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Considerações finais quanto à Educação de Jovens e Adultos

Neste capítulo, procurou-se fazer uma síntese dos principais momentos da Educação Popular no Brasil, desde as primeiras ações realizadas ainda no Período Colonial, passando um olhar sobre o Período Imperial e dando maior atenção ao Brasil Republicano. Em todos os períodos foi feita uma série de comentários à luz da preocupação que motivou esta revisão histórica da Educação Popular, qual seja identificar aspectos relativos ao poder de um

determinado grupo social e a relação entre os seus interesses e o tratamento dispensado à educação do povo.

Procurou-se introduzir, ainda, uma análise sobre os processos que marcaram a história da Educação Popular, com base no método dialético de análise, em especial referente ao princípio da totalidade, isto é, que os fenômenos não ocorrem de forma isolada, ao contrário, são resultantes da articulação das partes. E o princípio da contradição, em que “A transformação das coisas só é possível porque no seu próprio interior coexistem forças opostas tendendo simultaneamente à unidade e à oposição” (GADOTTI, 2010, p. 105). Assim, esta análise teve por objetivo fazer algumas considerações sobre as relações que se podem estabelecer entre as ações da sociedade civil e do Estado brasileiro em torno da escolarização do povo e o contexto social, político e econômico que as motivou. Ao mesmo tempo, identificou-se o caráter contraditório que assume a educação, devido às diferentes intencionalidades que correspondem aos interesses das classes sociais em uma sociedade marcada pela desigualdade.

Durante o Período Colonial as ações foram pouco significativas, porque “além da

religião, poucos foram os motivos que atuavam em favor do desenvolvimento do ensino”

(PAIVA, 1973, p. 58). O Brasil Colônia foi vítima de um isolamento cultural. As ações educativas ficaram restritas à catequização. Somente com a vinda da família real para o Brasil houve necessidade de preparar mão-de-obra para as novas funções exercidas no país. Durante o Século XIX, com a proclamação da independência, houve maior atenção ao ensino elementar. No entanto, apesar do intenso debate ocorrido no final do século XIX, o Brasil entrou o século XX como um país de analfabetos.

As grandes mudanças no panorama educacional brasileiro começaram na década de 1920, quando teve início um grande debate sobre a educação, especialmente com o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Neste período, e nas décadas seguintes, a Educação Popular passou a ser objeto de discussão e integrou de forma mais significativa as preocupações do Estado brasileiro. Procurou-se apontar, na descrição desse período, o caráter ideológico e o espaço de tensão que passou a se formar no campo da Educação Popular, em especial na educação de adultos. Emblemáticas neste período foram as restrições feitas pelo Estado a determinadas experiências da educação de adultos no Distrito Federal, em que se destacou Paschoal Lemme. Embora ele não acreditasse que a educação pudesse promover grandes

transformações,26 os relatos de sua prática apontam alguns efeitos positivos dos projetos de educação de adultos no sentido da emancipação, bem como indicam algumas características que acompanham até hoje a EJA.

A segunda metade do século XX, quando a educação de adultos passou a ser uma preocupação inclusive da Unesco, o Brasil realizou a Segunda Conferência sobre Educação de Adultos. Identificaram-se as diferenças mais significativas entre os projetos que passaram a ser desenvolvidos no Brasil naquele período. A educação de adultos e não só ela, a Educação Popular como um todo, passou a ser um espaço de disputa de projetos que refletiam os divergentes interesses de uma sociedade de classes. De um lado, ganhava força um plano de emancipação das camadas populares, ancorado num projeto de desenvolvimento nacional e de socialização dos seus resultados. De outro, um plano cujo interesse estava na manutenção de uma sociedade concentradora de riquezas e excludente da maioria da população. A análise das experiências de educação de adultos no Brasil foi realizada com base nesta visão de disputa de uma elaboração mais ampla de sociedade. A Educação Popular, entre o final dos anos 50 e início da década de 60, esteve em meio a essa disputa. A contradição aqui se apresenta na necessidade de ampliar a escolaridade da população para atender as necessidades do desenvolvimento urbano-industrial de um lado, e de outro, a possibilidade de emancipação das camadas populares em busca da sua libertação.

Os projetos de Educação Popular, cujo objetivo foi a emancipação do povo, e que antecederam o período autoritário, apresentaram, entretanto, diferenças importantes, tanto na concepção de cultura popular quanto nos métodos utilizados para alcançar os propósitos que tinham em comum. Os Centros Populares de Cultura (CPCs), liderados pela União Nacional dos Estudantes (UNE) seguiam uma orientação marxista e diretiva no processo de Educação Popular. Dessa forma, acreditavam que, através da divulgação dos grandes problemas nacionais, poderiam estimular o povo a lutar pelas grandes transformações.

Os Movimentos de Cultura Popular (MCPs) caracterizaram-se pela valorização da

cultura popular e “[...] desenvolviam atividades mais amplas e sistemáticas que tinham a alfabetização e educação de base como um de seus pilares” (PAIVA, 1973, p. 239). De caráter

socialista e cristão, ainda, segundo Paiva (1973), o movimento tinham ainda como objetivo 26

Paschoal Lemme, pelas convicções ideológicas que tinha, acreditava que somente as mudanças estruturais seriam capazes de transformar uma sociedade.

conscientizar o povo brasileiro. Também algumas das ideias desenvolvidas no MCP de Pernambuco fariam parte da metodologia de Paulo Freire.

O Movimento de Educação de Base (MEB), criado com objetivos modestos e de ajuda no sentido de melhorar a vida dos camponeses, evoluiu juntamente com o pensamento da Igreja Católica, colocando-se ao lado das camadas populares, pois “a promoção humana estava intimamente ligada à preparação para a participação na vida econômica, social e política do país através da conscientização” (PAIVA, 1973, p. 241). Como pensamento solidário cristão, embasou sua ação na ideia de cultura como algo inerente ao ser humano, portanto, em construção feita por todos os homens. São neste horizonte que se movimentam as ideias e práticas da pedagogia de Freire.

Tal concepção afirmava ter o homem vocação para ser “sujeito da história”, e não

para “objeto”, mas no caso brasileiro essa vocação não se explicitava, pois o povo

teria sido vítima do autoritarismo e do paternalismo correspondentes à sociedade herdeira de uma tradição colonial escravista (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2009, p. 94).

Daí a aposta no diálogo como forma de leitura do mundo numa ação coletiva em que educadores e educandos refletem sobre as relações de opressão, para transformá-las. Esta forma de perceber o homem na sua singularidade histórica é um ponto de vista diferente da concepção marxista, embora não deixe de estabelecer as relações mais amplas nas quais todos estão inseridos. Por esta razão, trabalha com a possibilidade de “conscientização” num processo de compreensão do real pelo encontro dos homens que, ao falarem dos seus

“mundos”, problematizam as circunstâncias históricas em que vivem e percebem a

necessidade da sua transformação. A problematização, em se tratando da Educação Popular, vai adentrar as questões fundamentais da própria existência e entre elas, o mundo do trabalho. Neste sentido, esta abordagem se aproxima do Currículo Integrado, porque torna possível, como já dito em outro texto, o encontro entre os diferentes saberes: o conhecimento de cultura geral, o conhecimento técnico específico e o conhecimento produzido pelas vivências dos educandos e dos educadores.

A metodologia do MEB incluía o trabalho comunitário, em que a educação sistemática ia sendo ampliada. Por isso, pode-se dizer que a concepção de homem e a de Educação Popular presente neste movimento têm relação não apenas com um compromisso de mudança no campo político-ideológico, mas têm raiz epistemológica vinculada à perspectiva de

valorização do senso comum, dos valores da cultura do povo, como igualmente constituintes do conhecimento a ser construído. Por esta razão, aproxima-se dos pressupostos do Currículo Integrado à medida que concebe o ser humano como agente de um conjunto de fazeres e saberes que não podem ser hierarquizados, pois são complementares. Em relação a este aspecto, tanto o MEB como os MCPs se aproximam da concepção de ensino integrado ao incorporarem no processo educativo os valores e as práticas sociais do povo. MEB E MCPs, por terem como intencionalidade a transformação social e a libertação das formas alienadas da cultura, ambos colocaram a realidade em estado reflexão para desmistificá-la.

A valorização das formas de expressão cultural do homem do povo e o estímulo ao desenvolvimento de sua capacidade de criação funcionavam no MCP, como a própria condição de diálogo entre a intelectualidade e o povo [...]. A intelectualidade participante devia libertar-se de todo espírito assistencialista e filantrópico e, sem querer impor seus padrões culturais, procurar aprender com o povo através do diálogo (PAIVA, 1973, p. 237).

Também quanto à libertação e à emancipação, o Currículo Integrado é apresentado como possibilidade da educação não-alienada e capaz de contribuir para o avanço na direção do exercício pleno da cidadania. “Como formação humana, o que se busca é garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente

à sua sociedade política” (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 85).

Pode-se constatar que houve divergências de método e de concepção nos projetos e práticas da Educação Popular no início da década de 1960. No primeiro caso, os CPCs agiam partindo do pressuposto de que o povo deve ser dirigido por intelectuais e artistas que, através de uma arte engajada e revolucionária, serão capazes de levá-los a superar a condição de alienação. Em relação aos MCPs e ao MEB, há uma aproximação entre os saberes da cultura geral e os saberes do povo (utiliza-se esta forma de expressão devido à problemática do conceito de cultura popular muito presente nos debates da época).

Essas diferenças podem ser percebidas do ponto de vista epistemológico e, por consequência, metodológico, no tocante ao processo de ensino e aprendizagem e de um currículo presente em cada uma dessas experiências, mesmo não se tratando de práticas educacionais sistemáticas. Os CPCs, ao conceberem, conforme Paiva (1973, p. 234), uma

povo e revolucionária porque pretendia passar o poder a esse povo”, estabeleceram, por

consequência, uma separação entre duas esferas do conhecimento, qual sejam, o que o povo sabe e o que ele precisa saber. Daí o seu caráter diretivo, ao estabelecer o que é bom para as

camadas populares. Por esta razão, teriam que receber as “indicações” dos intelectuais para

que adotassem uma postura revolucionária em relação às estruturas dominantes. Do ponto de vista metodológico e curricular, significa que a aprendizagem se dá a partir de algo que é externo ao pensamento popular e, consequentemente, pouco significado se atribui aos conhecimentos do senso comum e das vivências. Neste sentido, esta abordagem de Educação Popular fragmenta a própria realidade distanciando-se da ideia do diálogo e da consideração do saber popular como constitutivo do conhecimento como um todo.

Na elaboração do Plano Nacional de Alfabetização, as divergências apareceram, por

exemplo, quanto “[...] à utilização de cartilhas” (PAIVA, 1973, p. 256). Segundo a autora, o

prestígio do educador Paulo Freire acabou levando à adoção do seu método. Portanto, o PNA foi organizado em torno da ideia de uma educação em que a conscientização do povo, quanto às tarefas políticas, se tornou fundamental. Por esta razão, acompanhado do processo de alfabetização propriamente dito, foram organizados os círculos de cultura. Pode-se concluir que a alfabetização iniciada pelo plano privilegiou a criação de um ambiente de aprendizagem em que a vida, em suas mais variadas dimensões, tornou-se objeto de reflexão. Assim, sua intencionalidade esteve ligada ao compromisso da transformação da sociedade. O Currículo Integrado associa-se a esta intencionalidade à medida que propõe a aprendizagem a partir do cenário do mundo do trabalho e das relações estabelecidas em torno dele, facilitando esta leitura do mundo. Também do ponto de vista da aprendizagem, faz uma aposta na valorização da experiência vivida neste mundo do trabalho, para que seja possível romper com a hierarquia entre trabalho manual e trabalho intelectual e entre o que se aprende nos demais espaços sociais e o que se aprende na escola. É importante perceber a concepção de que há complementaridade entre os saberes do trabalho, da ciência e da cultura.

Pode-se dizer que a Ditadura Militar que se estabeleceu no Brasil a partir de 1964 adotou medidas e programas para que a educação estivesse a serviço da consolidação do projeto de desenvolvimento urbano e industrial que aprofundou a dependência e a exclusão. Em relação à educação de adultos, instituiu o MOBRAL com o objetivo de se sobrepor aos movimentos de alfabetização existentes, mas, como processo de alfabetização não alcançou

suas metas. Por outro lado, segundo Brandão (2001), se inseriu nas comunidades para

“desmonte da Educação Popular” e seu vínculo com os movimentos sociais.

A Cruzada ABC, conforme Paiva (1973), apesar de seu caráter filantrópico, cumpria o papel de neutralizar os efeitos dos movimentos de alfabetização realizados anteriormente, como na Região Nordeste, ou por interesse político de afirmação do novo governo. No entanto, ainda segundo a mesma autora, sofreu críticas de setores do governo que desejavam um projeto de alfabetização funcional, ideia esta que também acabou não se efetivando, salvo algumas experiências. Para a Cruzada, “[...] o analfabeto, diante do surto de industrialização do Nordeste, era visto como um potencial de trabalho marginalizado e como um elemento que

contribuía apenas para minar a sociedade em suas estruturas mais básicas” (PAIVA, 1973, p.

268). Em se tratando da intencionalidade do processo educacional, ficam evidentes os objetivos de adequação do público da educação de adultos, tanto no aspecto de “integração

social” pela via conservadora quanto na função de mão-de-obra para o capital. Tal

intencionalidade é um movimento contrário às concepções da Educação Popular e aquela proposta parte do pressuposto de que os educandos devem ser apenas inseridos nas estruturas sociais e produtivas, sem nenhuma possibilidade de questionamento sobre as relações estabelecidas por elas. Ao ampliar a sua atuação, a Cruzada orientou iniciativas na formação técnica, objetivando maior integração à vida profissional sem questionar as relações de exploração existentes no trabalho.

O MOBRAL, especialmente a partir do momento em que se torna entidade executora de um programa de grande dimensão, procurou, conforme Paiva (1973), afastar-se das influências do período anterior ao Regime Militar. Para isso, elaborou materiais didáticos que cumprissem o objetivo de alfabetizar a partir da ótica do regime, isto é, para adequação dos brasileiros ao processo de modernização conservadora e excludente. Em conformidade com este objetivo, a mensagem do material didático

[...] busca difundir a ideia de responsabilidade pessoal pelo êxito ou fracasso na consecução dos novos objetivos [constantes na proposta de aperfeiçoamento pessoa dos sujeitos], diminuindo os riscos de uma contestação das estruturas sócio- econômicas e políticas por parte dos que não conseguiam realizar suas aspirações (PAIVA, 1973, p. 296).

O conhecimento aparece como meio de ascensão social, não havendo a possibilidade de reflexão sobre as formas de sua produção e apropriação. A cada indivíduo fica a

responsabilidade, a partir da “oportunidade” de se qualificar, por alcançar melhores condições de vida dentro do sistema. A concepção de ensino e seus objetivos se afastam definitivamente da proposta de alfabetização que visa a uma aprendizagem promotora da emancipação dos jovens e adultos trabalhadores. Com o fim da Ditadura Militar,pode-se dizer que a educação de adultos não contou com experiências significativas em nível nacional.

A Fundação Educar não alcançou êxito e, num período de contenção de investimentos, acabou sendo extinta. A Constituição de 1988 e a nova LDB (Lei nº 9.394/1996) trouxeram uma série de preceitos legais que criaram as condições para a execução de uma nova política para a educação de adultos, a partir daí denominada Educação de Jovens e Adultos. É a partir dessas determinações legais que o governo instalado em 2003 pelo então presidente Lula e em atendimento ao Plano Nacional da Educação criou, por meio dos Decretos nºs 5.154/2004 e 5.840/2006, um novo Programa de Educação de Jovens e Adultos, o PROEJA e o PROEJA- FIC.

Procurou-se fazer uma análise sobre os principais aspectos que envolvem este novo programa. Ele apresenta um referencial teórico que pode contribuir no sentido de dar à EJA, dentro dos limites institucionais, um caráter progressista. Ao integrar a Educação Profissional com os conhecimentos do ensino fundamental, o PROEJA-FIC faz a aproximação entre a cultura geral e os conhecimentos técnicos, ao mesmo tempo em que valoriza os saberes construídos pelos trabalhadores em suas trajetórias no mundo do trabalho. Por ter como condição a análise da realidade vivida pelos educandos e educadores, este programa pode criar condições favoráveis à reflexão e à conscientização dos educandos. Por outro lado, buscou-se apontar as armadilhas que um programa como este pode encontrar. Por estar relacionado diretamente ao mundo do trabalho e vinculado aos arranjos produtivos locais, pode avançar no sentido de contemplar os interesses populares. Se a sua realização, no entanto, não vier acompanhada de ampla discussão no interior das instituições e destas com as comunidades locais, amplamente representadas, pode este programa tornar-se mais uma ação no sentido de formar mão de obra barata para o mercado.

A “sistematização das experiências” que estão sendo desenvolvidas nos municípios de Coronel Bicaco, Tenente Portela e Três Passos/RS, pode oferecer um indicativo do caráter que vem assumindo o PROEJA-FIC. Embora não seja representativa, no que se refere ao conjunto das práticas que vêm sendo realizadas pelo programa em todo o país, ela oferece

elementos qualitativos importantes, tanto para a reflexão dos sujeitos envolvidos, como para lançar luz sobre as avaliações do programa como um todo. O trabalho de síntese aqui apresentado constitui-se em elemento importante no sentido de orientar a reflexão sobre o desenvolvimento do projeto.

3 A “SISTEMATIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA” NO PROEJA-FIC