• Nenhum resultado encontrado

Considerações gerais sobre a primeira onda de interiorização

Parte II – Primeira onda: criação do município, cafeicultura, economia

Capítulo 5 – A criação do município e da medicina de São Carlos sob a

5.4. Considerações gerais sobre a primeira onda de interiorização

Em meio à primeira onda de interiorização do profissionalismo médico em São Carlos, os médicos locais, diante de determinados desafios sociais e históricos relacionados à criação do próprio município e seu primeiro impulso de desenvolvimento socioeconômico e político, mesmo que originários de outros estados, tendo-se formado profissionalmente mais longe (no Rio de Janeiro e na Bahia), e se inserindo no mercado médico da local vindo desde fora, conseguiram se integrar à estratificação social são- carlense com rapidez, logo assumindo posições de destaque, influência e poder. Diante disso, a análise acima evidenciou como se estabeleceram as conexões entre o profissionalismo médico, as classes sociais, as relações familiares, o poder de Estado e a política partidária em São Carlos.

As relações de parentesco e de matrimônio se entrelaçaram às relações entre diferentes classes sociais, como a de proprietários rurais e de setores de classes médias – aqui relativamente representados por integrantes do grupo profissional de médicos de São Carlos –, de tal modo que, por meio de certos liames sociais, profissionais e de parentesco, os interesses econômicos e políticos do capital agrário e da medicina local encontraram meios efetivos de, em meio ao sistema político do coronelismo, estabelecerem relações de aliança política durante entre a Primeira República e a Era Vargas.

Contudo, as relações de parentesco não se constituíram como uma espécie de estrutura de relações sociais de natureza global, a partir da qual, e segundo sua peculiar

153 lógica de organização, as demais relações sociais se estruturaram e se moldaram. Desse modo, apesar da concordância com Queiroz (1975) em se adotar o conceito de estratificação social para se analisar a realidade social e política do coronelismo, e também, quanto à necessidade de se observar, para além da figura do coronel, os demais atores sociais e políticos que atuaram na dinâmica do sistema coronelista, bem como o próprio papel das relações familiares e de matrimônio, o presente trabalho distancia-se relativamente das análises da mesma autora, que defendeu que as relações de parentela seriam a especificidade sociocultural da estrutura social brasileira desde o período colonial, permanecendo como a base mais profunda de estruturação das relações sociopolíticas do país no início da Republica. As classes sociais são-carlenses, a partir das relações observadas entre médicos e proprietários rurais, estavam relativamente estabelecidas no município. Tendo em vista isso, no entanto, verificou-se que as relações familiares e de matrimônio implicaram mecanismos facilitadores para o estabelecimento de alianças entre diferentes classes e grupos sociais – tais como certos setores profissionais da medicina são-carlense daquela época –, influenciando a própria configuração do profissionalismo médico em sua inserção junto à estratificação social local.

Por outro lado, o estudo apontou como, embora não se possam desconsiderá-los mais amplamente, a fim de se realizar uma análise sobre a profissão médica em São Carlos, o estudo do coronelismo oferece margem para o entendimento do sistema político da Primeira República (e depois) para além não apenas da referência analítica ligada às relações familiares como também aos conceitos de “classe social” ou “relações de classes sociais”, de maneira que, as categorias de profissão e profissionalismo (tal como o próprio profissionalismo médico) emergem como variáveis analíticas complementares para a investigação das relações sociopolíticas coronelistas, contribuindo para o esclarecimento de outros aspectos sociológicos das relações sociais e políticas que caracterizaram a emergência da República.

Em realidade, os elos da medicina com a estratificação social são-carlense estenderam-se também para mais além do que a própria realidade particular de seu poder local, como evidenciam as conexões entre, de um lado, médicos do município, outros médicos do estado e a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo – SMCSP e, de outro lado, a dinâmica política coronelista que conectava os níveis de poder local, estadual e federal do país. Podem-se considerar expressões significativas dessa realidade – dados os seus impactos sociais e históricos para a medicina e a própria

154 dinâmica de poder em São Carlos –, os liames sociais, políticos e profissionais que entrelaçavam médicos inseridos na estrutura social são-carlense e a mencionada SMCSP, assim como as ligações entre tais atores sociais e institucionais com o andamento do citado processo judicial sobre o crime de linchamento em Araraquara, o qual foi responsável por mobilizar forças políticas coronelistas rivais, sejam das esferas de poder local, estadual ou nacional e que contou com envolvimento direto de profissionais e instituições médicos (a exemplo da própria SMCSP).

Isso posto, o estudo sobre a primeira onda de interiorização do profissionalismo médico em São Carlos evidencia significativas conexões históricas entre a emergência deste fenômeno, os sucessos da economia agrário-exportadora de café, o inicial impulso urbano-industrial do município, o despertar do posteriormente intensificado state-

building nacional e paulista (com efeitos à integração do interior ao resto do país) – e,

em especial, no campo da saúde pública – e a emergência de uma assistência médica relativamente mais organizada localmente – graças particularmente ao estabelecimento de alguns consultórios privados para a prática liberal e à criação da Santa Cada de Misericórdia de São Carlos. A investigação ainda demonstrou como o grupo profissional da medicina, apesar de algumas restrições à sua autonomia econômica e, em especial, à sua autonomia técnica, ocupava um lugar central dentre os setores médios e de elite do município, especialmente no meio urbano.

Portanto, se nas primeiras décadas do século XX os domínios rurais representavam a mola propulsora da economia local e significativa fonte de influência para a dinâmica política são-carlense, desde o início da República a classe social dos grandes proprietários rurais reconheceu a necessidade de governar o município de São Carlos estabelecendo bases importantes no meio urbano, sendo que, neste espaço social, os médicos já despontavam como um segmento social médio de destaque nas dinâmicas de poder coronelistas da localidade, aliando-se em variados termos às demais forças sociais e políticas existentes, tanto as de dentro como as de fora da localidade. Contudo, o envolvimento da medicina local com as relações políticas daquele tempo igualmente implicaram certos reveses à sua autonomia, especialmente do ponto de vista técnico.

155