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INTRODUÇÃO À ESTRUTURA DA TESE

CAPÍTULO 1: POR QUE TEMER A TECNOLOGIA?

2.1 Do papel ao e-paper

History never looks like history when you are living through it.

John W. Gardner

O surgimento de novas tecnologias63 capazes de armazenar e veicular conhecimento acarreta mudanças linguísticas e sociais, e isso é o fruto de um contínuo processo de transformação na qual tecnologia e sociedade sofrem influências mútuas. Acreditando nesse padrão de transformação (de influência mútua) busca-se fugir da dicotomia causa-efeito que perpassa muitos estudos, conforme apontado no capítulo 1, e que diminuem a complexidade da relação que envolve tecnologia/sociedade/linguagem.

Tradicionalmente quatro eventos são citados para ilustrar as profundas mudanças na tecnologia da informação: (1) a criação da escrita; (2) o surgimento do códice, que substituirá o pergaminho; (3) a invenção da prensa móvel e (4) a comunicação eletrônica (DARTON, 2010, p.39), sendo a prensa móvel de Gutenberg geralmente a eleita para demonstrar como uma inovação tecnológica altera nossa relação com a escrita e com o acesso ao conhecimento.

Os primeiros sinais de resistência frente às mudanças na forma de registro do conhecimento já foram observados no momento da criação da escrita, como se vê em Fedro, de Platão (ver Anexo), quando Sócrates alerta Fedro sobre as ameaças existentes ao se registrar o conhecimento na forma escrita (GNERRE, 1991). Esse episódio não foi um caso isolado:

Rousseau e Bergson, por exemplo, estabelecem uma relação, por razões diferentes entre os males principais que assolam a civilização e a escrita... Com a escrita começou a separação, a tirania, e a desigualdade (RICOEUR, 1976, p.39 apud GNERRE, 1991).

63 Conforme mencionado no capítulo 1, entendemos que o termo “tecnologia” compreende tanto uma forma de conhecimento que está conectada às relações e atividades sociais como a objetos tecnológicos.

Qualquer semelhança entre a citação acima e a discussão tecida no primeiro capítulo desta tese não é mera coincidência. A escrita já foi uma nova tecnologia, e, como comentamos anteriormente, o advento de tecnologias inovadoras pode causar processos de insegurança, medo e resistência.

Com relação à invenção da prensa móvel, Murray (2003) ressalta que os livros produzidos antes de 1501 são chamados de incunábulos64, pois durante esse período ocorreram experimentações que culminaram em certas convenções como a numeração das páginas, o uso de parágrafos, a adoção de frontispícios e prefácios, a divisão em capítulos e etc. Estabelecidas tais convenções, o formato65 dos livros permaneceu o mesmo por séculos, mas a invenção de Gutenberg não impediu que a produção de textos manuscritos66 continuasse a existir até o século XVIII (BRIGGS; BURKE, 2006; CHARTIER, 1999). Como ressalta Burke (2006, p.20):

falar da impressão gráfica como agente de mudança é dar muita ênfase ao meio de comunicação, em detrimento de escritores, impressores e leitores que usaram a nova tecnologia, cada qual segundo seus próprios e diferentes objetivos.

Na mesma direção, ao tratar a história do livro e da leitura, Chartier (1999) comenta que as realidades históricas por trás de conceitos como autor, leitor e editor são extremamente variáveis. Ao analisar a passagem do rolo ao códice medieval, do livro impresso ao texto lido na tela de um computador, o autor observa que a história da leitura é feita mais de sobreposições e mudanças gradativas do que de rupturas totais. No entanto, analisando essas mudanças, tendemos a nos ater a pontos específicos na escala histórica que parecem trazer

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Nome dado às faixas que serviam para envolver os bebês. Ao se referir aos livros, significa que estes estavam em sua fase inicial, ou seja, na tenra infância.

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Folhas de papel dobradas um certo número de vezes formando pequenos cadernos que são costurados, compondo uma estrutura maior, que é, por sua vez, encadernada.

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Como exemplos há os poetas e escritores que queriam que suas obras circulassem por um público restrito e os textos que abordavam questões religiosas, morais ou políticas e que seriam reprovados pela censura, os chamados “textos proibidos”.

rupturas nas práticas letradas. Ao voltar sua atenção, por exemplo, para as tecnologias de informação e comunicação mais recentes, Chartier afirma que “a revolução do livro eletrônico é uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler” (CHARTIER, 1999, p.13). Acrescentaríamos a essas colocações do autor as alterações no nível da linguagem que todo o processo de surgimento de novas mídias acarreta (BOLTER; GRUSIN, 2000; BOLTER, 2001).

Embora nem todo texto na tela se adeque às categorias comumente atreladas ao texto digital, o simples fato de um texto ser veiculado em uma mídia diferente da qual e para a qual ele foi concebido inicialmente causa mudanças no seu processo de recepção. Por exemplo, há textos que simplesmente tiveram seu formato impresso escaneado ou digitalizado e o arquivo gerado por esse processo disponibilizado na rede, como são os textos e livros do Gutenberg Project67. Nesse caso, embora a estrutura do texto tenha se mantida a mesma, o suporte textual gera alterações no processo de leitura. O leitor deixa de ter acesso ao todo (ao contrário do texto impresso cujo limite físico é visível e palpável, a visualização do texto digitalizado é apenas parcial) e a leitura precisa contar ou com o apoio da barra de rolagem - para cima e para baixo, lembrando um movimento que tem alguma semelhança com os modos de ler dos antigos rolos, ou seja, com progressão vertical - ou, no caso dos tablets com tela sensível ao toque, as páginas são visualizadas através do deslizar de um dedo na superfície da tela.

Se por um lado há a perda da orientação espacial dada pelo todo e pela sequenciação desse todo em páginas na internet, há um ganho na rapidez e localização de temas específicos através de ferramentas como “localizar” ou de plataformas de pesquisa como o Google.

Apesar de essa tecnologia permitir uma nova forma de acesso a textos antes encontrados apenas em meio impresso, o interesse de nossa pesquisa está em explorar formas de disponibilização textual que a tecnologia digital permite e

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Projeto que visa digitalizar, arquivar e distribuir obras culturais - em sua maioria textos completos de livros em domínio público - através de sua digitalização. É considerada a mais antiga biblioteca digital, tendo sido fundado em 1971. Informações disponíveis no endereço <http://www.gutenberg.org/>

que não tem paralelo exato no suporte impresso, como é o caso do texto hipermídia, que iremos comentar a seguir.