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Entre outras imagens femininas presentes na poesia do Eu, encontramos mais de uma vez figuras que se definem por uma prática sexual estigmatizada. As bacantes aparecem em “Monólogo de uma Sombra” acompanhando o Sátiro, e também no soneto “Depois da Orgia”, onde sua denominação se alterna com a palavra hetaira; as prostitutas estão entre as principais personagens de “Os Doentes”, e sua história é recontada de forma mais elaborada no inacaba- do “A Meretriz”, que faz parte das Outras Poesias.

No presente capítulo, investigaremos a imagem da Meretriz, ou seja, da mulher mar- ginalizada por uma vida sexual estigmatizada. Em contraposição, o Sátiro enquanto homem que exerce sua sexualidade será apresentado para que compreendamos a inserção das bacantes nas relações de poder que a relegam a posição tão vilipendiada. A representação do Sátiro será analisada questionando-se sobre seu suposto caráter transgressor de liberdade sexual, e vere- mos se ele pode ser encarada como um símbolo masculino do controle da sexualidade da mu- lher.

É constante a presença das prostitutas, meretrizes e cortesãs na poesia universal, se- jam louvadas e endeusadas, vilipendiadas e desprezadas ou ainda alvo de condoimento e pena, as mulheres que socialmente são definidas em função de uma certa inclinação à atividade se- xual aparecem profusamente nos versos de escritores os mais diversos. Ao menos é o que a coletânea Livro das Cortesãs, organizada por Sergio Faraco (1999), pretende fazer entender com sua pequena antologia de setenta e sete poemas de autores brasileiros e portugueses, “consagrados à mulher que, independentemente de sua condição social, inclina-se à luxúria” (FARACO, p. 9)21.

Existe uma diversidade de formas de os poetas tratarem desse tema, assim como é muito diversa a vida das mulheres que vendem sexo. Se o corpo das prostitutas é concebido socialmente como uma mercadoria, isso ressoa de alguma forma a ideia de que as mulheres, numa sociedade androcêntrica e patriarcal, não são tratadas como sujeitos humanos. Se nossa sociedade contemporânea já mudou bastante quanto à representação da mulher enquanto obje- to, ainda permanecem resquícios de uma lógica das relações humanas e de parentesco que a colocam numa posição em que ela não tem direito de tomar decisões sobre si, sobre seu pró- prio corpo. Procuraremos ver como a representação da hetaira e das prostitutas também nos

21 Seja pela predominância de homens no cânone literário ocidental ou por outros motivos, é interessante ob- servar a presença de apenas duas mulheres nessa coletânea dedicada à representação de figuras femininas: a brasileira Ibrantina Cardona, com o soneto “Após o Festim”, e a portuguesa Maria OʼNeill, com “Uma Infe- liz”.

serve para pensar a representação da mulher numa cultura patriarcal.

4.1. “Depois da Orgia”: a Voz da Hetaira

“Depois da Orgia” é o trigésimo nono poema de Eu, um soneto de versos decassíla- bos com esquema de rimas ABBA ABBA CDE CDE. O poema nos apresenta um eu-lírico fe- minino que se identifica como uma “hetaira”/“bacante” e declama sobre suas dores e sofri- mentos.

O prazer que na orgia a hetaira goza Produz no meu sensorium de bacante O efeito de uma túnica brilhante Cobrindo ampla apostema escrofulosa! Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa, O sistema nervoso de um gigante Para sofrer na minha carne estuante A dor da força cósmica furiosa.

Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia Que ao comércio dos homens me traz presa, Livre deste cadeado de peçonha,

Semelhante a um cachorro de atalaia Às decomposições da Natureza,

Ficar latindo minha dor medonha! (p. 271).

Chama-nos bastante atenção o fato de que a “hetaira”22 é referida no primeiro verso

na terceira pessoa, como se o eu-lírico estivesse falando sobre outro indivíduo, mas logo em seguida ele “corrige” isso ao se colocar no lugar da própria “bacante”23 de quem está falando.

Esse recurso é interessante por nos fazer pensar, de início, que o eu-lírico está distanciado do objeto do soneto, mas se aproxima dele ao assumir seu papel, como se, saindo de uma visão de espectador, entrasse, no segundo verso, na cabeça da hetaira e passasse a perceber o mundo através de seus sentidos. Ao fazer isso, o eu-lírico reforça uma de suas principais preocupa- ções ao longo do Eu, que é a de sentir e provocar (no leitor) empatia pelas criaturas sofredoras do mundo, fazer o leitor sair de sua posição de espectador e se colocar no lugar da persona- gem.

22 Segundo o dicionário Priberam: “he·tai·ra (grego hetaíra, -as) substantivo feminino 1. Cortesã elegante e instruída na antiga Grécia. 2. [Por extensão] Cortesã moderna; mulher que se prostitui. Sinônimo Geral: HETERA” (“hetaira”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [online], 2008-2013. Disponível em https://www.priberam.pt/dlpo/hetaira. Acesso em 16-07-2017.)

A voz lírica afirma que o prazer desfrutado pela hetaira produz nela mesma sensa- ções que a remetem ao “efeito de uma túnica brilhante / Cobrindo ampla apostema escrofulo- sa”. “Apostema” é uma espécie de sintoma anormal na pele, com acúmulo de pus. Essa pala- vra também tem, segundo o Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2004), o sentido figurado de “grande sofrimento; desgosto”24. O adjetivo “escrofulosa” remete a “escrófula”25,

patologia que se caracteriza como inchaços no pescoço26. Dessa forma, a bacante constrói a

imagem de uma bela peça de roupa que esconde uma horrenda anomalia. O prazer da hetaira, portanto, é entendido pela voz lírica como um júbilo falso, uma sensação prazerosa efêmera e superficial que oculta uma marca indelével de sofrimento.

A segunda estrofe se inicia com uma exclamação. “Troveja!” quebra o ritmo do poe- ma ao nos fazer pensar no súbito e surpreendente soar de um trovão, sensação que se reforça pela sonoridade da palavra (o som “quebrado” do dígrafo “tr” e as consoantes fricativas sono- ras “v” e “j”) e pelo sinal de exclamação que completa uma oração composta de apenas um curto verbo no presente do indicativo. Ao ressoar do trovão, a voz lírica afirma o anseio por possuir o “sistema nervoso de um gigante”, que lhe permita “sofrer na [sua] minha carne estu- ante / A dor da força cósmica furiosa.” Seu desejo é o de ter a capacidade de sentir com mais intensidade o ribombar escandaloso dos céus (a “força cósmica furiosa”), ou seja, através de seu “sensorium27 de bacante”, ouvir com mais força o som e sentir com mais intensidade o es-

tremecimento do trovão, talvez para com isso abafar sua própria dor inerente.

Essa capacidade seria possível, segundo ela, se seu corpo possuísse um “sistema ner- voso” desproporcionalmente maior (“de um gigante”) do que aquele suportado por seu corpo. Sua necessidade e urgência de experimentar essa sensação se mostra nos adjetivos “sôfrega e ansiosa”.

24 O Houaiss assim define “apostema”: “s.m. 1 abscesso 2 fig. grande sofrimento; desgosto”. Eis sua definição de “abscesso”: “s.m. acúmulo de pus causado por inflamação”.

25 O dicionário online Priberam define “escrófula” e “escrófulas”, respectivamente, como “substantivo femini-

no 1. [Medicina] Aumento do volume dos gânglios linfáticos cervicais, provocado pela tuberculose. = ES-

TRUMA” e “substantivo feminino plural 2. [Medicina] Doença crônica e hereditária das glândulas linfáticas em que se alteram os fluidos que contêm, formando tumores que se podem ulcerar.” (“escrófula”, in Dicio - nário Priberam da Língua Portuguesa [online], 2008-2013. Disponível em https://www.priberam.pt/dlpo/escr %C3%B3fula. Acesso em 11-05-2017.)

26 Vale ressaltar que “apostema”, segundo o dicionário atual, é um substantivo de gênero masculino, enquanto no poema que estamos analisando seu gênero é marcado como feminino pelo adjetivo “escrofulosa”. 27 “Sensorium” é uma palavra latina usada para se referir ao conjunto de aparatos sensoriais de um indivíduo.

De acordo com o dicionário Merriam-Webster da língua inglesa, “sensorium” são “the parts of the brain or the mind concerned with the reception and interpretation of sensory stimuli; broadly : the entire sensory ap- paratus” (“as partes do cérebro ou da mente relacionadas à recepção e interpretação de estímulos sensoriais;

de modo geral : a totalidade do aparato sensorial”) (“sensorium”, in Merriam-Webster [online], 2017. Dispo-

nível em https://www.merriam-webster.com/dictionary/sensorium. Acesso em 11-05-2017.). Não encontra- mos nenhuma definição portuguesa para essa palavra, mas seu cognato “sensório” aparece no Houaiss com um significado muito próximo: “s.m. ANAT 2 região do cérebro que seleciona e combina todas as sensações”.

A hetaira conclui seu monólogo com os dois tercetos, afirmando que lhe apraz, “des- pindo a última alfaia” (a que também caracteriza como “cadeado de peçonha”) que lhe prende ao “comércio dos homens”, “ficar latindo [sua] minha dor medonha”, tal qual um “cachorro de atalaia / Às decomposições da Natureza”. Nestas estrofes a voz lírica revela que um de seus prazeres é se desvelar desses tecidos que cobrem suas chagas, e deixa explícito que tais vestimentas são sua prisão, que lhe foi imposta pelo mercado da prostituição, controlado pelos homens.

Aquilo que lhe sobra é expressar sua angústia da maneira mais rudimentar, tal como um cão-de-guarda, que vigia ou que late em direção aos processos de degenerescência seme- lhantes àquele por que ela mesma passou. É interessante a ambiguidade que aparece no papel que ela exerce enquanto se assemelha a um “cachorro de atalaia”, pois não fica inequívoco se ela está vigiando as “decomposições da Natureza” ou se está latindo contra elas, quer dizer, protegendo-se (ou protegendo alguém) delas.

A palavra hetaira, embora abranja semanticamente os sentidos atribuídos a “prostitu- ta”, nos remete invariavelmente à Grécia Antiga, onde havia uma classe socialmente privilegi- ada de mulheres que prestavam serviços sexuais ou companhia28. Para as hetairas, não existia

o mesmo estigma social que as prostitutas possuem na Modernidade, sendo que algumas delas alcançaram enorme prestígio e riqueza.

Uma das mais famosas é Mnesarete, conhecida como Frineia. Muito rica e célebre, foi acusada de profanar o Festival de Elêusis, por se despir e entrar no mar publicamente du- rante os ritos dedicados a Possêidon. Seu julgamento foi inspiração para um poema de Olavo Bilac (2002, p. 57-58), no qual o parnasiano apresenta Frineia como inspiradora das mais di- versas obras artísticas de seu tempo, na escultura, na música e na pintura. O eu-lírico de “O Julgamento de Frineia” descreve os encantos que a hetaira demonstra durante as orgias, no modo como ergue a taça de vinho e nas formas de seu corpo, sendo considerada a mais graci- osa e formosa de todas. Ela é capaz de seduzir e domar qualquer um que a contemple, seja deus ou mortal: “Basta um gesto, – e a seus pés roja-se humilde Atenas…”. Durante seu julga- mento, porta um véu que ao mesmo tempo oculta e revela sua beleza, e diante do silêncio da

28 “According to the traditional scholarly account, the opposition between the two categories [hetaira and por-

nê] is one of status. The hetaira is a “courtesan” or “mistress,” often supported by one or two men alone,

serving as their companion at symposia and revels, as well as servicing their sexual desires. The pornê, in contrast, is the common streetwalker or occupant of brothels, providing sex for payment to a large and anonymous clientele.” [“De acordo com os registros acadêmicos tradicionais, a oposição entre as duas cate- gorias [hetaira e pornê] é uma diferença de status. A hetaira é uma “cortesã” ou “amante”, geralmente finan- ciada por apenas um dois homens, servindo-lhes como acompanhante em simpósios e festins, bem como atendendo a seus desejos sexuais. A pornê, ao contrário, anda pelas ruas ou ocupa bordéis, oferecendo sexo por dinheiro a uma clientela numerosa e anônima” – tradução livre.] (KURKE, 1997, p. 107-108).

assembleia, Eutias conclama o tribunal a proceder a sua condenação, acusando-a de zombar dos deuses e causar conflitos nas famílias. Hiperides se prontifica a defendê-la, mas, diante da recusa do Areópago, arranca as vestes de Frineia. “Pois condenai-a agora!”, grita, e diante da pura beleza do corpo dela o tribunal se curva derrotado.

Esse poema guarda uma ressonância com “Depois da Orgia”, especialmente na se- gunda estrofe, que remonta a cena de uma orgia, e na ideia geral de desvelamento presente na imagem da retirada do véu que esconde o corpo da hetaira. Porém, em Bilac o véu esconde uma beleza idealizada e positiva, enquanto Augusto dos Anjos fala de um corpo doente. É in- teressante perceber que a beleza de Frineia é cantada por uma voz lírica espectadora (e impli- citamente masculina), enquanto a hetaira de “Depois da Orgia” é quem nos fala de seu próprio corpo e suas vestes.

Essa diferença é crucial para entender a especificidade da mensagem subversiva do Eu. Por um lado, Frineia exerce um papel totalmente passivo nos versos dedicados a ela, sen- do alvo de injúrias, sem a menor agência no que tange sua defesa, tendo que contar com a in- tervenção de um homem para tanto. Além disso, é este mesmo homem que, à revelia da ré, tremebunda diante da audiência masculina, arranca suas roupas para demonstrar seu argumen- to. A hetaira de Augusto dos Anjos, pelo contrário, é quem toma a voz para falar sobre si, e deixa evidente a própria infelicidade de estar sujeita ao “comércio dos homens”.

Se o “Julgamento de Frineia” funciona como discurso eufêmico para fazer o leitor acreditar no poder inerente à beleza da mulher, como se esta fosse a triunfante no embate ali encenado, “Depois da Orgia” é uma espécie de resposta contestando essa mensagem, e nos ajuda a perceber que, por mais que as virtudes do corpo feminino possam ser motivo de cele- bração e fama, por mais que ela consiga adquirir poder perante os homens seus compatriotas, a posição da mulher sempre a torna sujeita aos caprichos do poder masculino, esteja este a atacando ou defendendo-a. Em suma, a hetaira assume, em Bilac, o papel de puro objeto, de desejo ou de desprezo.

A voz da hetaira no soneto de Augusto dos Anjos nos mostra justamente o que a mu- lher explorada sexualmente sente enquanto objeto-mercadoria29. Sua vulnerabilidade é repre-

sentada por sintomas abjetos de doença, cobertos pela ilusão da “túnica brilhante”. Tudo nos remete à ideia de que a mulher que vende seu corpo, especialmente a que o faz sem autono-

29 Neste sentido, a situação da prostituta se torna exemplar da condição dos trabalhadores explorados pelo Ca- pitalismo e que são vítimas do fenômeno da reificação, conceito que Georg Lukács desenvolveu a partir de Karl Marx: “Com a moderna decomposição ‘psicológica’ do processo de trabalho (sistema de Taylor), esta mecanização racional penetra até a ‘alma’ do trabalhador: até as suas propriedades psicológicas são separa- das do conjunto de sua personalidade e objectivadas em relação a esta para poderem ser integradas em siste- mas racionais especiais e reduzidas ao conceito calculador” (LUKÁCS, 1989, p.102).

mia, é instada a disfarçar sua dor com uma máscara alegre, exigida por sua profissão. É um tema recorrente em diversas histórias, e aparece no poema “Uma Infeliz”, de Maria OʼNeill:

Sou filha do alto Minho e vim de lá enganada: nesta Lisboa, tão boa, é que me fiz desgraçada. Nada mais triste na terra que a vida alegre ir seguindo: o coração vai chorando, os lábios sempre sorrindo. Eu não vivo do presente nem pensando no futuro. Que o agora é todo lama, o depois é num monturo. Ai, como os homens honrados a mim me fizeram mal! Fui criada entre carinhos, findarei num hospital. Não posso mostrar afeto, nem ter amor a ninguém, que me pagam com dinheiro atirado com desdém.

Só uma réstia de sol alegra a minha janela: é a lembrança do tempo em que fui criança e bela. Nada mais triste na terra que a vida alegre ir seguindo: o coração vai chorando,

os lábios sempre sorrindo. (OʼNEILL, 1999, p. 87-88).

Nestes versos a voz lírica também é a voz da prostituta, contando sua história desde que saiu, “criança e bela”, do interior de Portugal para a capital, Lisboa, onde se fez “desgra- çada”. Sua angústia é tamanha que ela não pensa no presente nem no futuro, apenas se resigna com a fatalidade da existência, usando uma linguagem que nos lembra fortemente o Eu: “o agora é todo lama, / o depois é num monturo.” A relação com os homens que lhe pagam por seu corpo remonta de maneira contundente ao que vimos a respeito da hetaira em Bilac e Au- gusto dos Anjos: os responsáveis por seu mal são “homens honrados”, ou seja, os próprios re- presentantes do Patriarcado que a condenam ao mesmo tempo em que se utilizam de seus ser- viços sexuais. A única felicidade que a “infeliz” encontra na vida é a lembrança de sua infân-

cia. O que mais marca sua existência é a tristeza de viver um conflito interno: “o coração vai chorando, / os lábios sempre sorrindo.” A estrofe em que se encontram estes versos aparece duas vezes no poema, indicando-nos que se trata de um tema central, que ressoa naquilo que mais chama atenção em “Depois da Orgia”, a chaga escondida por uma camada de beleza.

No musical cinematográfico Moulin Rouge! (2001), o mesmo drama está presente na personagem Satine, cortesã do bordel que dá título ao filme. Embora esteja apaixonada pelo protagonista, Christian, ela é obrigada a prestar seus serviços exclusivamente a um homem que despreza, o Duque de Monroth, que prometeu a Harold Zidler, dono do Moulin Rouge, um financiamento que pode salvar a casa da falência. O momento mais dramático da história é quando Satine mente a Christian sobre seus sentimentos por ele e finge estar interessada no Duque. A música que marca esse momento é “The Show Must Go On” (“O Show Deve Con- tinuar”), de autoria da banda inglesa Queen (DEACON, 2017). Os versos cruciais dessa can- ção veiculam praticamente a mesma ideia do poema de Maria OʼNeill: “Inside my heart is breaking / My make-up may be flaking / But my smile still stays on”30.

Praticamente é o mesmo que ocorreu com a protagonista da canção “Geni e o Zepe- lim”, de Chico Buarque (2017)31. Uma mulher que vive uma sexualidade estigmatizada, Geni

serve seu corpo a praticamente toda a sociedade da cidade onde mora, prestando seu serviço em qualquer lugar que seja conveniente, “Na garagem, na cantina / Atrás do tanque, no mato”. Sendo “um poço de bondade”, sofre constantemente com o vilipêndio do povo da cidade:

Joga pedra na Geni Joga pedra na Geni Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni

Mas a cidade é ameaçada de destruição pelo comandante de um zepelim armado com canhões. No entanto, o comandante repensa sua decisão em troca de uma noite com Geni, ao que a cidade responde com incredulidade: “Mas não pode ser Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela é boa de cuspir”. Porém, a própria Geni demonstra seu desprezo pelo comandante, que está notavelmente encantado por ela: “a deitar com homem tão nobre / Tão cheirando a brilho e a cobre / Preferia amar com os bichos”. Logo os representantes do poder político (o 30 “Por dentro meu coração está partido / Minha maquiagem pode estar descascando / Mas meu sorriso conti-

nua” (tradução livre).

31 O paralelo com Augusto dos Anjos é interessante, pois Chico Buarque é reconhecido por compor uma poéti - ca musical em que o eu-lírico feminino é bastante frequente, suscitando a empatia pela condição da mulher, do mesmo modo que encontramos na poesia do Eu.

prefeito), religioso (o bispo) e econômico (o banqueiro) suplicam que ela reconsidere, subor- nando-a e dizendo:

Vai com ele, vai Geni Vai com ele, vai Geni Você pode nos salvar Você vai nos redimir Você dá pra qualquer um Bendita Geni

Geni cede e dorme com o comandante, que dela usufrui “a noite inteira / Até ficar sa- ciado” e parte na manhã seguinte. Ela tenta sorrir, mas a luz do dia vem acompanhada dos costumeiros e intermináveis impropérios da cidade. Sua história assim repete o mesmo tom de crítica à degenerescência moral da sociedade, profundamente hipócrita, que mantém certas pessoas marginalizadas, numa posição em que estão sujeitas aos caprichos, desejos e despre- zos de quem as domina.

Além de hetaira, a voz lírica usa a palavra bacante para caracterizar seu próprio sen- sorium. Aqui também nos reportamos para a Grécia Antiga, onde se celebrava o deus do vi- nho, Baco, cujas sacerdotisas se chamavam bacantes ou mênades. As histórias que envolvem as bacantes descrevem-nas como mulheres tomadas por um transe extremamente violento, que as tornam assassinas sanguinárias. Depois que Orfeu perdeu para sempre sua amada Eu-

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