• Nenhum resultado encontrado

A literatura afirma que o nascimento de uma criança com deficiência representa um universo de desafios para as famílias. São inúmeras situações com as quais pais e familiares precisam encarar. As condições materiais e subjetivas, as informações e os apoios recebidos terão importância inconteste para a organização dos sentimentos e da adaptação do convívio familiar. Sem dúvidas, são muitos os desafios experimentados: cuidados incessantes, estigmas e preconceitos que persistem, escassez de serviços e políticas públicas são apenas alguns dos tantos desafios que se apresentam às famílias na nossa sociedade.

Entendemos que a família se constitui como parte central para construirmos reflexões acerca dos inúmeros obstáculos, assim como das possibilidades que se apresentam às pessoas com deficiência na nossa sociedade. No âmbito da educação, são inúmeros os estudos que têm como objeto e problematizam a relação da família com o desenvolvimento educacional dos mais jovens, assim como no âmbito da educação inclusiva da participação dos parentes na evolução das crianças e jovens nos processos formativo e no desenvolvimento cognitivo e sensório-motor (AGUIRRE, 2005; ARIÈS, 1981; CARVALHO, 2000; GLAT, 1996; MAGALHÃES, 2002, 2007; BUSCAGLIA, 2006, AMARAL, 2002 entre outros).

Porém, à medida que fomos nos aproximando das nossas colaboradoras, de suas experiências e de suas vivências cotidianas, fomos elaborando reflexões sobre a complexidade de maternar, em particula, uma criança com deficiência. Ao longo do processo de construção do estudo, apresentaram-se elementos relevantes que nos fizeram, inclusive, repensar nosso percurso: reorganizar nossos objetivos e redirecionar nosso olhar para a dimensão de gênero que se fez central, conduzindo o caminho que iríamos trilhar.

Nessa direção, os dados apresentados contribuem para a afirmação da seguinte tese: em nossa sociedade, as relações de gênero são construídas socialmente a partir das referências biológicas dos sexos, das articulações

normativas sociais, dos símbolos culturais e das condições socioeconômicas, por esse motivo, elas resultam em relações desiguais entre o conjunto dos sujeitos sociais. Tais desigualdades se expressam de forma particular na vida das mulheres, seja nas desigualdades salariais, nas formas de violência e opressão, na manutenção de concepções acerca do ser mulher impondo-lhe a responsabilidade, quase exclusiva, do cuidar. Quando a mulher dá à luz uma criança com deficiência, tais elementos se complexificam e, consequentemente, intensificando as responsabilidades, bem como invisibilizando, de forma contundente, o sujeito mulher, suas necessidades e trajetórias e ressaltando apenas o papel materno.

Em nosso estudo, pudemos perceber que nossas colaboradoras, junto com seus/suas filhos/as, percorrem árdua trajetória na busca de sessões de terapia, exames, médicos, laboratórios, escolas ou serviços nem sempre disponíveis. O déficit de proteção social é também uma expressão da pouca atenção dada as necessidades de grupos populacionais que lutaram para radicalizar sua participação na totalidade das relações humanas. É possível inferir que a invisibilidade também é expressa na indiferença, na forma como a nossa sociedade enxerga as pessoas com deficiência e como suas necessidades são tratadas pelo poder público.

Soma-se ao descompromisso do Estado com a concretização das políticas direcionadas às pessoas com deficiência e suas famílias à condição de classe de parcela significativa da população. Nossas colaboradoras são mulheres pobres, cujas famílias residem em bairros periféricos com acesso precário, particularmente, aos serviços de saúde e reabilitação. Impõem-se sobre essas vidas a dificuldade de possibilitar aos/as filhos/as as condições necessárias ao seu desenvolvimento.

A intervenção desenvolvida objetivou construir um diálogo reflexivo junto às mulheres mães de crianças com deficiência acerca da vida cotidiana: de seus obstáculos, conquistas, desafios, perspectivas de futuro, além de propiciar momentos de leveza entendidos como necessários diante da intensa rotina. Nesse sentido, as nossas colaboradoras foram convidadas a dividir seus conhecimentos, suas vivências e experiências na intenção promover o

engajamento no processo e, ao mesmo tempo, desnudar as singularidades e generalidades do constituir-se mulher e mãe de uma criança com deficiência.

Inicialmente, percebemos que nossas colaboradoras tiveram dúvidas acerca de nosso trabalho investigativo, mas aos poucos foram entendendo a proposta e se aproximaram para participar e se demonstraram dispostas a contribuir com o grupo. O fato de proporcionarmos um ambiente de acolhida e partilha promoveu a confiabilidade necessária para que nossos convidados pudessem realizar suas intervenções e discutir assuntos propostos.

Ao assumir na nossa investigação e intervenção a dimensão de gênero como central, buscamos propiciar momentos dialógicos, a partir do qual as nossas colaboradoras tecessem suas próprias elaborações acerca da condição de mulher e mãe. O desafio foi provocar as reflexões necessárias à desconstrução de mitos envolvendo a maternidade e a condição de mulher, respeitando as expressões de religiosidade, crenças e capital cultural de nossas colaboradoras.

Sobre a dimensão das relações de gênero latente em nosso estudo, concluímos que se expressa de forma contundente e particular na vida das colaboradoras. A maternidade entendida no âmbito das relações sociais de gênero como destino das mulheres revelou-se, em nosso estudo, permeada por elementos merecedores de resgate e de reafirmação.

O processo de maternar, além de ser entendido pelo senso comum como parte da natureza feminina, assume concepções advindas de elementos fantasiosos e religiosos. No entanto, seja como destino natural da mulher ou desejo divino, parece que não pode ser questionado. Faz parte, portanto, do processo de maternar aceitar a condição do/a filho/o e ainda dedicar-se de forma exclusiva às suas necessidades.

No que se refere ao processo de maternar uma criança com deficiência, destaca-se que a religião se constitui elemento que perpassa as concepções acerca do ser mãe e mulher. A dimensão simbólica imbricada na constituição dos papéis de gênero estabelece modelos e características que devem ser seguidos pelo conjunto dos sujeitos sociais. Nesse sentido, os símbolos religiosos são importantes para a reprodução e manutenção dos estereótipos

de gênero e, por conseguinte, das desigualdades as quais as mulheres estão submetidas.

Como dissemos, os símbolos religiosos estiveram presentes e continuam a conformar os sentidos e significado dados ao processo de maternar. Mantêm-se forte e presente os discursos naturalizantes – forjados pela religiosidade – sobre a maternidade, eles evidenciam sua complexidade e, na mesma medida, a necessidade de encontrar justificativas para as situações vivenciadas com aquele/a filho. Compreendemos que, em nosso estudo, a religião se constitui para as mulheres mães uma estratégia de enfrentamento as dores e as dificuldades. É nela que encontram o conforto para continuarem lutando por seus/suas filhas/as.

Destaca-se que, na história da humanidade, as ideias e concepções de mundo modificam-se. A dinâmica social cria o espaço propício para o surgimento de novos olhares acerca do mundo; e a ciência e suas descobertas põe luz à irracionalidade fantasiosa acerca dos fenômenos sociais. Parece-nos contraditório que nossas colaboradoras busquem condições de desenvolvimento e autonomia de seus filhos por meio da ciência, que enfatiza a diferença como fenômeno da diversidade humana, bem como mantenham no âmbito da fé a explicação para a deficiência de seus filhos como forma de lidar com os desafios impostos pela sociedade.

A partir de nossas reflexões, podemos inferir que a religião é utilizada como suporte para o processo de aceitação. Nesse sentido, o nascimento do filho se constitui um milagre divino (ou castigo) e sua explicação só consegue ser dada pela lógica da espiritualidade. Observamos, particularmente, que as mulheres mães evangélicas se apegavam de forma mais contundente a mística religiosa. Ademais, por meio dos discursos das nossas colaboradoras, percebemos que é no âmbito religioso que elas encontram alguma acolhida, suporte e alívio psíquico, aqueles que, raramente, encontram em outros espaços de sociabilidade e na esfera das políticas públicas.

Problematizar coletivamente as dimensões de gênero, fez-nos perceber quão profundas são as raízes das desigualdades e como estas afetam de forma contundente a vida das nossas colaboradoras. A falta de apoio dos

familiares, particularmente dos companheiros, revela a naturalização da opressão, e evidencia os processos de sofrimento vivenciado por elas, uma vez que, ao perceberem como mães de um/a filho/a com deficiência, elas afastam- se de sua condição de ser mulher, esquecendo-se de si e do autocuidado. Ao mesmo tempo, reconhecer a pluralidade dessas mulheres, suas angústias e necessidades e abraçá-las na jornada corrobora para amenizar o peso da caminhada.

Identificamos que a sobrecarga consiste em um dos problemas mais comentados pelas mulheres: falta de tempo para si e a exclusividade dos afazeres domésticos e cuidados dos/as filhos/as foram exaustivamente comentados por praticamente todas elas, seja nas entrevistas, nas nossas incursões na Sala das Mães ou nos momentos reflexivos-vivenciais. Aqui, a condição de classe revela-se preponderante: são mulheres pobres que não têm recursos para delegar a outro/a as tarefas relacionadas ao cuidado. Além disso, não encontram, no âmbito do Estado, políticas públicas e serviços que propiciem a elas e a seus/as filhos/as a atenção e cuidados necessários.

Nesse aspecto, foi percebido que nossas colaboradoras entendem ser necessária a participação dos seus companheiros na divisão dos afazeres domésticos. Elas compreendem que as atividades do lar precisam ser compartilhadas pelo conjunto dos sujeitos, mas expressam dificuldade em dialogar com seus companheiros e acabam aceitando como mais uma de suas atribuições: ensinar aos companheiros o seu dever com a dinâmica da unidade doméstica.

Entendemos que ter consciência de que o trabalho doméstico é responsabilidade de ambos os gêneros se constitui um movimento importante para romper com as desigualdades no âmbito familiar, contudo nossas colaboradoras nos mostraram que não é suficiente. Desconstruir ideias arraigadas as estruturais culturais, políticas e econômicas de uma sociedade requerem um movimento incessante e, por vezes, exaustivo.

De fato, não é uma tarefa fácil. A elaboração de ideias acerca dos gêneros foi sendo criada e reproduzida por discursos diversos ao longo das trajetórias humanas. Essas ideias associadas ao modelo de organização da

vida em sociedade reforçam estereótipos sobre a mulher e seu lugar na sociedade. Por certo, alguns passos foram dados na luta pela igualdade e autonomia das mulheres, contudo, ao nos debruçarmos sobre o “miúdo do cotidiano”, sobre as vivências diárias podemos afirmar que as desigualdades resistem e persistem. Em nosso estudo, assume maior complexidade, pois nossas colaboradoras são mães de crianças cujas necessidades determinam a elaboração de novos arranjos e mudanças na vida.

Importa dizer que compreender como se estrutura o lugar da mulher, seja na vida doméstica, seja nos espaços públicos não significa uma ruptura imediata com valores e ideias internalizadas ao longo de trajetórias, tão pouco que após essa compreensão ocorra uma súbita mudança de hábitos e concepções dos demais sujeitos a sua volta. Embora nossas colaboradoras julguem importante a participação dos homens nas atividades domésticas, essa participação ainda é compreendida como “ajuda”, sendo a tarefa do cuidado direto ao/a filho/a uma atividade pertencente ao universo feminino.

Nesse sentido, temos ciência que os momentos promovidos pela pesquisa não foram suficientes para mudanças profundas, considerados amplitude e complexidade que envolve o debate de gênero. Do mesmo modo, a pesquisa-ação, a reflexão, a mudança individual e coletiva são processos contínuos, constantes e demorados. De fato, na construção da pesquisa temos prazos e nem sempre alcançamos todos os objetivos pretendidos, contudo temos certeza de que propomos o debate promovendo a visibilidade do sujeito mulher, e, considerando o que foi dito neste parágrafo, esse foi o início de uma caminhada que o nosso estudo se propôs realizar.

Temos a clareza de que mudanças estruturais só poderão ocorrer com transformações estruturais. Como nos diz Freire (1989, p. 42), “reorganizar a sociedade velha, transformá-la para criar a nova sociedade não é tão fácil assim. Por isso, não se cria a sociedade nova da noite para o dia, nem a sociedade nova aparece por acaso”. Assim, também são as estruturas das relações de gênero: não serão transformadas repentinamente, mas a partir das forças sociais que lutam pela radicalização da liberdade e igualdade entre os sujeitos. No entanto, mesmo compreendendo as limitações de nossa investigação, não hesitamos em dizer que os diálogos, as reflexões

despertaram olhares diversos sobre situações cotidianas, sobre a maternidade, sobre a humanidade de cada uma de nossas colaboradoras e sobre a aparente naturalização das relações sociais.

Ainda em tempo, destacamos o desgaste físico e mental que a sobrecarga provoca nas mulheres mães de crianças com deficiência. Ao se dedicarem integralmente as necessidades dos filhos, nossas colaboradoras, por exemplo, acabaram por abdicar de vivências e projetos pessoais. O temor pela vida dos/as filhos/as e as incertezas quanto ao futuro são aspectos que pareceu influenciar de forma significativa a vida das mulheres mães de nossa pesquisa.

Todas as nossas colaboradoras assumiram de forma integral uma dedicação ao/a filho/a. Com a criança, também vieram as mudanças na vida conjugal, ocupacional, a ressignificação e até o abandono dos projetos pessoais, resultando na abdicação do cuidado consigo mesma e de experiências desvinculadas do/a filho/a. Em geral são tantas as atividades e demandas da criança com deficiência que a vida da mãe gira em torno da agenda de seus filhos.

Nossas colaboradoras, afirmam não sobrar tempo para cuidar de si, contraditoriamente, sobra-lhes tempo na Sala das Mães. O tempo que esperam os/as filhos/as é utilizado de diversas formas, contudo a maior parte desse momento elas estão ociosas. Nesse aspecto, nossa intervenção buscou promover momentos que pudessem cuidar de si, melhor dizendo, olhar para si. Consideramos que esse tempo ocioso seria melhor utilizado se outras atividades fossem propostas, assim, tais momentos poderiam não ser apenas de ócio, mas de trocas sociais mais intensas.

Acerca da rede de apoio estabelecida entre as mulheres mães participantes de nosso estudo, foram observados: identificação umas com as outras, empatia pelos problemas levantados, apoio na visualização de novos horizontes e incentivo a romper com estruturas desiguais, ampliação de práticas respeitosas, encorajamento e companheirismo em momentos de choro e tristeza, além da prestação de conforto espiritual e trocas de informações.

Documentos relacionados