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Da cafeicultura exportadora ao desenvolvimento urbano-

Parte II – Primeira onda: criação do município, cafeicultura, economia

Capítulo 5 – A criação do município e da medicina de São Carlos sob a

5.1. Da cafeicultura exportadora ao desenvolvimento urbano-

Com o declínio da economia mineradora, logo no início do século XIX, os fluxos demográficos que antes se dirigiam para o oeste do país inverteram o sentido, pois as populações que viviam da mineração passaram a buscar novas oportunidades em outras regiões. Parte desses fluxos direcionou-se, então, para a província de São Paulo, quando as culturas de exportação de cana-de-açúcar e de algodão já estavam sendo superadas pelo café. A expansão da cultura cafeeira em São Paulo data do começo do século XIX: inicialmente, o café atingiu o Vale do Paraíba paulista, antes da metade do século, dirigindo-se posteriormente ao chamado Oeste Paulista – “(...) a partir de Campinas [para] várias direções: Mogi-Mirim, Casa Branca, Ribeirão Preto, Jaboticabal, Jaú, Piracicaba, etc. (...)” (Saes, 2010, p. 15). A produção e exportação do café cresciam, mas existia a dificuldade de transporte do produto até o porto de Santos, que era o principal porto de exportação do Estado, devido à presença de uma grande barreira geológica formada pela Serra do Mar, que separa o litoral do interior. Para resolver essa questão, foi construída a estrada de ferro Santos-Jundiaí, a qual foi inaugurada em 1867, que transpôs essa barreira, o que foi fundamental para o sucesso do café e do desenvolvimento da economia do interior em geral (Lima, 2008).

Desde a linha Santos-Jundiaí, entre os anos de 1870 e 1928 a rede ferroviária paulista cresceu consideravelmente, abrangendo, ao final deste período, praticamente

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Freguesia era o lugar sede de uma igreja constituída em uma determinada paróquia, e que também abrigava a administração civil de certa localidade. Por sua vez, Vila seria o que hoje se reconhece como sede de um município, sendo suas terras denominadas conforme a expressão Termo. Enfim, “o Termo de uma Vila” poderia ser dividido em Freguesias (Lima, 2008, p. 43). Ao longo da República toda essa terminologia geográfica e jurídico-territorial foi abandonada.

110 todo o território de São Paulo, de modo que com ela se pôde mais bem integrar os seus diferentes municípios interioranos. De fato, pode-se estabelecer um paralelismo entre a extensão das linhas férreas, o crescimento da população e da produção das lavouras (Saes, 2010, p. 17). Além disso, a malha ferroviária facilitou o processo de urbanização de diferentes regiões. As necessidades de mão de obra para responder ao crescimento da cafeicultura estadual, já em fins do século XIX, provocou a vinda de expressivos contingentes populacionais europeus rumo ao Estado de São Paulo, especialmente da Itália. Além de grupos e famílias italianos, ainda vieram para São Paulo, na passagem do século XIX para o XX, espanhóis e portugueses, alemães, austríacos, suíços, entre outros segmentos sociais estrangeiros (Baeninger & Bassanezi, 2010, p. 157).

O desenvolvimento de São Carlos foi impulsionado graças a esse contexto histórico de importantes mudanças e incrementos econômicos e demográficos, que combinou melhorias nas comunicações, mobilidade e crescimento populacional, bem como avanços da cafeicultura estadual (Devescovi, 1987; Lima, 2008; Abreu, 2000; Truzzi, 2008). A transformação do café em lavoura comercial em São Carlos começou apenas depois de 1860, quando alguns fazendeiros passaram a empreender algumas iniciativas no sentido de atrair mão de obra, ainda escassa à época. Entretanto, foi somente com a extensão da rede ferroviária até as regiões cafeeiras, em torno de 1884, que o fluxo de trabalhadores para as fazendas pôde crescer e impulsionar os cultivos da região. Grande parte dos indivíduos que passaram a viver no município, e que acabaram compondo a massa de trabalhadores do campo, era constituída de imigrantes europeus, que se dirigiam ao país em busca de oportunidades e que passaram a se deslocar até o município de São Carlos graças, especialmente, à combinação entre a considerável expansão da economia cafeeira local e a extensão das linhas de trens que desde a década de 1880 atingiram o município.

O significativo acúmulo de recursos oriundos da economia cafeeira propiciou o surgimento, a inicial estruturação, e mesmo, o crescimento de vários núcleos urbanos nas diferentes regiões produtoras do Estado (Fundação SEADE, 1989). Tal foi o caso de São Carlos, visto que a demanda local por produtos de outros territórios do país, e até do exterior, somada a necessidade de se ter um núcleo para apoio e comercialização da produção das fazendas, favoreceu o seu desenvolvimento urbano, com crescimento e diversificação dos grupos que integravam sua população. A chegada da malha ferroviária ajudou na própria definição de parte do processo de urbanização local, tendo sido responsável, entre outros melhoramentos, pela extensão de ruas do atual centro da

111 cidade, tais como General Osório, Bento Carlos e Santa Cruz, bem como a abertura das ruas José Bonifácio, Aquidaban, Riachuelo e Visconde de Inhaúma38.

Na verdade, uma das formas que o grupo social dominante encontrou para iniciar o processo de constituição do núcleo urbano foi o de doar terras, ao redor do marco inicial de emergência da localidade, a quem se dispusesse a construir casas próprias de moradia. Tal ação, aliada à perspectiva de desenvolvimento da cultura cafeeira, gerou um afluxo considerável de comerciantes e profissionais liberais, bem como de alguns fazendeiros da região, que passaram a fixar residência no nascente núcleo urbano (Devescovi, 1987, p. 25).

A produção exportadora de café ganha força, em São Carlos, em meio ao fim da escravidão do país (abolida em 1888), o que levou os fazendeiros locais a lançarem mão de estratégias alternativas para a fixação de mão de obra em suas terras. Paralelamente a um movimento mais abrangente de incentivo à imigração estrangeira para o Estado de São Paulo, e graças à extensão da malha férrea até o município (1884), os fazendeiros são-carlenses passaram a se apoiar, principalmente, em mão de obra imigrante, constituída no início principalmente de famílias italianas. Esses imigrantes eram assimilados aos cafezais através do regime de trabalho conhecido como colonato39. Além disso, devido principalmente às secas no Nordeste brasileiro, grupos populacionais nordestinos, na condição de retirantes, também aparecem em territórios são-carlenses em busca de oportunidades (Truzzi, 2007, p. 68).

Com as comunicações e o transporte facilitados pela malha ferroviária, houve considerável crescimento populacional nas áreas produtoras de café de São Carlos, criando novas relações sociais não apenas pelo impulso da cafeicultura em si, mas pelo paralelo crescimento de atividades econômicas urbanas, as quais inicialmente emergiram graças aos capitais acumulados nas fazendas e que foram responsáveis pelo surgimento de um incipiente mercado consumidor e um análogo mercado de trabalho.

38 De acordo com texto de autoria da historiadora Rita de Cássia de Almeida, cujo título é: “A chegada da

ferrovia em São Carlos”. O texto foi extraído da internet em site da Universidade de São Paulo – USP (Campus de São Carlos) e consultado em 31 de outubro de 2013, no seguinte endereço eletrônico ligado ao CDCC/USP: http://www.cdcc.usp.br/bio/mat_saocarlos_ferrovia.htm.

39 O colonato era um regime de trabalho muito comum nas zonas produtoras de café paulistas na

passagem do século XIX ao século XX e implicava uma organização econômica e social na qual o trabalhador arrendava uma porção de terra sob a condição de destinar parte de sua produção como pagamento ao proprietário. Outra forma de colonato é reservar um ou mais dias da semana para dedicar- se ao cultivo da terra do proprietário.

112 Os capitais oriundos da economia agroexportadora eram dirigidos à cidade, sejam para que se fizessem implementos urbanos necessários ao dinamismo da cafeicultura em si, sejam para que se fizessem inversões em outras atividades em períodos de queda da economia agroexportadora.

Isso contribuiu para o início do processo de urbanização do município de São Carlos, o qual, mais tarde, iria se intensificar e adentrar em um período de considerável industrialização. Já no final do século XIX, como expressão desse dinamismo urbano, são construídos os primeiros edifícios públicos: no final de 1883, inaugura-se o prédio da Câmara Municipal; em 1893, o da Santa Casa; em 1900, o edifício do Fórum e o da Cadeia. Além disso, surgem ainda as primeiras residências de grande porte na região central da cidade. “É que os ricos proprietários rurais vêm residir na cidade, porque já não é necessária a presença constante nas fazendas, dirigidas agora por administradores e transformadas em empresas capitalistas de produção’” (Abreu, 2000, p. 96).

Por volta dos anos 1920, dentre seus elementos característicos, o município já possuía: uma razoável infraestrutura urbana; um mercado consumidor constituído de alguns grupos de famílias de imigrantes, seus descendentes e outros grupos locais habitantes da cidade; algumas casas comerciais e certas indústrias de porte menor com baixo desenvolvimento tecnológico (de feição, por vezes, artesanal), mas que atendiam a determinadas necessidades da produção de café, seu beneficiamento e transporte (a exemplo dos empreendimentos voltados à manutenção das linhas de trens); bem como certos empreendimentos industriais de bens de consumo não duráveis (como era o caso da indústria têxtil, muito importante na produção de sacas de café, e a indústria de alimentos); a localidade já possuía também alguns órgãos e serviços públicos – oferecidos através do trabalho de determinados segmentos sociais médios; ademais, havia ainda outros grupos de alguns tipos de profissionais liberais. Tais desenvolvimentos fizeram surgir novos loteamentos na região para atender ao crescimento do município, o que levou à criação dos primeiros bairros ao redor da zona central da cidade, já em fins do século XIX, num movimento que iria se estender ao longo do século seguinte (Abreu, 2000; Devescovi, 1987; Truzzi, 2007).

Mas após um significativo período de expansão econômica, a cafeicultura de exportação, que desde o fim do século XIX vinha liderando o desenvolvimento local, passou a enfrentar sinais de decadência, interrompendo sua trajetória ascendente em torno dos anos 1900, sendo que, por volta de 1920, a produção de café já não conseguia mais apresentar sinais que indicassem uma recuperação efetiva, sofrendo sua crise

113 derradeira em 1929 com a histórica quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Nessas circunstâncias críticas, algumas fazendas passaram a cultivar outros produtos, como algodão, arroz e cana-de-açúcar, embora sem a pretensão de substituir a centralidade do café, procurando apenas estabelecer uma estratégia de contorno das crises sofridas (Grimberg, 2007, p. 8), além de ter à disposição, com isso, uma atividade alternativa que pudesse compensar os cíclicos revezes da cultura principal. Especialmente em momentos difíceis, não apenas os capitais agrários, mas parte dos populares que trabalhavam nas zonas rurais também procuravam alternativas nas atividades urbanas, favorecendo o desenvolvimento de grupos sociais inseridos econômica e politicamente nas áreas citadinas.

Esse contexto contribuiu para a ampliação de setores sociais ligados às chamadas profissões liberais ou de nível superior, tal como os setores médicos, os quais, tanto em razão de peculiaridades de suas atividades ocupacionais como por conta da localização de suas moradias, e apesar de conhecidas ligações com os grandes proprietários rurais do município, acabaram se fixando, principalmente, nas zonas urbanas de São Carlos – o que, como se observará, influenciou sua posição de poder e influência social e política, bem como sua autonomia profissional (Freidson, 2009), principalmente graças à intensificação do desenvolvimento urbano-industrial após 1930. Mas embora seja necessário enfatizar que desde muito cedo a posição social dos médicos de São Carlos caracterizou-se por ser de grande relevo e considerável influência social, estes adquiriram maior autonomia socioeconômica e política graças não somente aos seus particulares desenvolvimentos técnicos e profissionais, mas também em razão de mudanças decorrentes da interiorização do desenvolvimento urbano-industrial e da centralização política estatal (Kerbauy, 2000). Entende-se assim que, como se examinará adiante, a profissão médica estruturou-se e rápido criou raízes principalmente dentre os setores sociais urbanos do município, o que se explica seja por razões de ordem profissional em sentido estrito, seja por certas necessidades de natureza socioeconômica ou outras circunstâncias sociopolíticas que igualmente condicionaram sua inserção na estratificação social do município, conferindo particularidades históricas e sociológicas às relações entre medicina e poder local em São Carlos.

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5.2. Os médicos e a saúde são-carlense: uma análise da prática médica e sua