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No geral, observou-se que os ACS apresentam muitas atitudes e concepções fundamentadas no julgamento moral e na patologização do usuário de drogas. Os usuários de drogas mobilizam muitos sentimentos negativos, como medo, tristeza e impotência, sinalizando a visão depreciativa de tais sujeitos. O usuário fora retratado bastante estereotipado, como o sujeito agressivo, transgressor, “fraco” emocionalmente e com condutas antissociais.

Na leitura dos ACS predomina uma abordagem reducionista do complexo fenômeno do uso de drogas, abordagem simplista que se traduz na culpabilização da família que não foi suficientemente boa para “impedir” que o filho escolhesse o “caminho errado das drogas”; ou na culpabilização do usuário por ter se “refugiado” nas drogas. Quando problematizados, alguns ACS ampliaram tal olhar e pontuaram outras questões.

Identificou-se que muitas práticas são orientadas pelo senso comum. A falta de informações técnico-científicas sobre conceito de droga, tipos de uso, efeitos, dados epidemiológicos ficou evidente, pois verificou-se dificuldade de ACS em nomear tipos de droga, descrevendo, por exemplo, que cheirar e fumar são sinônimos, e manifestando uma tendência quase unânime de considerar que “todo e qualquer uso” necessariamente

significa “síndrome de dependência”; além de uma expectativa que apenas as drogas ilícitas são problemáticas e a reprodução do mito de que a maconha é a porta de entrada para outras drogas.

Em alguns momentos, ACS anunciaram debates sobre normal X anormal e discretamente reconheceram que o uso de drogas possa fazer parte do repertório do indivíduo.

Os ACS pareceram muito centrados no cumprimento de prazos, regras e protocolos, o que pode sugerir que os mesmos estejam respondendo a um papel que vem sendo depositado aos mesmos. Não se identificou movimentos de revisão de protocolos, de discussão de casos, de construção coletiva de projetos terapêuticos na tentativa de singularizar o cuidado para esses usuários. Como promover a autonomia dos usuários se o ACS não tem autonomia para desenvolver um trabalho criativo?

O método clínico-qualitativo empregado na presente pesquisa conseguiu contemplar de modo satisfatório os objetivos do estudo, garantindo espaço para uma escuta qualificada dos ACS, bem como, garantindo a participação daqueles que realmente possuíam vivências para contribuir com a investigação. Foi possível observar muitas dificuldades da Atenção Básica em oferecer ações de promoção e prevenção em relação ao consumo de drogas, posto que as práticas expressadas pelos ACS do estudo caminhavam em direção à remissão de sintomas e institucionalização do usuário. Nesse bojo, identificou-se também dificuldades em processos de educação em saúde e de construção de redes, a falta de definição de fluxos e protocolos de assistência e um cuidado centralizado na figura do profissional médico.

Parece não haver uma crítica sobre a organização dos serviços e a dificuldade de acesso e manutenção do tratamento, ao passo que também parece não haver um entendimento sobre a necessidade de articular esforços para reforçar os laços desse usuário com os serviços de saúde. Houveram modestas aproximações com uma clínica da produção de vida, como alguns relatos de ACS que demonstraram ter vínculos positivos e abertura com os usuários.

Porém, ainda se constatam muitas ações focadas em tecnologias duras, em um modelo biomédico e muitas experiências onde as intervenções se misturam com julgamentos morais.

Uma Clínica do Sujeito, uma Clínica Ampliada implica em dar espaços para além dos sinais e sintomas, e sobretudo, para as produções da vida. Ou seja, implica em dar espaços para as diferenças, para os conflitos, os afetos, para os poderes, o que sem

dúvida, não é tarefa nada fácil. Para tanto, alguns dispositivos parecem se tornar

condição sine qua non para que profissionais possam se apropriar de uma clínica dessa

natureza, como os dispositivos do apoio matricial, do projeto terapêutico singular e também de uma gestão participativa (BRASIL, 2007; CAMPOS, 2007).

Infelizmente quando se analisa as expectativas dos ACS para os usuários de drogas parece uma viagem ao século XVIII aos “hospitais de alienados”: ACS defendendo e reproduzindo um modelo centrado na vigilância, na punição e na disciplina. Mesmo algumas preocupações preventivas sob a denominação de “busca ativa” podem apresentar um caráter normatizador da vida.

Alguns ACS reconheceram suas dificuldades em acolher o usuário e foram capazes de nomear isso, o que parece ser um passo importante e um terreno bastante promissor. No entanto, a maioria ainda atribuiu a terceiros a responsabilidade de assistir tais sujeitos, chegando a ter pedidos explícitos de uma prática ambulatorial especializada na Atenção Básica, propostas que merecem reflexão para que não sejam traduzidas em práticas institucionalizadoras do usuário dentro de sua própria comunidade.

Há de se considerar que muitos usuários e familiares não chegam aos serviços de saúde e muitas vezes o ACS é o primeiro ator social que identifica o uso de drogas. Assim é fundamental garantir espaços de educação permanente para que tal ACS tenha condições de refletir sobre as propostas das políticas de saúde mental e incorporar os pressupostos da Reforma Psiquiátrica em suas práticas.

No entanto, é necessária cautela para não centralizar todas as ações na figura do ACS esquecendo-se que o mesmo está inserido dentro de uma equipe, subordinado à uma coordenação (que pode ou não facilitar sua autonomia em exercer práticas acolhedoras). Na “cadeia alimentar” da ESF os ACS são os profissionais com os menores salários e condições de trabalho bastante precárias, muitas vezes percorrem grandes distâncias caminhando expondo-se à radiação solar intensa, à chuva e se expondo em áreas de grande risco e vulnerabilidade.

Além da baixa remuneração, ACS muitas vezes se encontram em desvio de função realizando em boa parte de sua carga horária atividades de recepcionista, uma vez que no município de Rio Claro não há esse profissional na USF. Não raro as USF se encontram com equipes reduzidas e queixas de rotatividade e absenteísmo. Os concursos em Rio Claro para ACS não exigem que o mesmo resida na área de abrangência em que pretende atuar, o que põe em cheque a discussão que políticas

ministeriais e literatura realizam sobre a importância do vínculo e da liderança no bairro que espera-se que o ACS possua.

Todas as equipes são coordenadas por profissionais de mesma formação (Enfermagem) e não há gestão compartilhada entre os profissionais de nível superior, ou profissionais de outra formação, o que pode talvez facilitar também um dado modus

operandi das USF trabalharem.

Tradicionalmente os profissionais de saúde que são convidados a participar de treinamentos e capacitações são, no geral, os profissionais de nível superior. Além disso, a maioria dos treinamentos acontecem ainda baseados em uma metodologia expositiva tendo por objetivo a transmissão de informações técnicas e implantações verticalizadas de protocolos sem o cuidado de se sensibilizar os profissionais para as temáticas, ou muito menos, garantir espaços para promoção de debates e produção coletiva de protocolos/planos de ações.

Tais questões se tornam importantes para que a avaliação das práticas dos ACS sejam consideradas de forma integral, enquanto sujeito que também estabelece outras relações profissionais para além de seu contato com os usuários, relações estas que podem qualificar ou não sua assistência.

Os ACS da presente pesquisa não descreveram episódios de reabilitação psicossocial de usuários de drogas por meio de dispositivos da RAPS, pelo contrário, as referências que os profissionais apresentam se reportam à Comunidades Terapêuticas e apoio religioso. Nesse sentido, pode-se refletir: será que as ações extra-hospitalares não ocorrem de modo integrado da Atenção Básica ou será que os ACS não visualizam intervenções bem-sucedidas nesse sentido?

Questão essa que merece ser explorada, uma vez que é de suma importância que os profissionais de saúde se apropriem de propostas terapêuticas construídas ao longo de muitas lutas na tentativa de romper com um modelo asilar de “cuidado”, porém, lutas que serão em vão se usuários continuarem sendo endereçados para os manicômios da contemporaneidade, isto é, as clínicas e comunidades terapêuticas.

A atenção dos profissionais frente aos usuários de drogas sinalizou abordagens manicomiais, preconceituosas e com muitos desafios para considerá-los como sujeitos de direitos e não reduzi-los a objetos de intervenção da Ciência ou da Segurança Pública. Nesse sentido, sugere-se o investimento em propostas de empoderamento dos usuários tendo em vista sua reabilitação por meio da promoção da autonomia, rompendo com as ofertas repressoras e estigmatizantes.

O SUS foi criado, a Reforma Psiquiátrica brasileira é inspiração para muitos países, a literatura exaustivamente já demonstrou a potência dos espaços comunitários, de acolhimento, de escuta, de inserção social e do controle social para a reabilitação psicossocial dos usuários mas parece que ainda há um longo processo para se superar os estigmas dos usuários de drogas e aparatos manicomiais, desafio que certamente esse trabalho isolado não enfrentará. Parece ser gritante a necessidade de se cuidar para que os agentes comunitários da Saúde não se transformem em agentes comunitários da Repressão e da Institucionalização.

Países como Holanda, Portugal, Uruguai, México, Reino Unido e alguns estados dos EUA tem revisto suas políticas públicas de atenção ao uso de drogas, no entanto, o Brasil ainda possui paradigmas bastante conservadores para se problematizar.

É imprescindível reconhecer os limites que os ACS apresentam para a construção de uma clínica ampliada e de um cuidado integral. A experiência no curso “Caminhos do Cuidado” pareceu ter sido um dispositivo potente para convocá-los à reflexão, porém, convocar apenas ACS e ATENF é praticamente inócuo. A presente pesquisa demonstrou a necessidade de se estender a discussão sobre saúde mental na atenção básica para também os outros profissionais da ESF.

Somado a tal aspecto, destaca-se que a realização de um curso isoladamente é insuficiente para garantir a qualificação das práticas e cabe às instituições se organizarem para que os cursos não sejam oferecidos de modo fragmentado e sim, acompanhados de outros investimentos longitudinais.

Apesar de todas as dificuldades encontradas o curso Caminhos do Cuidado se mostrou como um potente dispositivo para a mobilização de reflexões em alguns ACS e parece ter sido a primeira e única proposta em Rio Claro de convite para esse debate. Evidente que a experiência de 40 horas de curso não foi suficiente para saturar todas as nuances que o uso de drogas abrange e que permeiam o cuidado em saúde mental.

É necessário delinear outros espaços semelhantes ao proposto pelo Caminhos do Cuidado que ocorram regularmente, pois um assunto tão polêmico e presente no cotidiano dos serviços de saúde não se esgota em 5 dias. Além da possibilidade de espaços formais de educação permanente, o estudo sugere a necessidade que tal debate não se restrinja ao ACS e que tais discussões sejam compartilhadas com todos os profissionais da ESF. Nesse sentido, a qualificação das reuniões de equipe e instituição de espaços regulares de apoio matricial no cotidiano dos trabalhadores para se discutir

tais questões são condições sine qua non para a promoção de saúde mental na atenção básica.

É pertinente que os futuros projetos de educação permanente reconheçam tais atravessamentos e problematizem em suas capacitações a pressão da mídia em disseminar um ideal de reabilitação por meio da religião, um ideal de um cuidado privatizado, a higienização dos espaços públicos e a medicalização da vida; bem como, promover reflexões-críticas sobre os limites da tentativa de controlar o comportamento do outro, sobre a rigidez da estruturação dos serviços, sobre a superficialidade dos contatos com os usuários e sobre o autoritarismo das práticas adotadas.

Delinear outros projetos de educação permanente em saúde que incluam na roda médicos, enfermeiros e dentistas são medidas importantes para a construção e efetivação de práticas integrais. A pesquisa também demonstrou a necessidade de se fortalecer os espaços para o apoio matricial, seja por meio de visitas e atendimentos compartilhados, seja na promoção de discussões coletivas e democráticas dos casos de usuários e famílias e a inclusão de ações de saúde mental como pauta das reuniões de equipe. Parece ser fundamental que os profissionais das USF (e não apenas os ACS) pensem coletivamente em estratégias para lidar com os usuários de drogas, em como garantir a detecção precoce de uso abusivo e síndrome de dependência, como sensibilizar os usuários para o autocuidado, como dar espaço para as necessidades e desejos reconhecidos pelos usuários, como realizar encaminhamentos implicados, como oferecer retaguarda para os usuários em acompanhamento, em recaída, egressos de internações e familiares.

Trabalhar com mudança de paradigmas, com mudança de uma cultura manicomial são tarefas desafiadoras que não se resumem a um curso ou à uma dissertação. Assim, é fundamental que outros estudos também explorem as concepções e práticas dos ACS; bem como apresentem propostas de apoio matricial e educação permanente implicadas com a superação de um paradigma asilar e construções de práticas integrais que efetivem os princípios e doutrinas do SUS e da Reforma Psiquiátrica.