica das desigualdades sociais, um conjunto de ideias, discursos e práticas que favorece um grupo em detrimento de outro e que é reproduzido por ambos..

(22) 22 Na subjetividade do eu poético individual, expressa-se uma experiência coletiva, uma identificação com o outro e um entendimento de solidariedade para com aqueles a quem é negada qualquer expressividade: “A poesia devolveu corpo e alma, forma e nome ao que a máquina social já dera por perdido” (BOSI, 2013, p. 16). Se a história das desigualdades humanas privilegiou certos indivíduos com a capacidade de livre expressão de sua subjetividade, aqueles que não apenas se encontram alienados, como se fossem objetos, diante do desconcertado sujeito poético, mas que também foram rebaixados literalmente à condição de objeto da história, têm tanto ou mais direito de tatear em busca da própria voz, na qual se enlaçam o sofrimento e o sonho (ADORNO, 2012, p. 76-77).. Daí também advém uma responsabilidade por parte do artista a quem as contingências sociais deram oportunidade de publicar sua poética e, através dela, levar aos leitores a voz daqueles que estão silenciados por essa mesma sociedade, tais como as mulheres, as prostitutas, os descendentes de escravos, os indígenas, os doentes. Mas é preciso atentar para o caráter múltiplo das possibilidades interpretativas de um texto, pois ele pode veicular ideias conservadoras tanto quanto ideais subversivos. Roland Barthes diferencia duas formas de se ler uma obra: Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psico lógicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem (BARTHES, 2013, p. 20-21).. Consideramos que nossa leitura anterior do imaginário da poesia de Augusto dos Anjos (BARROS, 2004) nos levou a ver sua obra como veiculadora de ideias conservadoras a respeito das relações de gênero. Entedíamos, então, que o Eu exaltava o papel materno como apanágio das mulheres e, ao mesmo tempo, desprezava as meretrizes em sua posição estigmatizada por uma prática sexual marginalizada. Essa leitura, levada a cabo sob uma perspectiva pouco aprofundada e sem levar em conta a natureza subversiva do texto literário, se mostrou equivocada por se fazer apenas como texto de prazer. Toda a transgressão da poesia de Augusto dos Anjos observada em sua estética excepcionalmente extemporânea deveria se refletir naquilo que ela diz e não apenas na forma pela qual o diz, e dessa forma o Eu deve ser lido como texto de fruição. Só assim.

(23) 23 poderemos contemplar a profundidade a que chega a obra do poeta paraibao em seu papel social enquanto artista. A experiência de leitura da poesia de Augusto dos Anjos é repleta de estupefação e surpresa, tanto por causa do vocabulário heterogêneo quanto pela fonética excêntrica e a articulação incomum de ideias de senso comum com conceitos filosóficos, científicos e místicos, formando uma tessitura poética rica e intrincada. É possível encontrar em sua obra poemas que se apreciam enquanto texto de prazer, como o soneto “Vandalismo”, que possui fortes reminiscências do Simbolismo, com um vocabulário e uma temática muito ligados à linguagem poética corrente e, portanto, dotado de poucos elementos transgressores: Meu coração tem catedrais imensas, Templos de priscas e longínquas datas, Onde um nume de amor, em serenatas, Canta a aleluia virginal das crenças. Na ogiva fúlgida e nas colunatas Vertem lustrais irradiações intensas Cintilações de lâmpadas suspensas E as ametistas e os florões e as pratas. Como os velhos Templários medievais Entrei um dia nessas catedrais E nesses templos claros e risonhos… E erguendo os gládios e brandindo as hastas, No desespero dos iconoclastas Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos! (ANJOS, 1996, p. 279). Porém, mesmo que estes versos representem uma fase imatura do poeta, com acentuada influência do Romantismo e do Simbolismo, já vemos nos tercetos uma quebra simbólica com os ideais poéticos contemporâneos. Essa ruptura vai se acentuar ainda mais nos poemas da maturidade do escritor. Se nos detivermos, por exemplo, nas primeiras estrofes do primeiro poema do Eu, “Monólogo de uma Sombra”, percebemos com mais nitidez as características de texto de fruição. Se, por um lado, o poema começa com a apresentação da Sombra como um ser definido por um caráter mítico (“outras eras”, “caos telúrico”, “cósmico segredo”), ela é ao mesmo tempo apresentada através de conceitos científicos (“moneras”, “pólipo”, “larva”):.

(24) 24 “Sou uma Sombra! Venho de outras eras, Do cosmopolitismo das moneras… Pólipo de recônditas reentrâncias, Larva de caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias! (ANJOS, 1996, p. 195). Algumas estrofes depois, o eu-lírico arregimenta conceitos de religiosidades orientais antigas, em palavras como “Abidarma” (um dos livros sagrados do Budismo) e “bramânicas” (relativo a Brama, uma das facetas do principal deus do Hinduísmo): Na existência social, possuo uma arma – O metafisicismo de Abidarma – E trago, sem bramânicas tesouras, Como um dorso de azêmola passiva, A solidariedade subjetiva De todas as espécies sofredoras. (ANJOS, 1996, p. 195). Logo em seguida, o monólogo se atém a fenômenos mundanos, com termos que dificilmente fariam parte do vocabulário de um Olavo Bilac, tais quais “saliva”, “nojo”, “podridão”, “esterco”, “resíduos ruins”. Tudo isso em companhia do nome da escritura sagrada cristã, “Evangelho”, recurso bastante provocativo para uma cultura pautada na associação do Cristianismo com o sublime: Com um pouco de saliva quotidiana Mostro meu nojo à Natureza Humana. A podridão me serve de Evangelho... Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques […] (ANJOS, 1996, p. 195). Mais adiante, o eu-lírico transforma texto em imagem ao utilizar uma consoante em itálico para demonstrar visualmente sua metáfora: “E até os membros da família engulham, / Vendo as larvas malignas que se embrulham / No cadáver malsão, fazendo um s.” (ANJOS, 1996, p. 197). Toda essa tessitura excêntrica forma uma poética de difícil apreensão imediata, que foge aos ditames estéticos de seu tempo e que até hoje soa como um texto subversivo e agressivo, dotado de uma beleza exótica e fugidia, uma estética transgressora que promove uma profunda ressignificação de palavras e conceitos, caracterizando o Eu como uma obra de arte que cumpre seu papel social (MERQUIOR, 2013)..

(25) 25 2.1. Fortuna Crítica de uma Poesia Socialmente Comprometida Antes de Lúcia Helena (1984), a maior parte dos autores que contribuíram para a fortuna crítica sobre Augusto dos Anjos se preocupou mais com as extravagâncias estilísticas do poeta do que com seu artesanato poético e seu compromisso em denunciar as mazelas sociais. Para Helena, a poética de Augusto dos Anjos é a construção de um mundo, desatrelado de sua vida pessoal e do mundo/época em que viveu. A visão da autora de A Cosmo-agonia de Augusto dos Anjos vai ao encontro de nossa concepção da obra artística como comprometida socialmente. Ao dissertar sobre o Eu, Helena afirma que: Mais do que “instrumento útil” que favorece ao conhecimento, a obra de arte literária é produtora de significações, abre perspectivas para o homem que, consumindo objetos, acaba por ser consumido como um objeto da engrenagem social. Deste modo, é na criação literária que este homem consumido pode desvendar uma fresta que o libere da alienação em que vive. Assim, não seria um puro jogo de palavras dizer que a obra de arte literária é, em si mesma, a possibilidade de instauração de um mundo (HELENA, 1984, p. 56).. Em suma, “a obra de arte literária pode ser vista como aquilo que abre para o homem a possibilidade de desalienar-se” (HELENA, 1984, p. 57). É nesse sentido que a poesia do Eu é lida por Helena como a construção textual de uma cosmogonia que desconstrói, através da linguagem, a realidade social em que viveu Augusto dos Anjos, propondo a instauração de um novo mundo. Felizmente, têm aparecido muitas contribuições a essa visão da obra de Augusto dos Anjos como carregada de uma crítica social. Paola Nunes de Souza (2009), por exemplo, focando nas onipresentes tensões de que é feita a poesia do Eu, mostra quão afinada a obra de Augusto dos Anjos está com o espírito moderno e com o caráter crítico da Modernidade. Trata-se de uma poesia que concilia diversos pares de oposição de que são feitas a realidade, uma arte deveras significativa, que buscava manifestar de forma muito solidária – evocando aqui o eu lírico de Monólogo de uma sombra –, diversos elementos que possuíam uma existência, por mais insignificante que fosse. […] o olhar do eu lírico das poesias de Augusto dos Anjos perscrutava e assimilava elementos que iam de um “carneiro morto”, bactérias ou mesmo um mero “gérmen”, isto é, elementos simples e muitas vezes repulsivos, e chegava até a elementos como a Ideia, o macrocosmo e, sobretudo, ao próprio eu lírico, o qual se mostrava, como podemos ver em inúmeras poesias, como o ser mais importante presente dentro de sua poética (SOUZA, 2009, p. 109)..

(26) 26 Ou seja, uma obra poética que se compromete socialmente, ao prestar atenção aos seres da existência normalmente relegados ao esquecimento, e ao descrever o mundo como um lugar marcado pela tensão, que também constitui a poesia do Eu: uma tensão criativa que traz à tona um olhar geral e universal sobre o mundo e suas intrínsecas problemáticas, muitas vezes vindo de uma situação muito particular que, em última instância, propõe um modo novo de facear a realidade, estabelecendo assim uma crítica aos valores vigentes; tanto no campo da vida sensível quanto na área da arte (SOUZA, 2009, p. 114).. A obra de Augusto dos Anjos é caracterizada por Iara Maria Carvalho Medeiros dos Santos (2009) como carregada de niilismo utópico e preocupada com os problemas da Modernidade: a sua poética dá a ver uma manifestação de protesto contra os aspectos aviltantes da civilização moderna, cuja vida mecanizada tende a construir uma visão de tempo homogeneizada, como se o desgaste das experiências comunicáveis fosse algo imanente à evolução histórica (SANTOS, 2009, p. 144).. Santos enxerga no Eu um conjunto de críticas sociais e até mesmo ecológicas, uma preocupação com os rumos da humanidade e seu lugar no mundo. Sobretudo, ela vê essa poesia como a construção de uma utopia comprometida com os grupos socialmente excluídos: Se a sua poética realiza o sonho de fecundar uma nova humanidade, é preciso ressaltar que essa raça não é inventada por acaso, nem nascida de um processo de autoctonia; mas surge da ressignificação existencial das “coletividades sofredoras”, como índios, negros, prostitutas, doentes, criminosos, pobres, uma massa pluriforme de deserdados que encontra, no lirismo de Augusto, a sua humanidade perdida, escamoteada desde os primórdios pelos mecanismos de aviltação humana de que se valem os vencedores (SANTOS, 2009, p. 145).. Uma das autoras mais incisivas a respeito do caráter subversivo da poesia de Augusto dos Anjos é Sandra S. F. Erickson (2015), que vê nos versos do Eu uma poética da crítica social que permanece atualíssima, abordando não apenas os sofrimentos dos oprimidos sob o jugo do poder patriarcal e colonial, mas também problemas ambientais: Ele criticou contundentemente o mundo, o capitalismo mercantilista selvagem e o patriarcado brasileiro em poemas grandiloqüentes como Os doentes e Ricordanzza della mia giuventú [sic]. […] Os doentes é um manifesto anticolonial, re-significando a experiência colonial brasileira por meio de contundente crítica ao projeto cruel, mesquinho e absurdo que foi e continua.

(27) 27 sendo a colonização portuguesa. […] enquanto Árvore da serra é um manifesto ecológico que não apenas defende as árvores contra a violência humana, mas expressa a visão de que é preferível morrer abraçado à vida vegetal a deixá-la perecer, porém o interesse do poeta no mundo vai além do fenomenal (ERICKSON, 2015, p. 39-40).. Maria Olívia Garcia (2009) vê no Eu uma alegoria da história e da política do Brasil, mascarada pela linguagem poética e inclusive atenuada pela crítica, que preferiu perpetuar Augusto com a pecha de “poeta da morte”, como meio de fazer passar despercebida sua mensagem subversiva. Fica bem fácil compreender por que tentaram relegar autores como Augusto e Euclides ao esquecimento… Muito mais simples perpetuar o poeta como mórbido, “poeta da morte”, desajustado, tuberculoso… Essas características o destituiriam de qualquer interpretação maior e, aproveitando do título de sua obra – o Eu – que também não foi bem compreendido, classificá-lo como egótico e intimista. Assim passaria a pertencer àquela literatura que não incomodaria nem às elites nem à classe política. Por isso nossa linha de pensamento também compactua com as idéias do professor Foot – expressas em 2007, em seu curso na Graduação – que os poetas egóticos não são egoístas, pelo contrário, eles mergulham em uma viagem interior para, a partir do microcosmo, entender o macrocosmo e mostram-se extremamente preocupados com os destinos da humanidade. E Augusto está entre esses poetas, explorando um “Eu” coletivo, uma vez que nele está contido “eu” de todos os indivíduos (GARCIA, 2009, p. 6).. O poeta paraibano é visto por ela como um dos representantes, no Brasil, entre outros, da “utopia romântica anticapitalista” [que] mostram em suas obras “a dor, o horror, o feio, o grotesco, o grito de revolta, a lágrima e o sangue” – ou seja, tornam-se portadores das vozes das vítimas da opressão (GARCIA, 2009, p. 17).8. A pesquisadora ainda considera, baseada nos discursos e crônicas publicadas em jornais por Augusto dos Anjos, que as ideias do poeta são fortemente contrárias ao espírito da Belle Époque vigente em seu tempo, pautado no individualismo e no direito à propriedade individual. “É contra esta filosofia baseada na posse individual que subjuga e marginaliza os que nada têm, nem apresentam condições de se tornarem “proprietários”, que Augusto vai tecer a sua obra” (GARCIA, 2009, p. 75). Para ela, o poeta paraibano foi aos poucos deixando de lado a euforia utópica e passou a se concentrar na denúncia e na esperança de que a sociedade mudasse radicalmente e se ocupasse da “punição para os fazedores de tantas vítimas” 8. As citações entre aspas, que estão no texto original, são de HARDMAN, F. Foot. Nem pátria, nem patrão!: memória operária, cultura e literatura no Brasil. São Paulo: UNESP, 2002..

(28) 28 (GARCIA, 2009, p. 76). Embora concordemos com Garcia a respeito da natureza sócio-crítica da obra poética de Augusto dos Anjos, não coadunamos com sua interpretação do símbolo da prostituta, visto por ela como uma metáfora da corrupção política do início do século XX. O novo sistema era, portanto, para o poeta, um sistema já corrompido em suas raízes e a República, que em vários países era representada pela figura de uma mulher, no Brasil também havia tido o seu símbolo feminino, mas para Augusto dos Anjos, como para muitos outros intelectuais daquela época, ela era a figura da prostituição, como em Os doentes: ―Decerto, a perversão de que era presa / O sensorium daquela prostituta /Vinha da adaptação quase absoluta/ À ambiência microbiana da baixeza! (GARCIA, 2009, p. 22).. Para nós, a prostituta do Eu representa uma criatura atormentada, uma imagem que nos remeterá ao sentimento de empatia da voz lírica para com as mulheres sexualmente estigmatizadas, como veremos adiante. Apontamos, a propósito, para o fato de, apesar da profícua crítica sobre o Augusto dos Anjos socialmente engajado, muito pouco ter sido escrito sobre o feminino em sua obra e sobre a condição específica das mulheres na cultura patriarcal ocidental, que vemos como um tema bastante presente no Eu9. 2.2. Solidariedade e Empatia no Eu Em trabalho anterior (BARROS, 2004), discutimos a oposição e complementaridade das imagens da Mãe e da Meretriz, observando, de acordo com a teoria freudiana e seguindo o esquema do imaginário de Gilbert Durand (2002), elas podem ser identificadas como duas facetas de um mesmo objeto de desejo masculino. Nessa perspectiva, ativemo-nos simplesmente em apontar o discurso do Eu como mantenedor de valores morais sobre o feminino, que veem o papel da Mãe como positivo e a vida da Meretriz como execrável. No presente trabalho, tomaremos um caminho diametralmente oposto. Levaremos em conta o unânime reconhecimento, por parte da fortuna crítica, de que a obra do poeta paraibano cumpre seu papel social, sendo transgressora em diversos aspectos. Consideramos que a subversão da língua (BARTHES, 2002) corresponde também a uma subversão em termos de valores ideológicos (ou contraideológicos). Isso nos levará a buscar uma melhor compreensão daquilo que os poemas do Eu dizem sobre o feminino e o masculino, sobre a condição da mu9. Notável exceção é o trabalho de Erickson (2015), em que vemos um pertinente resgate da importância do feminino como força da natureza e das figuras femininas em sua poesia, especialmente o texto “Imagens de Vida & Nutrição em Augusto dos Anjos” (ERICKSON, 2015, p. 273)..

(29) 29 lher numa sociedade androcêntrica, procurando entender se há ou não uma transgressão das representações de gênero na obra de Augusto dos Anjos. Assim, afastamo-nos da noção de que a obra do poeta paraibano reproduz simplesmente a ideologia dominante sobre as relações de gênero, veiculada por uma língua androcêntrica, e procuramos enxergar em sua tessitura poética a construção de uma linguagem imbuída de visão crítica sobre a realidade. É importante levar em consideração que a obra de Augusto dos Anjos se configura como uma poética da empatia e do sentimento de solidariedade universal. Estes elementos fazem aproximar o eu-lírico daqueles seres que ele chama coletivamente de “vencidos”, mas que também podem ser chamados de oprimidos, marginalizados, subalternos ou socialmente minoritários. A empatia pode ser trazidos à discussão com o objetivo de corroborar a ideia de que as figuras da Mãe e da Meretriz, se aparecem exercendo os papéis socialmente atribuídos a elas, assim se apresentam para que o autor provoque no leitor essa mesma capacidade de se colocar no lugar do oprimido e para que perceba a condição dominada a que a mulher é submetida por uma cultura patriarcal. Um dos mais belos exemplos dessa aproximação, desse olhar de perto por parte do eu-lírico que se solidariza com o oprimido, está no soneto “Ricordanza della mia Gioventù”, onde o jovem de família senhorial reconhece sua condição de poder e a espoliação do corpo da serva que ainda ocupa uma posição hierárquica subalterna remanescente da condição dos negros na era da Escravidão: A minha ama-de-leite Guilhermina Furtava as moedas que o Doutor me dava. Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava... Via naquilo a minha própria ruína! […] Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama, Eu furtei mais, porque furtei o peito Que dava leite para a tua filha! (ANJOS, 1996, p. 257).. Já a expressão da solidariedade aparece explicitamente, por exemplo, em trechos como este, em que o eu-lírico se apresenta como uma “Sombra” ancestral, uma força por trás de toda a heterogeneidade dos fenômenos terrestres:.

(30) 30 Continua o martírio das criaturas: – O homicídio nas vielas mais escuras, – O ferido que a hostil gleba atra escarva, – O último solilóquio dos suicidas – E eu sinto a dor de todas essas vidas Em minha vida anônima de larva! (ANJOS, 1996, p. 199). Se a Meretriz se apresenta como símbolo de corrupção, degenerescência e esterilidade, assinalando imagens da morte (bruxa) e da Natureza enquanto força cósmica caótica, o poeta, por outro lado, mostra como ela é desprezada, e se condói com ela, como nestas estrofes de “A Meretriz”, poema inacabado que compõe as Outras Poesias: É a meretriz que, de cabelos ruivos, Bramando, ébria e lasciva, hórridos uivos Na mesma esteira pública, recebe, Entre farraparias e esplendores. O eretismo das classes superiores E o orgasmo bastardíssimo da plebe! É ela que, aliando, à luz do olhar protervo, O indumento vilíssimo do servo Ao brilho da augustal toga pretexta, Sente, alta noite, em contorções sombrias, Na vacuidade das entranhas frias O esgotamento intrínseco da besta! (ANJOS, 1996, p. 319). Se a condição da Meretriz é deplorável, não o é devido a alguma vileza inerente a ela. De fato, nos trechos de “A Meretriz” supracitados, notamos a contundente, porém sutil, presença de figuras masculinas, aludidas pelas expressões “classes superiores”, “plebe”, “servo” e “toga pretexta” (vestimenta usada por homens de alta hierarquia na Roma Antiga). Os homens que se utilizam do corpo da Meretriz exercem um poder concedido ao sexo masculino pela ordem patriarcal, pelo que Augusto dos Anjos denuncia essa dominação masculina ao invés de vilipendiar a mulher prostituída. Outra forma de subverter a visão corrente sobre os papéis de gênero aparece quando o papel do Pai é assumido pelo próprio eu-lírico masculino, como visto no “Soneto” dedicado ao filho natimorto de Augusto dos Anjos, onde este se identifica com a energia criadora de caráter feminino, tão presente em muitos de seus poemas. Agregado infeliz de sangue e cal, Fruto rubro de carne agonizante, Filho da grande força fecundante De minha brônzea trama neuronial (ANJOS, 1996, p. 207)..

(31) 31 Por outro lado, a imagem do Pai é caracterizada como fortemente opressora em poemas como “A Árvore da Serra”. Aqui, esse poder patriarcal não é justificado pelo eu-lírico, mas é implicitamente sentido como negativo, repressor e assassino. — As árvores, meu filho, não têm alma! E esta árvore me serve de empecilho... É precio cortá-la, pois, meu filho, Para que eu tenha uma velhice calma! […] E quando a árvore, olhando a pátria serra, Caiu aos golpes do machado bronco, O moço triste se abraçou com o tronco E nunca mais se levantou da terra! (ANJOS, 1996, p. 272).. Entretanto, consideramos que uma análise do dualismo Mãe/Meretriz tem pertinência, mesmo que essa análise venha a revelar concepções opostas ao nosso trabalho anterior. Considerando que se tratam de duas facetas de um único símbolo (a Mulher), colocamo-nos a pertinente questão: o que as opõe e, ao mesmo tempo, o que as identifica? Uma das principais diferenças superficiais que podemos aventar, a partir da representação encontrada na poesia de Augusto dos Anjos, é que a Mãe reproduz vida, ao passo que a Meretriz se abstém dessa função. Por outro lado, percebemos um silêncio, uma ausência ou mesmo a rejeição explícita de qualquer vínculo sexual da Mãe com outro ser, enquanto a sexualidade se apresenta como uma característica definidora da Meretriz. O pesquisador paraibano Chico Viana10, em seu ensaio O Evangelho da Podridão: Luto e Melancolia em Augusto dos Anjos, ao analisar o caráter melancólico dessa poesia segundo a visão freudiana, encontra, entre outros traços, a rejeição da sexualidade. É notório, por exemplo, o soneto “Idealismo”, que sintetiza a noção que o poeta do Eu veicula em seus poemas a respeito do amor: Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! O amor da Humanidade é uma mentira. É. E é por isto que na minha lira De amores fúteis poucas vezes falo.. 10 A menção ao trabalho de Viana nos serve apenas como indicador da presença de certos temas na obra de Au gusto dos Anjos, uma vez que não concordamos com a visão do crítico a respeito da natureza do caráter melancólico da poesia do Eu..

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