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3 A EUGENIA E O ABORTO DO FETO ANENCÉFALO

3.2 O aborto

A etimologia da palavra aborto é latina, ab-ortus, sendo que o prefixo ab significa impedir, privar, e ortus ou orior, nascer, nascimento, o que transmite a idéia de privação do nascimento. Assim, a prática do aborto pode ser definida, resumidamente, como a interrupção da gravidez, com a morte do produto da concepção.

Segundo William Pussi (2007, pág. 239), tecnicamente o mais correto seria a utilização do termo abortamento, pois o aborto seria de fato o produto do ato do abortamento.

O aborto pode ser espontâneo, ocorrendo normalmente nos primeiros dias ou semanas da gravidez, ou provocado, quando é causado por um agente externo. Em ambos os casos ele tem dois pressupostos: a interrupção da gravidez e a morte do feto, que poderá ocorrer no interior do ventre materno ou depois da sua expulsão. Em alguns casos o concepto não é expulso, ocorrendo o fenômeno da maceração ou mumificação do feto.

3.2.1 O aborto na história da humanidade

Na história da humanidade, em determinadas épocas e países, quem praticava o aborto era rigorosamente castigado e, às vezes, até punido com a pena de morte. Mas sabe- se que, em sua maioria, o aborto era difundido entre os povos da Antigüidade.

Na Grécia Antiga, o aborto era muito freqüente, sobretudo entre as meretrizes. Era preconizado por Aristóteles para limitar eficazmente os nascimentos e manter as populações das cidades gregas estáveis. Ele defendia que a alma só era implantada no feto masculino após quarenta dias da concepção e no feto feminino após oitenta. Segundo essa teoria, chamada epigenética, a alma do ser humano passava por dois períodos de formação, sendo a primeira nutritiva ou sensitiva (antes dos 40 ou 80 dias) e a segunda intelectiva (após esses períodos). Também era praticado por motivos eugênicos, para as mulheres acima dos quarenta anos e para preservar a pureza da raça dos guerreiros.

Para os romanos, a princípio, o aborto não era crime, mas tinha que estar sujeito ao consentimento do paterfamilia, o poder absoluto do homem sobre sua mulher, filhos e escravos. Esse entendimento sofria influência dos jurisconsultos, os quais, a exemplo de Papiniano, pregavam que a alma tomava o corpo com a primeira respiração. Assim, o feto durante a gestação não pertencia à humanidade. No entanto, dependendo da época, o ato de abortar era interpretado sob diferente óptica. Quando a taxa de natalidade era alta, como ocorria nos primeiros anos da República, era bem tolerado, mas com o declínio da taxa de natalidade, a partir do Império, a legislação passou a ser mais severa, caracterizando-o como crime praticado contra a segurança do Estado. Com o tempo começaram a surgir pensadores contrários ao aborto.

O Código de Hamurabi (2285-2242 a.C.), criado pelo rei da Babilônia, previa o delito de aborto praticado por terceiro, o qual era punido, em regra, com uma pena pecuniária, no caso de morte apenas do feto. Havendo morte da gestante, diz o Código que se matará o filho do agressor. A quantidade da pena também variava conforme a classe social da grávida. Assim, se a mulher fosse nobre, a indenização seria no valor de 5 sicles de prata, mas, se fosse serva, seriam-lhe devidos apenas 2 sicles. No caso de morte da

primeira, o agressor deveria pagar meia mina de prata, enquanto que, morrendo a segunda, a conta seria de um terço de mina de prata.

O primeiro registro documental sobre técnicas de aborto e anticoncepção foi encontrado entre os egípcios, a partir de 1.850 a.C. As receitas indicavam a utilização de uma mistura feita de mel, carbonato de sódio ou seiva de árvores e fezes de crocodilo, que era aplicada na vagina para provocar o aborto. Em 1.550 a.C. também há registro da utilização de uma substância a base de mel e broto de acácia para o mesmo fim. Cientistas contemporâneos descobriram inclusive que algumas das substâncias anticoncepcionais usadas nessa época fazem parte de medicamentos contraceptivos da atualidade.

Com o advento do cristianismo, iniciou-se o combate à tese dos juristas de Roma. Os grandes escritores da igreja desse tempo entendiam que o feto não era uma simples parte do corpo da mulher, mas sim um ser dotado de alma e que a interrupção dessa vida seria sempre considerada homicídio. O feto passou a ser considerado um ser de vida autônoma, trazendo um novo enfoque à sua natureza, o qual não poderia ser considerado um prolongamento das vísceras maternas. Com base nesse fundamento, a Igreja não aprovava a prática do aborto. Sofrendo influências do catolicismo, com o passar do tempo, o próprio Império Romano equiparou o crime de aborto ao de homicídio.

A partir de 450 d.C., o cristianismo passou a enquadrar o aborto e a contracepção entre os pecados de lascívia e contra a união matrimonial, pois geralmente eram adotados para encobrir o adultério e as práticas libidinosas, ambos condenados pela doutrina cristã. Também nesse sentido, o aborto era visto como indo de encontro aos ideais do sacramento do casamento, que tem como objetivo a perpetuação da espécie humana. Esse pensamento permanece até os dias de hoje e continua bastante arraigado no seio de boa parte da população mundial, tendo um peso considerável na argumentação daqueles que condenam a prática do aborto.

Santo Agostinho, seguido tempos depois por São Tomás de Aquino, era um dos seguidores da teoria aristotélica da animação retardada, distinguindo feto animado, que já possuía alma, de feto inanimado (antes dos 40 ou 80 dias após a concepção). De acordo com a Constitutio Bamberguensis de 1507 e a Constutio Criminalis Carolina de 1532, no

caso do abortamento do feto inanimado, a pena era pecuniária, enquanto que no do animado, aplicava-se a pena capital, mesma pena aplicada ao homicídio. Foi neste momento que o aborto surgiu como crime (DINIZ, 2006, pág. 36).

Entre os séculos XVII e XVIII, surgiu a tese do preformismo, baseada na defesa da existência da vida a partir do sêmen, privilegiando a animação imediata. A teoria da epigênese, por seu turno, era o contrário do preformismo, na medida em que se fundamentava na animação retardada baseada no gradual desenvolvimento do organismo humano. Também fundamentada na animação retardada, surgiu a lei biogenética, segundo a qual o organismo humano percorre as fases de réptil, peixe, ave e mamífero, sucessivamente, até chegar à fase humana, pois o desenvolvimento humano se equipararia ao desenvolvimento das espécies. A enciclopédia médica italiana ainda a previa em 1953, declarando que o embrião, até a oitava semana de gestação, não deveria ser considerado da espécie humana.

No século XIX, a prática do aborto cresceu de forma considerável entre as classes mais populares, por causa do êxodo do campo para a cidade e por motivos de adversas condições em que essas pessoas viviam. Para a classe dominante o abortamento representava um decréscimo na oferta de mão-de-obra barata, vital para a expansão das indústrias.

Havia, ainda, no século XIX um atenuante para quem praticasse algum delito. As penas mais severas se abrandavam, deixando de ser aplicadas penas capitais e passando a serem infligidas penas privativas de liberdade.

No século XX, a partir dos anos sessenta, por causa da evolução dos costumes sexuais, a mulher passou a desempenhar uma nova posição na sociedade e por conta disso a tendência foi uma crescente liberação do aborto. A partir da década de setenta, os países já apresentavam leis mais liberais.

Na atualidade, poucas são as legislações que admitem a prática do aborto consentido e procurado pela gestante. A maioria dos países, como o Brasil, acolhe apenas

uma descriminação parcial do aborto, tornando-o legal somente quando realizado em específicas e determinadas circunstâncias.

3.2.2 O aborto no nosso ordenamento jurídico

O Código Penal Brasileiro classifica o aborto, como anteriormente já comentado, entre os delitos contra a vida (arts. 124 a 129), inserindo-os no título I – Dos Crimes contra a Pessoa. De acordo com este diploma legal, são tipificadas as seguintes modalidades criminosas de aborto:

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

Parágrafo único - Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém à morte.

Pela leitura dos artigos, constatamos que o nosso código penal incrimina o aborto quer se trate de auto-aborto, quer se trate de aborto praticado por terceiro, quer o consinta ou não a mulher grávida.

O artigo 124 trata do auto-aborto. Nele podemos encontrar duas figuras típicas: provocar aborto em si mesma e consentir que outrem lhe provoque. No primeiro tipo a gestante tira a vida do feto. No segundo, a gestante consente que terceiro lhe provoque o aborto.

O artigo 125 refere-se ao aborto sofrido ou provocado por terceiro sem o consentimento da gestante, desde que este seja conhecedor de sua gravidez. Caracterizar- se-á também o aborto sofrido, se praticado em gestante menor de 14 anos ou portadora de desenvolvimento mental retardado ou incompleto. Provocado, no entanto, por uma terceira

pessoa com o consentimento da gestante, o Código Penal tipifica como aborto consensual, conforme especifica em seu artigo 126.

No caso do artigo 127, as penas do referido crime provocado com ou sem o consentimento da gestante são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do fato ou dos meios utilizados, a gestante sofrer lesão corporal grave. E são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe ocorrer a morte, tratando-se nesse caso de aborto qualificado.

Já o artigo 128 do Código Penal trata dos dois casos em que o legislador excluiu a antijuridicidade do delito do aborto: para salvar a vida da gestante quando não houver outro recurso disponível e para interromper a gravidez que resultar de estupro. Assim dispõe este artigo:

Art. 128 — Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. O inciso I trata do aborto terapêutico, por representar verdadeiro tratamento, ou aborto necessário, por se tratar de extrema necessidade, ou seja, a intervenção do médico torna-se imprescindível e inadiável para que a vida da gestante esteja a salvo. São dois os requisitos do aborto terapêutico ou necessário: que a gestante esteja correndo perigo de vida (e não só de saúde) e que não exista outro meio para salvá-la.

O inciso II trata do aborto sentimental e visa preservar a honra subjetiva e o estado psicológico da mulher violentada, poupando-a de carregar no ventre o produto de um crime.Vale ressaltar que a lei não exige autorização judicial para a prática do aborto sentimental, ficando a intervenção a critério do médico.

Todavia, apesar de o vigente Código Penal, promulgado em 1940, admitir a realização do aborto em determinados casos, Yves Gandra da Silva Martins (ver citação abaixo) entende que o art. 128 do Código Penal não foi recepcionado pela Constituição de 1988, pois esta nova ordem Constitucional passou a assegurar, sem nenhuma ressalva e como direito fundamental, o direito à vida.

O que pretendo deixar claro é que não há mais aborto legal no País. A lei penal, que permitia o aborto em duas hipóteses (estupro e perigo de vida para a mãe), não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Com efeito, a Lei Suprema anterior não protegia o próprio direito à vida. Determinava que apenas os “direitos concernentes à vida” deveriam ser garantidos pelo Estado, admitindo, portanto, exceções. O texto atual não oferta equívocos. O próprio “direito à vida é que está assegurado, de tal maneira que os chamados abortos legais deixaram de ser legais por serem “inconstitucionais”, visto que implicam “pena de morte” para um ser humano, e o direito à vida de todos os seres humanos está garantido pela Constituição (apud PUSSI, 2007, pág. 254).

Segundo Kelsen, uma norma hierarquicamente inferior não pode contrariar uma norma superior. Desta forma, ao ser promulgada a Constituição Federal de 1988, o delito de aborto não poderia contemplar excludentes de ilicitude, posto que totalmente em desacordo com os novos preceitos constitucionais.

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