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Magic's just science that we don't understand yet

Arthur C. Clark

Durante a elaboração desta tese, almejei evitar uma abordagem que ignora os “atravessamentos da vida social pelo poder, pautando-se na crença de uma racionalidade a-histórica, que levariam ao progresso e desenvolvimento” (MOITA LOPES, 2006, p.24). Por essa razão, o capítulo 1 abordou o surgimento e algumas formas de circulação de discursos que adotam posições extremistas, como a utópica e a distópica, para explicar a relação entre tecnologia e sociedade. Uma vez que não nos encontramos em um “vácuo social” (MOITA LOPES, 2006, p.25), somos afetados - em maior ou menor grau - por esse cenário resultante do desenvolvimento da ciência e da tecnologia constituído por visões tão opostas sobre os benefícios ou malefícios que poderão, um dia, existir. Esses discursos precisam ser revistos, por exemplo, no processo de construção de metodologias e políticas de ensino e de incentivo à leitura.

Ao reconhecermos que não somos imunes ao contexto social em que fomos formados e cientes dos discursos que circulam, estamos potencialmente mais preparados para ver de forma crítica o nosso posicionamento como alunos, educadores e pesquisadores face ao contexto social, político e econômico no qual estamos inseridos. Fomentar essa criticidade no que diz respeito à forma como nos relacionamos com as tecnologias, defendendo uma posição mais dialética, foi o principal objetivo do primeiro capítulo.

Demonstrar resistência (ou receios) frente a inovações tecnológicas, no entanto, não é uma exclusividade dos tempos atuais, como buscamos mostrar no capítulo 2 ao relembrarmos as mudanças ocorridas nas formas de expressão da comunicação humana dentro de um contexto histórico. A desconfiança que, hoje, algumas tecnologias de comunicação e informação enfrentam - por exemplo, quando se é levantada a ideia de as utilizarmos como ferramentas pedagógicas em um contexto escolar - já esteve presente em outros momentos históricos (e

não apenas no campo educacional). É curioso lembrar que as máquinas de escrever - que já foram novidade no início do século XX e depois se popularizaram - enfrentaram um começo árduo e esses equipamentos eram muito difíceis de serem vendidos devido à resistência que as pessoas tinham em mudar a forma como escreviam, como aponta a pesquisa de Palma (2011).

Nessa trajetória histórica, dentre as alterações observadas na maneira como as informações e o conhecimento são veiculados, estão o surgimento do hiperlink, da hipermídia e da hipermodalidade. Esses desenvolvimentos e a popularização de seu uso propiciaram a criação de novas formas textuais que exploram os recursos expressivos das mídias digitais e fazem com que essas produções se tornem cada vez mais presentes em práticas cotidianas graças ao barateamento dos computadores e de diferentes mídias digitais, do acesso à internet, bem como aos softwares. As produções resultantes dessa apropriação por parte de indivíduos comuns - e não apenas de grandes corporações - geraram a necessidade de repensarmos como lemos e interpretamos textos:

devem ser desenvolvidas novas construções interpretativas para a linguagem, na qual a imagem ganha destaque na comunicação, que as interações da mente em rede devem ser promovidas pela educação escolar e universitária, contribuindo para a epistemologia de performance esperada dos participantes de uma sociedade em rede, constatação que, então, conduz à revisão e mudanças na educação no que concerne aos letramentos (MONTE MOR 2007 p.43). Um dos motivos para uma nova demanda interpretativa reside na convergência vista de diferentes meios, linguagens e técnicas para o meio digital. Porém, a “convergência propiciada pela digitalização não significa que não existiam hibridismos antes da virada para as mídias digitais” (SANTAELLA, 2003, p. 146), como foi debatido no capítulo 2, tendo como referência as produções das histórias em quadrinhos, considerada por Garcia Canclini (2008) um exemplo de gênero impuro. Como observou Grau (2007, p.18), em cada época de nossa história, “esforços extraordinários foram reunidos para produzir o máximo de ilusão

com os meios técnicos disponíveis”, esforços esses que geraram o trompe l’oil, a fotografia, o cinema e, mais recentemente, a realidade virtual e a realidade aumentada.

A convergência de mídias, técnicas e linguagens também potencializou o surgimento de híbridos, que não devem ser entendidos através de um processo de homogeneização, nem como acúmulo (GABRIELLI, 2009), muito menos como algo novo, como também discutido no capítulo 2. A adoção da definição proposta por Garcia Canclini, que rompe com a ideia de pureza e abraça o multicultural, foi a que melhor nos fez compreender como olhar para as expressões ciberculturais, como é o caso da ciberliteratura.

A discussão proposta no capítulo 3 buscou trazer para primeiro plano a polêmica que tem sido criada em torno do que consideramos literatura. Esse debate atravessou séculos e ganhou força nos últimos anos graças às produções denominadas ciberliteratura. Uma vez que concepções tradicionais do que pode ou não ser considerado literatura muitas vezes não conseguem dar conta de produções textuais impressas, não é de se espantar que essa dificuldade seja multiplicada ao tentarmos aplicar tais definições a textos digitais. Os conceitos de remidiação e de hibridização auxiliam-nos a entender que esses novos textos não podem ser analisados a partir de teorias estanques forjadas em uma época na qual questões como imersão e interação, embora existissem, apresentavam um alcance conceitual aquém do demandado atualmente. Isso fica bem evidente quando descrevemos as produções literárias que são expressas através da realidade virtual ou da realidade aumentada.

Observamos também a presença cada vez maior de elementos lúdicos nas produções ciberliterárias. Essa constatação não deveria causar surpresa, pois para “mitigar, esquecer, sublinhar o peso (a angústia) da existência humana, e superar o medo do desconhecido (da morte), em todos os tempos, as civilizações fantasiam, jogam, sonham e produzem arte” (SANT’AGOSTINO, 2009, p.620). A ludicidade apresentada em muitas produções ciberliterárias é um componente que dificulta, em algumas situações, a sua compreensão como literatura, pois a

estrutura adotada para se narrar a história se aproxima, muitas vezes, da estrutura apresentada por jogos de videogame e computador.

A apresentação geral do cenário atual das produções ciberliterárias feita no capítulo 3 possibilitou que observássemos os recursos expressivos que se encontram disponíveis através de tecnologias de informação e comunicação contemporâneas. Essa apresentação fomentou a análise, realizada no capítulo 4, do material produzido pelo projeto We tell stories da unidade inglesa da editora Penguin. A análise buscou exemplificar que

Assim como as 26 letras do alfabeto não fariam supor a diversidade de textos existentes em nossa história da escrita, o par “0” e “1” não faz supor a diversidade de fenômenos possíveis na cultura digital, pois a linguagem digital não é o código binário, mas sim seu fluxo, movimento triádico e instável: “0” e “1” e “entre”. Tendo em vista essa instabilidade fluida da linguagem digital, é possível argumentar que, como consequência, também a escrita digital é mais fluida e instável (BASTOS, 2009, p.198).

Em outras palavras, a tecnologia propicia condições para a elaboração de textos como os do projeto da editora Penguin, embora não determinem, por exemplo, a criatividade presente - ou não - no processo de criação. Tal análise, embora baseada em um corpus restrito, atrelada às reflexões teóricas dos capítulos 1 e 2, juntamente com o que foi apresentado nos capítulo 2 e 3, forneceu informações relevantes para indicar algumas habilidades e atitudes leitoras necessárias para a formação de um leitor capaz de construir sentidos ao navegar por textos que se estruturam e se expressam de modo inovador.

Como visto nos capítulos 3 e 4, o surgimento de formas de contar história como as narrativas transmídia e as histórias de realidade alternada ou aumentada exigem um leitor que tenha um conhecimento de mundo amplo, que seja capaz de perceber a intertextualidade presente nos textos, que saiba navegar com segurança dentre tão variado material textual.

Considerando essa análise é possível dizer que a leitura dessas novas expressões literárias demanda a formação de um leitor, multiletrado (COPE; KALANTZIS, 2000), competente para fazer escolhas de percursos, construir interpretações, integrando seu conhecimento prévio de diferentes linguagens e meios. A leitura de algumas produções literárias do projeto We Tell Stories vai ainda além e exige que esse novo leitor esteja também apto para participar ativamente em trocas de interpretações e construção coletiva de textos, nas quais os papéis de leitor e autor se intercambiam. Ou seja, ele precisa ser capaz de interagir com qualquer tipo de texto, presente em qualquer meio, nos mais variados contextos, sejam eles sociais, econômicos, acadêmicos, entre outros - e para os mais diversos fins (COPE; KALANTZIS, 2000; ANSTÈY; BULL, 2006).

Em relação à ciberliteratura, essa demanda existe por estarmos vivenciando:

uma convergência histórica quando romancistas,

dramaturgos e cineastas movem-se rumo a histórias multiformes e formatos digitais; cientistas da computação começam a criar mundos ficcionais; e a audiência segue em direção ao palco virtual (...) A julgar pelo panorama atual, podemos esperar um enfraquecimento contínuo dos limites entre jogos e histórias, entre filmes e passeios de simulação, entre mídias de difusão (...) e mídias arquivísticas (...); entre formas narrativas (...) e formas dramáticas (...) (MURRAY, 2003, p.71-2)

Como Hayle (2009, p.95) ressalta o desafio que não apenas a ciberliteratura, mas a textualidade digital de maneira geral lança para nós pesquisadores e estudiosos do tema, é “revisar e rearticular conceitos antigos em condições apropriadas às dinâmicas da mídia em rede e programável”.

Concluindo essa retomada, embora as discussões incluídas nessa tese possam ser úteis para mostrar que a forma de produção de textos está mudando e que as mídias digitais demandam a formação de um novo tipo de leitor - o ciberleitor multiletrado - dada a proposta do trabalho, pouco avançamos em

nossas reflexões sobre a formação crítica dos futuros leitores. Assim, resgatando o meu percurso acadêmico híbrido, concluo a presente discussão com uma nova inquietação teórica que deixo como sugestão para futuros estudos:

Como trabalhar a formação de ciberleitores multiletrados em sala de aula para que eles sejam capazes de interagir com qualquer tipo de texto, presente em qualquer meio, conseguindo se nortear de forma crítica e ética, nos mais variados contextos?