Do exposto até aqui, tem-se que o ser humano é um ser complexo que surge a partir da concepção, quando há a fecundação do óvulo pelo espermatozóide. Não obstante a divergência doutrinária e jurisprudencial sobre se o nascituro é ou não pessoa, não há como negar-lhe a condição de ser humano, pois outra coisa não poderia surgir da união de um gameta humano feminino com outro masculino.
Sendo humano, o nascituro possui dignidade, atributo inerente a todo homem (em sentido lato, englobando todos os sexos), a qual não pode ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada). A dignidade existe em cada homem como algo que lhe é intrínseco, devendo ser respeitada, promovida e protegida.
A dignidade, elevada pela nossa Constituição Federal de 1988 a princípio fundamental da República Federativa do Brasil, confere ao nascituro direitos a serem preservados e, de todos esse direitos, o mais importante é, sem dúvida, o direito à vida.
Desta forma, ainda que não lhe seja atribuída personalidade, já que este é um conceito jurídico e depende da política legislativa de cada ordenamento, não se deve chegar à conclusão de que o nascituro não possui direitos a serem resguardados. Como se viu, a doutrina mais moderna entende que o concebido, embora não possua personalidade jurídica plena, pois esta, na maioria dos sistemas jurídicos, só é adquirida com o nascimento com vida, é detentor de uma personalidade jurídica parcial, que lhe confere a titularidade de direitos da personalidade. Há uma personalidade jurídica pré-natal.
A sua condição de ser humano, de nascituro, lhe traz dignidade a ser tutelada e uma proteção jurídica civil-constitucional. É titular de direitos, o que lhe revela uma personalidade, ainda que mitigada. Ainda que com uma personalidade parcial, é merecedor de proteção quanto a possui o já nascido.
Não se venha dizer que, só porque ainda não nascido, o nascituro é menos humano do que aquele que já foi dado à luz. A humanidade é uma só e a dignidade
também, posto que a diferença entre um e outro é apenas o estágio de formação. Do contrário uma criança seria menos merecedora de proteção do que um adulto, raciocínio este absurdo.
Quanto ao anencéfalo, o raciocínio segue sem retoques. Da mesma forma que o embrião sadio (aquele que não é portador de citada anormalidade), o anencéfalo também é ser humano, pelos idênticos fundamentos acima citados, merecendo semelhante proteção, já que também possui dignidade.
Para ser pessoa no ordenamento pátrio basta nascer com vida. Não se exige a viabilidade de existência como faz o ordenamento espanhol. Mesmo o anencéfalo ao nascer, ainda que viva num curto espaço de tempo, é pessoa. O exemplo citado no trabalho sobre a criança anencéfala – Marcela de Jesus, subverte as afirmações corriqueiras da medicina quanto à vida diminuta do anencéfalo. Esta criança completará um ano de vida no próximo dia vinte.
Independentemente da qualidade ou autonomia que a sua vida possa ter, existe vida, existe uma pessoa, que outrora foi nascituro, tem dignidade. Assim, goza de direitos fundamentais e dos direitos de personalidade. Concluo, para finalizar, pela oposição ao aborto do feto anencéfalo. In dubio, pró-vida.
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Parecer do procurador de justiça do Rio Grande do Sul, Dr. Sérgio Guimarães Britto, contrário ao abortamento de uma criança anencéfala.
4 TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4.1.1.1.1 1ª CÂMARA CRIMINAL
ORIGEM: SANTA MARIA
APELAÇÃO CRIME Nº 70.021.944.020
APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO
APELADA: S. D. V.
4.1.1.1.2 RELATOR: DES. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE
OLIVEIRA
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1.
S. D. V., através de seus advogados, requereu autorização judicial para interrupção de gravidez na 1a Vara Criminal da comarca de Santa Maria, alegando que o feto tem anencefalia e que “é desumano permitir que uma mulher tenha que aguardar cinco meses gerando um feto que nascerá morto, ou viverá alguns minutos, talvez uma hora na melhor das hipóteses”.O Dr. Promotor de Justiça manifestou-se pelo indeferimento do pedido (fls. 20 a 22).
O Dr. Juiz de Direito julgou procedente o pedido (fls. 23 a 28).
Houve apelação do Parquet (fl. 29), tendo o Magistrado recebido a irresignação e concedido efeito suspensivo pelo prazo de 30 dias (fls. 30 a 31).
Foram apresentadas razões pelo Dr. Promotor de Justiça (fls. 32 a 36) e contra-razões pela defesa técnica (fls. 40 a 50).
2. O decisório deve ser reformado, pois carece de fomento jurídico e autoriza, na verdade, o assassínio de uma vida humana, função que não cabe ao Poder Judiciário num Estado Democrático de Direito.
Todavia, em razão do tema ser melindroso e com várias nuanças jurídicas, filosóficas, científicas e espirituais, não cabe analisá-lo perfunctoriamente e numa singela visão maniqueísta.
Em primeiro lugar, é preciso dizer com toda a ênfase, que o nosso sistema jurídico não contempla a autorização do aborto eugenésico, que é o caso dos autos.
Com efeito, o Código Penal trata apenas do aborto necessário, também chamado de terapêutico, e do sentimental (art. 128 do Estatuto Repressivo).
Conseqüentemente, com a devida vênia dos que pensam o contrário, “a autorização para a realização do aborto eugenésico, fundamentado na anencefalia do feto, não é contemplada pelo direito infraconstitucional como uma das hipóteses de aborto legal, razão pela qual seu deferimento resultaria em afronta à Lei Maior” (2a Câmara Criminal do TJSP, in REVISTA DOS TRIBUNAIS, 806/540).
Decidir em contrário colocaria o Poder Judiciário na condição de fixar juízo de natureza normativa, substituindo indevidamente os Poderes Legislativo e Executivo.
Nessa linha, o Código Penal já sofreu diversas modificações ao longo dos tempos, mas o legislador nacional não se aventurou a tocar na questão ora em foco apesar dos avanços radiológicos e clínicos que permitem descobrir doenças do feto, pelo receio de se chegar a uma idéia de raça eugênica ou de corpos perfeitos.
Não é anacronismo, mas simplesmente o conceito de que há que se evitar a padronização de corpos.
No final do século XX, várias crianças nasceram com deformações terríveis causadas pela ingestão pelas mães de um remédio chamado Talidomida, algumas sem braços, outras sem pernas, e ainda várias com problemas em todos os membros, mas chegaram à idade adulta e até constituíram famílias. Será que aquelas mães, se pudessem visualizar o estado dos fetos dentro do útero, teriam a fortaleza moral de querer continuar com a gravidez?
Vivemos numa época em que todos querem utilizar atalhos em suas vidas, sem se darem conta que os desafios e os problemas fazem parte da nossa missão terrena, para que consigamos evoluir como espíritos.
O ego predomina, a busca pelo prazer e pelo sucesso não tem limites, e nesse rumo, tudo é transitório e fugaz, inexistindo cuidado com as repercussões futuras dos atos no presente.
Assim, vem o conceito de que pode o anencéfalo, mesmo que vivo e humano, ser descartado antes do nascimento como um objeto, simplesmente porque vai viver pouco, dar trabalho e gerar custos, sem poucos benefícios.
É quase um jogo de azar: o feto gerado só merece cuidados e atenção se for perfeito, tiver saúde, e perspectiva de vida duradoura.
Se isso não é eugenia, o que é?
O fato de que a anencefalia seria fatal em 100% dos casos não deve ser o fator que permite o desencadeamento da interrupção da gravidez.
O importante, como destacado em estudo estatístico citado na fl. 31 dos autos da AC n° 70012840971, é que entre 40 e 60% nascem vivos, somente 8% sobrevive mais de 1 semana, e os restantes entre 1 e 3 meses.
Como tratarei adiante, há no Brasil uma criança que irá completar em novembro de 2007 um ano de vida.
Apesar do defeito congênito, portanto, o anencéfalo é um ser humano que está a pulsar dentro do corpo da mãe e que pode viver minutos, horas, dias, meses ou até anos.
Segundo o Comitê de Bioética da Presidência do Conselho de Ministros da República da Itália, em relatório aprovado em 21/06/96, foi observado um caso de sobrevivência de até 14 meses “e dois casos de sobrevivência de 7 a 10 meses, sem
recorrer à respiração mecânica” (“Il neonato anencefalico e la donazioni di organi”, p. 9, in www.providaanapolis.org.br/cnbport.htm e www.providafamilia.org.br).
Como então deferir o aborto, se o Código Civil, no seu art. 2o, rege que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”?
PONTES DE MIRANDA tem lapidar lição a respeito da questão: “quando o nascimento se consuma, a personalidade começa. Não é preciso que se haja cortado o cordão umbilical; basta que a criança haja terminado de nascer (sair da mãe) com vida. A viabilidade, isto é, a aptidão a continuar a viver, não é de exigir-se. Se a ciência médica responde que nasceu vivo, porém seria impossível viver mais tempo, foi pessoa, no curto prazo em que viveu. O Código Civil desconhece monstros, monstra. Quem nasce de mulher é ser humano. Não cogita do hermafrodita, no tocante à personalidade (C. Crome, System, I, 206)” (“Tratado de Direito Privado”, RJ, Ed. Borsoi, 1954, Parte Geral, Tomo I, § 5o, n° 4, p. 163).
Em diferente sentido, o Prof. Dr. JOSÉ ROQUE JUNGES (in “Dicionário de Filosofia do Direito”, Ed. Unisinos, pp. 19-23, verbete Aborto) acentua o valor ético da discussão a respeito do aborto, tendo como norte o princípio da dignidade da pessoa humana. Suas precisas considerações dizem respeito ao aborto de forma geral, mas se adeqüam com precisão à discussão em testilha:
“O jurista italiano D´Agostino propõe o paradigma relacional como ponto de partida e vê o Direito como um sistema objetivo de defesa das expectativas irrenunciáveis da pessoa humana em sua realidade de sujeito em relação. Para esse paradigma é juridicamente ilícita toda modalidade de relação que altere a simetria da reciprocidade, dando a um elo da relação poderes e privilégios indevidos que não sejam reconhecidos à outra parte. Assim, existe um critério específico para definir a justiça como eqüidade. Assumindo o paradigma relacional, o aborto aparece sob uma nova luz, porque se deixa de acentuar os direitos de um ou outro pólo (feto e mulher) da relação, mas entender os pólos da relação. Desta forma, a autonomia de um dos pólos é completada e corrigida pela responsabilidade frente ao outro pólo.
Mas alguém poderia dizer que não existe uma relação estabelecida com o embrião. Aqui é necessário introduzir a questão do estatuto do embrião. Como mostra muito bem Bourguet, essa questão desdobra-se em duas, uma que deve ser respondida pela biologia e a outra pela ética: o embrião é um indivíduo biológico
da espécie humana?; se ele é um indivíduo, então se coloca a segunda pergunta: ele merece o respeito devido a uma pessoa humana?
Para Bourguet, as tentativas de negar a individualidade biológica do
embrião são discutíveis, porque tentam aplicar à realidade embrionária os critérios da individualidade adulta e porque usam parâmetros morfológicos ultrapassados para definir a individualidade diante dos avanços da genética. A individualidade não se funda na operação do observador.
Isso seria reduzir a individualidade a uma estrutura dada e fixa ou a uma aparência definida. Essa é uma concepção fixista da individualidade que reconhece a identidade com os sinais. A identidade é fruto de uma autoconstrução que é necessário apreender, não se fixando nos sinais externos de alguns dos estados sucessivos do desenvolvimento embrionário. Hoje não se pode mais definir a
individualidade por critérios morfológicos como faziam os antigos, que avaliavam a identidade do embrião comparando-o com as formas humanas adultas. A partir dos avanços da genética, a individualidade biológica é definida pela individualidade do genoma. Bourguet desconstrói essa objeção, mostrando que a
individualidade do embrião inicial não desaparece, porque a divisão não acontece como na meiose das células germinativas, mas algumas células do aglomerado inicial que são totipotentes desprendem-se, formando um novo ser. A primeira individualidade permanece, surgindo no decorrer do desenvolvimento embrionário uma segunda individualidade possibilitada pela totipotência das células iniciais.
Uma vez definida a individualidade biológica do embrião, Bourguet pergunta se ele merece o respeito que se deve a uma pessoa. Não se trata de uma pergunta ontológica se o embrião é ou não pessoa humana, mas de uma questão ética, isto é, se é aplicável a ele a categoria moral de respeito que se identifica, a partir de Kant, com a categoria moral de pessoa. Portanto, a questão não é
ontológica, mas ética. Bourguet fundamentará sua argumentação principalmente
em Levinas e Kant.
A personalidade do embrião pode ser definida a partir de regras coletivas (ordem jurídica/leis políticas) ou na perspectiva do agente moral (ordem ética). A dificuldade da primeira é que o embrião não é um alter ego participante do contrato social que eu possa experimentar como espelho de mim mesmo. Não existe simetria, mas assimetria. Nesse sentido, o enfoque adequado para compreender o estatuto do embrião não é tanto jurídico, mas ético, sendo, por isso, necessário compreender-se nessa definição como um agente moral em relação a ele. Em outras palavras, trata-se de assumir o paradigma relacional como ponto de partida e modo de compreensão do estatuto do embrião.
Para Levinas, só o primado da ética pode captar o outro enquanto tal. Acolher o outro como outro é despossuir o ego do poder de pôr condições ou de tentar definir o outro. O outro só pode estar presente da suspensão da economia do interesse próprio, pois o outro não é, no fundo, um outro eu, no sentido de uma pura representação de mim. A ética parte dessa assimetria inicial que precede a
simetria que o Direito assume. A ética adia a representação do outro, porque o objeto representado é uma obra do pensamento.
Para Kant, a humanidade é o critério que tem a evidência da objetividade da natureza para garantir a moralidade do respeito. Assim o respeito à dignidade humana, coextensivo a todo aquele que é humano, torna-se um imperativo categórico, isto é, incondicional, não sendo permitido impor condições para o respeito a todo aquele que faz parte da humanidade, então não é permitido impor condições de humanidade para respeitar o embrião.
Essa argumentação filosófica fundada em Kant e Levinas mostra que o
posicionamento diante do embrião e em relação ao aborto não é uma questão de dogmas religiosos ou de sacralidade ou não da vida humana, como pensa Mori e outros, mas de pressupostos filosóficos e antropológicos. Por isso, um cientista
como Testard, que não parte de uma mentalidade religiosa, pode afirmar: Eu sou ateu e não creio que o embrião seja sagrado, mas para mim, ele merece respeito e não pode ser considerado como um material à imagem dum embrião de rato ( La Vie , nº 3072/15 julliet 2004, p. 24)”(grifei).
Não se pode exigir, pois, a forma humana perfeita como requisito da personalidade civil.
CLÓVIS BEVILÁQUA aponta que “há monstros e aleijões viáveis, como há formas teratológicas inadequadas à vida. O direito romano recusava a capacidade jurídica aos que ‘contra formam humani generis, converso more, procreantur’(D. 1, 5, fr. 14). Mas essa doutrina deve ser afastada. É humano todo ser, que é dado à luz por mulher, e como tal, para os efeitos do Direito, é homem” (“Código Civil dos Estados do Brasil