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Quando juntas, as estrelas formam constelações: as relações de

Informação, orientação e apoio são imprescindíveis para que famílias que têm filhos com deficiência realizem os ajustes materiais e emocionais que necessitam. A partilha, os conhecimentos adquiridos, as técnicas socializadas, os momentos de diversão e descontração fazem parte do movimento de aceitação e da construção do caminho a ser trilhado. A interação com outras famílias que vivenciam situações semelhantes propicia o desenvolvimento da empatia, além de demonstrar que os obstáculos podem ser partilhados e superados.

A nossa pesquisa evidenciou que, entre as nossas colaboradoras, existem relações solidárias estruturadas a partir da reciprocidade e da confiança. A disposição para contribuir umas com as outras, as trocas, a solicitude e o apoio prestado evidenciavam-se a cada passo dado do percurso de nossa investigação.

As mulheres colaboradoras da pesquisa são singulares. Cada uma tem trajetórias de vidas ímpares. Algumas trazem consigo as marcas de uma vida de sofrimentos e violação de direitos, outras tiveram projetos ressignificados pelo nascimento dos/as filhos. A história de Maia nos chama atenção pela sua singularidade e emociona pela trajetória, pelo apoio e pela solidariedade com que trata todos/as à sua volta e, na mesma medida, ela recebe de volta isso. A seguir, mais informações sobre essa Estrela:

Maia tinha uma amiga enfermeira que deseja muito ser mãe. Desejava adotar uma criança, mas seu marido não aceitava a ideia. Um dia, disse a Maia que conhecia uma mulher disposta a doar o/a filho/a e ela iria adotá-lo/a. Passou um tempo e sua amiga comentou do nascimento da criança, era um dia de muita chuva e, por essa razão, só conseguiu pegá-la no dia seguinte. Antes de levá-la para casa, passou na residência de Maia e mostrou a menina “toda vestida de rosa”. Disse que caso seu marido não aceitasse traria a criança para Maia. Na tentativa de convencer o marido, Rosa41 montou uma cena: trouxe a criança, colocou-a em um cesto e deixou na porta de casa. Pediu para a irmã que chamasse a campainha e saísse.

41 Todos os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade dos sujeitos, como estabelece os termos éticos da pesquisa.

O marido ao ver a cena exasperou-se e ameaçou chamar a polícia. Por mais que tentasse convencê-lo, não conseguiu. Era um sábado, Maia estava trabalhando e, por essa razão, não viu o celular chamar. Como não conseguiu contato com Maia, Rosa então ligou para Paulo (marido) e perguntou se ele gostaria de ficar com a menina. Ao chegar em casa, deparou- se com seu marido “com um sorriso de orelha a orelha” e sua amiga com uma criança com 5 dias de nascida no colo. Ao ver Maia, Rosa pediu: “Fica com ela, não vou poder ficar”. Maia, também queria ser mãe, queria gerar um filho, mas não podia engravidar e aquela cena a deixou sem ação. Não estava preparada para aquela responsabilidade, mas conversou com Paulo e resolveram ficar com ela. A decisão trouxe uma preocupação: Maia e Paulo trabalhavam e não tinham como cuidar da criança. Foi então que Maia ligou para a irmã no interior e perguntou se ela podia ficar com a menina enquanto organizava tudo. A criança ficou com a tia até os 8 meses. Todo final de semana, Maia viajava para ver a filha. Era uma criança muito estressada, chorava muito, mas ela achava natural. Aos poucos, começou a ser alertada para possíveis problemas de saúde que a criança pudesse ter “todos viam, menos eu. Eu não queria ver que tinha alguma coisa errada com ela”. Maia deixou o emprego e iniciou o percurso de médicos e exames. Primeiro descobriu o problema no coração, fizeram a cirurgia, foram três meses de cuidados intensos e o encaminhamento para o neurologista. Quando a criança tinha 2 anos e meio, a família descobriu que tinha Transtorno do Espectro Autista (TEA). Desde então, ela está com a criança no EASE, no CRI, na APAE. Na Sala das Mães todas colaboram com Maia. Quando precisa se ausentar sempre tem alguma delas disposta a ficar de olho na menina. Na Sala das Mães, Maia orienta, informa, conforta etc. No grupo de whatsapp, ela repassa orientações acerca de lugares com menor preço de medicação, fraldas e etc., contribuindo como pode na socialização de informações relevantes àquelas mulheres e seus/suas filhos/as, que nem sempre dispõem das informações que precisam (Diário de Campo 1, março, 2017).

Maia, como tantas mães, necessitou reorganizar a vida. Precisou de apoio. A família consanguínea foi a primeira que recorreu para ajudá-la com a filha recém-chegada. Para que as mulheres consigam realizar atividades fora do ambiente doméstico, é comum que outras mulheres assumam a responsabilidade pelos afazeres domésticos e os cuidados com dos/as filhos/as. Essas práticas reafirmam a maternidade transferida (termo utilizado por Costa [2002, p. 303] para identificar as formas que as mulheres encontram para atribuírem-se múltiplas responsabilidades).

Nas camadas empobrecidas – dada a falta de recursos financeiros e a ausência de políticas públicas –, são, geralmente, outras mulheres da família

que assumem os cuidados com as crianças ou com os sujeitos com algum grau de dependência. Foi assim na situação de Maia e é assim a vida de tantas outras mulheres, formando as redes sociais de apoio.

Conforme Netto et al. (2017, p. 03), “a existência de vínculos com familiares, vizinhos e instituições, como igreja e associações comunitárias, é fundamental no auxílio de situações difíceis”. Nesse sentido, o estabelecimento de uma rede social de apoio é importante como estratégia no enfrentamento às desvantagens e dificuldades impostas às mulheres.

Por rede social, Dessen e Braz (2000, p. 221) compreendem “um sistema composto por ‘...vários objetos sociais (pessoas), funções (atividades dessas pessoas) e situações (contexto)’ [...], que oferece apoio instrumental e emocional à pessoa, em suas diferentes necessidades”. No que se refere ao apoio instrumental, as autoras esclarecem que se trata da “ajuda financeira, ajuda na divisão de responsabilidades, em geral, e informação prestada ao indivíduo”. Já o emocional “refere-se à afeição, aprovação, simpatia e preocupação com o outro e, também, a ações que levam a um sentimento de pertencer ao grupo” (idem).

Durante a investigação, pudemos observar que no espaço da Sala das Mães foram construídas redes sociais de reciprocidade e de apoio “porque estavam todas no mesmo barco” (Antares, fragmentos de entrevista). Há uma consciência entre elas da criação e da importância de se manter essa rede. Ou seja, nossas colaboradoras compreendem que a condição de mãe de uma criança com deficiência é um fator comum a todas, existe, pois, um sentimento de pertencimento que as fazem se reconhecer umas nas outras. Embora seus filhos tenham necessidades diversas, frequentemente, precisam acessar os mesmos recursos e serviços de saúde e direitos sociais. Além disso, necessitam de amparo emocional e, por isso, a ajuda de cada uma é essencial para enfrentar o caminho a ser percorrido.

Eu sempre digo: aqui somos uma família, só não nascemos da mesma barriga (risos). (Mérope – Diário de Campo 1, maio, 2018).

As meninas aqui que me ajudam, porque se dependesse do meu marido. [...]. Eu nem converso mais com ele. Elas

conhecem mais minha vida que meu marido. (Maia – Diário de Campo 2, março, 2018).

Foi interessante perceber como elas se veem na rede de apoio uma das outras. Ao falarmos sobre quem as apoia, quem contribui para a diminuição da carga física e emocional, elas relacionavam isso umas às outras. No final da dinâmica, ao montarmos o painel, estavam todas lá. (Diário de Campo, setembro, 2017).

Ainda, foi possível identificar que o cuidado com os/as filhos/as umas das outras é elemento comum no cotidiano da Sala das Mães. Esse fator explicita a transferência de responsabilidades do cuidar, mesmo que essa responsabilidade seja momentânea e esporádica. Porém, é essa disposição ao cuidado que permite, por exemplo, uma mãe ir ao atendimento psicológico, ao mercado, ou até mesmo cortar o cabelo:

Ao chegar na Sala das Mães, me deparei com a filha de Maia, mas não a vi. A criança estava alvoroçada mexendo no celular enquanto perguntava pela mãe. Era dia da feira cultural na escola e, por essa razão, a criança estava por ali. Veja me falou que Maia deixou a filha com ela para ir ao salão cortar o cabelo. Dali, fomos à escola prestigiar o trabalho dos/as estudantes. Mais tarde, Maia voltou. (Diário de Campo 1, novembro, 2016).

Percebi uma criança dormindo, questionei quem era. Adhara disse que era uma criança recém-chegada no EASE. “A mãe e o filho vieram do interior, saíram cedo e não deu tempo trazer comida. Aproveitou que [filho] dormiu e foi no mercadinho comprar alguma coisa, estamos aqui de olho”. (Diário de Campo 1, março, 2018)

Conforme Mesquita (2010), as mulheres de camadas médias e pobres, criam estratégias que variam conforme o contexto, o local e independem do poder do Estado. No caso das mulheres colaboradoras da pesquisa, essas estratégias foram construídas a partir da proximidade proporcionada pela vivência cotidiana na Sala das Mães, pelas demandas coletivas apresentadas pelos filhos e pela condição de mulher e cuidadora. O estabelecimento de redes e de laços se constituem uma saída para as situações de desvantagens e de desigualdades cotidianas:

Aqui estamos sempre ajudando umas às outras. É assim, quando uma não pode a outra faz. Tem uma criança que dou o lanche todos os dias. A mãe não pode porque trabalha. Eu via o sofrimento, como já estou aqui, vou na escola na hora do lanche e dou a comida dela. (Adhara, Diário de Campo 1, setembro, 2016).

Se por um lado fica evidente o apoio prestado por Adhara, por outro lado, a situação descrita evidencia as dificuldades encontradas por muitas mulheres no acesso ao sistema de proteção social público ofertado pelo Estado. No caso das mães de crianças com deficiência, passa pela atenção integral as demandas dos filhos (saúde, educação, reabilitação etc.). Como diz Costa (2002, p. 306), nessas situações “a maternidade transferida cobre a deficiência dessas estruturas” [...]. A delegação de cuidados se dá porque não há outra alternativa”.

Além da disposição no cuidado com as crianças, a prestação de informações é outro importante elemento do grupo. Como nem sempre as mulheres recebem as informações necessárias para o acesso de serviços e de direitos, na Sala das Mães há sempre repasse dessas informações.

Estou dizendo para ela solicitar o laudo ao neuro. Só com o laudo ela pode dar entrada no benefício do filho. (Adhara, Diário de Campo 1, agosto,2017).

“Fui com Veja na Secretaria de Esporte e Lazer. Pegamos os formulários para a solicitação das carteirinhas. Eles nos deram esse formulário. A secretaria fica...”, disse Maia, esclarecendo as mães presentes como fazer para requerer a carteira para acesso aos eventos culturais e de lazer. (Diário de Campo 1, agosto, 2017).

Foi aqui na sala que eu soube do benefício dele e fui atrás. As mães aqui se ajudam muito. (Alcyone – fragmentos de entrevista).

Além de receber de forma afetuosa as mães recém-chegadas, Maia diz que sempre que pode orienta sobre o funcionamento da instituição, ou se preciso, acerca de serviços em outras instituições. Ela afirma que faz isso porque sabe “como é difícil conseguir encontrar os lugares” (Maia, Diário de Campo 1, agosto, 2017). As informações também são repassadas pelo grupo de WhatsApp, como avisos sobre funcionamento do EASE, cancelamento de atendimentos, documentação necessária para solicitação de serviço ou direitos, melhores preços de medicamentos, localização de equipamentos e serviços públicos são alguns exemplos.

A preocupação com o tratamento dado aos familiares e seus filhos é outra dimensão importante. Durante a observação foi possível identificar que estão sempre atentas a possíveis preconceitos ou a situações discriminatórias

“não aceitamos que uma mãe trate a outra com preconceito, ou alguma criança aqui. Como ela pode fazer isso tendo um filho especial?” (Antares, fragmento de entrevista), “Não permito que isso aconteça, não na minha frente” (Maia, Diário de Campo 1, abril, 2018).

A oferta de apoio instrumental ou emocional conformam a rede de solidariedade. O apoio emocional é limitado e resume-se a conversas e orientações quando uma mãe está passando por situação difícil, buscando contribuir na resolução, no entanto, consideramos útil e importante.

Eu sempre digo a ela: Maia, ergue a cabeça e vá em frente. Porque você não deseja ficar sem ela. Veja se você se vê sem ela? Tenho certeza que não quer isso. É necessário pensar positivo. (Adhara, Diário de Campo 2, março, 2018).

Ontem, fomos até a casa de [...]. Ela está com depressão, não quer sair da rede, nem comer. Fomos todas nós dizer para ela se levantar, que ela tem duas filhas, uma família. Deus vai ajudar! (Mérope, Diário de Campo 1, outubro, 2017).

Na fala de Mérope, é possível observar que o apoio vai além do espaço que dividem no EASE. Os vínculos e afeto construídos promove a instituição de uma família não consanguínea, mas fortalecida a partir das estruturas de solidárias e recíprocas.

De acordo com Araújo e Aiello (2013, p. 752), o “papel primordial das redes de apoio refere-se à proteção contra eventos estressantes, principalmente aqueles advindos de transições vitais, e ao alívio de estresse físico e mental”. Consideramos que as diversas atividades e eventos promovidos pelas mães, que, além de fortalecer os vínculos existentes, corroboram para amenizar as tensões e são fundamentais para a manutenção da saúde mental.

Além das trocas de informações, do cuidado dispensado, do apoio emocional prestado, é comum presenciar cafés da manhã colaborativos. A maioria das mulheres saem de suas casas cedo da manhã – algumas que vêm do interior do estado viajam horas para estar na instituição – e acabam por tomar café no EASE. Com a colaboração de cada uma, há sempre a troca de alimentos, sucos e café entre aquelas que estão na Sala das Mães.

Além disso, elas organizam eventos também colaborativos: dia das mulheres, das mães, festividades juninas, dia das crianças etc. Essa é uma forma de promoverem algum momento de descontração e diversão. Os eventos são organizados pelas próprias mulheres e rompem com a rotina, promovendo momentos de distração e leveza.

Chegando ao EASE já fui recebida com um ultimato. Você vem

para a nossa festa, né? Questiona Mérope com uma lista na

mão. Era uma lista longa: comidas, bebidas, contribuição em dinheiro ou presente para o sorteio. Era início de abril e estava sendo organizada a festa em alusão ao dia das mães. Houve, anteriormente, a festa do Natal, mas desta não participei de todo processo. O alvoroço era imenso. Antares e outra mãe estavam na organização, mas cada uma tinha um papel no processo. Havia quem iria confeccionar a cesta, organizar os presentes, trazer o bolo, a comida, decorar o espaço etc. A festa aconteceu em uma sala cedida pelo EASE. Havia cerca de 30 mulheres, algumas que eu via pela primeira vez. A mesa farta, muitos presentes e a decoração misturavam motivos natalinos e corações. Uma das turmas da escola Via Láctea prestou homenagem às mães. Alguns dos filhos estavam presentes e foi possível perceber a emoção das mães. Todas receberam uma lembrancinha, inclusive eu. Alcyone disse que esses momentos “são bons, porque são para elas, onde todas se reúnem já que não é possível todos os dias”. (Diário de Campo 1, maio, 2017).

As mães estavam com uma lista de presentes para o dia das crianças. Veja me falou que, como a escola não tinha como distribuir presentes, elas tiveram a ideia de pedir a contribuição de cada uma para que as crianças ganhassem alguma lembrancinha. Cada uma das mães iria pedir doações no comércio e quem pudesse contribuía com um valor em dinheiro ou com um brinquedo. (Diário de Campo 1, agosto, 2017). Na festa do Natal, participaram muitas mães. Como sempre a mesa estava farta. Houve sorteio de cestas natalinas e distribuição de presentes, tudo organizado pelas próprias mulheres. (Diário de Campo 1, dezembro, 2017).

Participamos de todos os eventos organizados pelas mulheres no período em que estivemos na instituição: dia das crianças, natal, páscoa, comemoração de aniversários, chá de beber e de casa nova, passeios em parque, praia. Todos realizados com a mesma dinâmica, sempre com a participação de todas, ou quase todas. Observou-se que, embora não sejam suficientes para promover um completo bem-estar psicológico àquelas mulheres, tais eventos propiciavam momentos de leveza, voltados para às

suas necessidades. Isso revela, ainda, estruturas solidárias e de reciprocidades que levam à formação padrão de sociabilidade e de costumes, perpassado por referências de solidariedade e apoio.

Os momentos citados sem dúvidas são importantes: “tem mães que nunca saem de casa porque os maridos não querem, esses passeios são bons porque elas podem ir. A gente conversa e troca informação. Deveria ter mais”, diz Alcyone (Diário de Campo 1, setembro, 2017). “Antes tinha mais passeios, sinto falta. Era muito bom para a gente e para as crianças”, comenta Mérope (Diário de Campo 1, março, 2018). Aqui revela que as mães compreendem que a instituição faz parte da sua rede de apoio, com a promoção de atividades que lhes permitem lazer e aprendizado.

Os depoimentos e observações citadas revelam que as nossas colaboradoras possuem uma rede social de apoio que vai além da família consanguínea. De acordo com Oliveira e Dessen (2012, p. 85), mulheres “que possuem uma rede social de apoio mais ampla, ou seja, formada por um número maior de contatos e interações diárias, têm acesso a uma maior assistência do que as mães com redes sociais menores”. Apesar de, majoritariamente, expressarem não contar de forma igualitária com os companheiros na responsabilidade dos afazeres domésticos e nos cuidados voltados aos/as filhas, nossas colaboradoras construíram uma rede tecida a partir das trocas de experiência se vivências enquanto esperam seus/as filhos na Sala das Mães.

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