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Considerações finais ± O serviço de medida socioeducativa na zona de fronteira da ilegalidade

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2011 (páginas 119-123)

Acompanhando o percurso desse trabalho, pudemos perceber que algumas das ³DGROHVFrQFLDV´ TXH KDELWDP QRVVD VRFLHGDGH FRQWLQXDP D VH FRQVWLWXLU FRPR produto de mecanismos tutelares e institucionalizantes. Tais agenciamentos acabam por reproduzir a histórica categoria discursiva e social do ³DGROHVFHQWHLQIUDWRU´

(VVDV ³DGROHVFrQFLDV´ HQTXDQWR SRSXODomR-foco de gestão governamental, constroem seus territórios de existência tendo que regular suas condutas e sua circulação em função dos modos como o Sistema de Justiça Juvenil governa os seus entornos. Nesse sentido, os adolescentes em conflito com a lei sentem os efeitos e consequências de intervenções que se sustentam em tensões e ambiguidades encontradas na legislação especial. As tensões entre tutela e proteção, entre punição e socioeducação vividas pelos adolescentes através de intervenções diversas (que vão GHVGH DV ³EDWLGDV SROLFLDLV´ j PHGLGD VRFLRHGXFDWLYD H DR H[WHUPtQLR  VmR DVVLP corporificadas em experiências subjetivas que se constituem na fronteira entre o exercício de direitos e deveres e as ilegalidades, aquelas objetivadas como ato infracional e aquelas que se configuram como violações de direito e violência de estado.

&RPR HVIRUoR GH GHILQLomR DTXL FRPSUHHQGHPRV ³IURQWHLUD QmR FRPR OLQKD definida, mas como faixa difusa na qual coexistem elementos de um e outro lado dos WHUULWyULRV TXH VHSDUD´ /RVLFHU  S   Podemos pensar que os territórios sócio-geográficos e culturais incluem zonas em que se operam diferentes modos de vida, distintas normatividades. Nesse sentido, nos referimos a zonas de fronteira para salientar tanto os territórios normativos, quanto o espaço de negociação e embate que reúne normatividades diversas. Por se constituir pelo contato entre territórios diversos, as negociações aí realizadas podem reforçar as separações entre esses territórios ou redefiní-los.

De que zonas de fronteira então podemos falar quando pensamos nas medidas socioeducativas? Ao longo do trabalho, pudemos desenvolver três formas de

compreensão de como o serviço de medida socioeducativa opera nas zonas de fronteira.

Um primeiro modo de compreensão refere-se à dimensão territorial de intervenção do serviço, que se aproxima de um sentido espacial, geopolítico. Segundo essa perspectiva, o serviço de medida socioeducativa localiza-se em uma área diferente da que os adolescentes residem e por isso demanda uma circulação dessa população entre áreas distintas. De áreas caracterizadas por alta vulnerabilidade e baixa garantia de direitos à áreas de baixa vulnerabilidade e alta garantia de direitos, os adolescentes, ao atravessar essa fronteira, se expõem a procedimentos de regulação e vigilância levados a cabo pela polícia e por instituições que, em seus agenciamentos, produzem efeitos de tutela e até mesmo de estigmatizações, favorecendo que o adolescente circunscreva-se a seus territórios.

O segundo sentido para compreender a noção de zona de fronteira aplicada ao serviço de medida socioeducativa discute as tensões entre o caráter penal e pedagógico, encontradas nos marcos legal-conceitual (ECA e SINASE) e prático de intervenção, problematizando os efeitos de tutela e proteção a que o serviço se propõe.

Uma terceira perspectiva problematiza o serviço de medida socioeducativa em meio aberto, considerando-o integrado a uma rede de instituições que fazem funcionar estratégias de gestão das ilegalidades. Suas intervenções incidem na zona de fronteira da ilegalidade, uma vez que toma para si a tarefa de normalizar condutas desviantes, consideradas anormais, ilegais e indesejadas.

Além dessas três perspectivas de compreensão da zona de fronteira relacionada ao serviço em sua constituição e a partir de suas intervenções, analisadas nos capítulos anteriores, podemos apontar para outro sentido, que aposta na potência do serviço de medida socioeducativa em meio aberto em tensionar os campos de força envolvidos na defesa de interesses das diferentes populações que compõem a sociedade.

Vale lembrar que, na gestão das ilegalidades, as condutas ilegais não são toleradas pelo Sistema de Justiça Juvenil em função de suas implicações serem

desfavoráveis aos interesses das populações beneficiadas política e economicamente por estas. Por outro lado, o serviço de medida socioeducativa em meio aberto configura-se como instituição pública, inclusive ligada à assistência social, e deveria, portanto, atuar em prol dos interesses dos adolescentes. Como oferecer resistência a esse jogo de interesses que orienta as governamentalidades voltadas à normalização dos adolescentes em conflito com a lei? Como criar uma zona de enfrentamento aos interesses que delimitam e sancionam as fronteiras das ilegalidades? Ou ainda, como produzir potência na defesa dos interesses da população atendida pelo serviço de medida socioeducativa em meio aberto?

Entendemos que o serviço se situará em uma zona de fronteira das ilegalidades se, junto aos adolescentes, chamar para si a tarefa coletiva de tensionar esta função hegemônica de defesa dos interesses políticos e econômicos que pairam sobre as definições das ilegalidades que protegem mais os bens e propriedades e menos os direitos. Para isso, torna-se necessário trazer os adolescentes e a comunidade para o serviço como parceiros na construção da medida socioeducativa e não como objeto de intervenção. Essa construção conjunta poderia fazer com que resistências individualizadas, caracterizadas por movimentos de recusas de um ou outro adolescente em se submeter aos propósitos normalizadores da medida socioeducativa, se potencializasse em coletivos de pensamentos e ações, tensionando assim a zona de fronteira das ilegalidades.

Para Duschatzky (2008), analisando a instituição escolar, a autora entende que a relação de uma instituição com as comunidades à sua volta e com o público atendido deve acolher suas perspectivas, seus saberes, suas experiências. A instituição deve compreender que, aos olhos da comunidade e dos sujeitos, suas intervenções podem parecer desconectadas de sua vida cotidiana, a menos que passem a compartilhar seus sentidos. Em suas palavras:

(OµRXWURODGR¶GHVGHHOSXQWRGHYLVWDGel pensamiento moderno es la cultura de la periferia, la del sentido común, la de los saberes H[SHULHQFLDOHVODGHODSUR[HPLDODµQRDXWRUL]DGD¶3HURSDUDORV VHFWRUHV GHO PDUJHQ HO µRXWUR ODGR¶ VRQ WRGRV HVRV OHQJXDMHV \ soportes que no participan de su cotidianeidad pero si de um imaginario com el que quisieran fundirse (Duschatzky, 1999, p. 77).

Coadunamos com a perspectiva foucaultiana de que as relações de poder acionam, necessariamente, certa forma de liberdade. Considerar que não se pode HVWDU³IRUDGRSRGHU´QmRTXHUGL]HUTXHVHHVWiGHWRGDIRUPD³FDSWXUDGR´RXTXH VHMDR³DOYRLQHUWHHFRQVHQWLGRGRSRGHU´Nas relações de poder, as possibilidades de resistências podem aparecer nas formas de fuga, de estratégias de negociação etc., produzindo efeitos de abrandamento ou de efeitos mais potentes que chegam a desestabilizar as relações de dominação. Nos interessa aqui pensar em estratégias que potencializem tanto as resistências dos sujeitos em relação a seu próprio corpo (enfrentando os mecanismos disciplinares), quanto as resistências frente aos mecanismos de regulação das populações e normalizações biopolíticas.

Os adolescentes que conhecemos a partir dessa pesquisa, de algum modo, ofereceram resistência a alguns agenciamentos normalizadores, produzindo micro- tensões nas fronteiras da ilegalidade. Essas resistências individuais, contudo, parecem não conseguir desequilibrar as relações de poder em que estão envolvidos. O serviço de medida socioeducativa pode fazer funcionar sua posição estratégica a favor de um agenciamento de coletivização que reúna as perspectivas de técnicos, adolescentes e comunidades. Desse modo, suas resistências estariam investidas por coletivos fundamentados em agenciamentos libertários de recursos do território. Operaria assim como fronteira na sua dimensão reticular e difusa (Losicer, 2009) de forma a impedir a multiplicação de medidas que ampliem a rede penal e propor, onde for possível, uma alternativa social, sanitária ou educativa (Wacquant, 2008, p. 104), ampliando as conexões entre as muitas zonas de um território e alargando, assim, o sentido da proteção.

No documento MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL SÃO PAULO 2011 (páginas 119-123)