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CAPÍTULO IV – A dimensão axiológica e os modelos de perfis conceituais

4.1. Considerações gerais sobre a dimensão axiológica na construção de modelos

Lucas, Passos e Arruda (2016) destacam que a ciência dos valores ou axiologia é uma área da filosofia que vem se consolidando desde a metade do século XIX. E ressaltam, ainda que, “[...] essa ciência tem como objeto de estudo os valores e suas implicações para o ser humano em diversas perspectivas: científica, social, moral, religiosa, política, entre outras” (p. 500). Em artigo que trata de avançar no estudo das influências que os sistemas axiológicos ou sistemas de valores exercem sobre as práticas educativas, os referidos autores definem esses sistemas como “conjuntos de valores (éticos, estéticos, religiosos, políticos, vitais, cognitivos etc.) que, inter-relacionados, influenciam as ações humanas e fornecem explicações acerca das mesmas” (p. 646).

Lucas (2014), ao pesquisar sobre as contribuições da axiologia na área educacional, tem mostrado que os valores ou sistemas de valores inerentes às ações humanas são compartilhados socialmente durante a educação escolar e

a formação acadêmica e destaca que eles são tomados como entidades qualificadoras e capazes de traduzir as preferências, os motivos e os critérios de conduta das pessoas, incluindo as perspectivas do ensino e da aprendizagem.

Especificamente sobre axiologia e a teoria de perfis conceituais, Mattos (2014) destaca que apesar dos avanços que já ocorreram no programa de investigação em perfis conceituais, muitos investimentos ainda são necessários, como, por exemplo, que seja feito um exame cuidadoso da dimensão axiológica das zonas de um perfil e sua relação com aspectos afetivo-volitivos. Indica que para introduzir o papel das emoções e valores na abordagem dos perfis é preciso levar em conta o seu papel na regulação das funções psicológicas superiores, bem como no processo de ensino e aprendizagem.

A inclusão da dimensão axiológica à construção de perfis conceituais, além das dimensões epistemológicas e ontológicas da significação do conceito, foi proposta por Rodrigues e Mattos (2006). Esses autores argumentaram que a dimensão axiológica, relativa aos valores que os indivíduos atribuem às coisas, possibilita entender/reconhecer as razões afetivas das escolhas de certas representações dos objetos em determinados contextos.

Rodrigues e Mattos (2007) salientam que “se pretendemos compreender, de forma mais ampla, a comunicação humana e a formação de intersubjetividade devemos considerar ao menos três dimensões do conhecimento humano”: epistemológica, ontológica e axiológica.

Dalri (2010), a partir da proposta de Rodrigues e Mattos (2006), propõe um perfil conceitual complexificado, considerando a inclusão da dimensão axiológica como o primeiro passo para essa complexificação, com o argumento de que a dimensão axiológica responde ao “porquê” das escolhas e revela as motivações e intenções com que um conceito é utilizado pelo indivíduo.

Com base nesse argumento, Darli (2009) propõe que a dimensão axiológica pode ser considerada a base fundamental dos modelos de perfil (ou a base fundamental para modelagem de perfis), uma vez que apresentam um papel funcional de regular e modular a forma como as zonas são utilizadas em contextos específicos.

Rodrigues e Mattos (2007) destacam que:

[...] Para alguns conceitos deveremos analisar todas as três dimensões simultaneamente. Para outros, a dimensão ontológica se destacará, principalmente conceitos polissêmicos, fazendo com que a dimensão epistemológica se torne imperceptível. Para outro grupo de conceitos, cuja história e epistemologia estejam bem determinadas, acentua-se a dimensão epistemológica. Porém, em ambos os casos, os conceitos terão componentes descritos em função do eixo axiológico (p. 329).

Sobre a relação da dimensão axiológica das zonas e os aspectos afetivo-volitivos, sugerida por Mattos (2014), encontramos no trabalho de Pascal (2009) algumas reflexões teóricas baseadas em autores da abordagem sócio-histórica, em especial nos textos de Vygotsky12, considerados por ele como os mais significativos sobre a temática. A intenção de Pascal é constituir uma relação entre o que Mattos propõe para a dimensão axiológica das zonas de um perfil e a base afetivo-volitivo a partir desses referenciais.

Pascal (2009) esclarece que:

“Vygotsky defende a tese de que uma compreensão efetiva e plena do pensamento de outra pessoa só se torna possível quando entendemos a sua base afetivo-volitiva, ou seja, sua emoção, sua motivação, sua vontade, que envolve os seus desejos, as suas necessidades e os seus interesses” (p. 46).

A separação entre os aspectos intelectuais e os afetivos impossibilita, de acordo com Vygotsky, a explicação das causas do pensamento, já que as causas do pensamento estão na base afetivo-volitiva. Assim, não existe dissociação entre os aspectos intelectuais e afetivos, entre pensamento e linguagem, entre razão e emoção. Vygotsky analisa as implicações para a compreensão da consciência de dissociar esses dois aspectos, nos seguintes termos:

la separación entre el aspecto intelectual de nuestra conciencia y su aspecto afectivo, volitivo, constituye uno de los defectos básicos más graves de toda la psicología tradicional. Esa separación da lugar a que el pensamiento se transforme inevitablemente en un flujo autónomo de ideas que se piensan a sí mismas, a que se segregue de toda la plenitud de la vida, de los impulsos, los intereses y

12

Pensamento e Linguagem (1993), A Construção do Pensamento e da Linguagem (2001), Teoria de las Emociones: estudio históricopsicológico (2004) e os volumes II, III e IV das Obras Escogidas (1983).

las inclinaciones vitales del sujeto que piensa y, o bien resulte un epifenómeno completamente inútil, incapaz de modificar nada en la vida y en la conducta de la persona, o bien se transforma en una fuerza primitiva, autónoma e imprevisible, que, al interferir en la vida de la conciencia y en la vida de la personalidad, las influye de forma inexplicable (VYGOTSKY, 1983, p. 24 apud Pascal, 2009, p. 231).

Assim, o estudo sobre a base afetivo-volitiva pressupõe a descoberta das emoções, motivações, vontades, desejos, necessidades, interesses, impulsos e tendências que movem o pensamento, ao mesmo tempo em que permite a eliminação do poder mágico e abstrato do pensamento, ao defender sua gênese e origem social (PASCAL, 2009).

Vygotsky propõe que “existe um sistema dinâmico de significados em

que o afetivo e o intelectual se unem”. (VYGOTSKY, 1993, p.19). Esse “sistema” é a base afetivo-volitiva que está por trás da relação entre as significações e os sentidos que atribuímos às questões da vida social e que se expressam por meio do pensamento que, na maioria das vezes, é realizado por meio de palavras.

A dimensão axiológica do conhecimento modula o nível de mobilização dos sujeitos na atividade de ensino/aprendizagem, isto é, determina a motivação dos sujeitos em sua relação com o saber. Assim, esta dimensão pode influenciar mobilizando os sujeitos na relação com o contexto discursivo, por exemplo. Nesse sentido, é destacado o papel dessa dimensão na constituição da visão que os sujeitos possuem da realidade e sua influência na tomada de decisão (RODRIGUES; MATTOS, 2007).

Com base nos trabalhos de Sodré (2008) e Sodré e Mattos (2007, 2010), Dalri (2010) traz um exemplo de modulação de representações de alimento por aspectos axiológicos, no contexto da identificação e escolha de uma dieta saudável. O autor analisa como a dimensão axiológica pode modular as representações (com características ontológicas e epistemológicas) de um alimento para uma pessoa faminta ou com carência alimentar, e para outra alimentada ou em boas condições de alimentação, e conclui que:

[...] a modulação pela dimensão axiológica das dimensões epistemológicas e ontológicas do perfil de alimento em um determinado contexto também pode ser relacionada à maior ou menor apetência que um alimento estimula de acordo com sua

apresentação (características ligadas à cor, sabor, aparência estética etc.) (p. 107).

Dalri propõe que há forte modulação da dimensão axiológica no que diz respeito às escolhas alimentares, levando a pessoa a escolher dentre o que é comestível e saudável aquilo que irá consumir, de acordo com a valorização e a finalidade que o alimento apresenta para si nos contextos vivenciados. Em termos dos processos de aprendizagem, Dalri propõe que a relação que estabelecemos com determinado saber é formada pelos sentidos/valores que atribuímos ao objeto da atividade de aprendizagem e pelas motivações que nos levam a realizá-la em determinados contextos. Aprendemos a nos relacionar com o saber influenciado pelas pessoas, coisas, contextos, culturas com as quais interagimos e pertencemos.

Rodrigues e Mattos (2007), por sua vez, analisam o papel da axiologia na modelagem de perfis conceituais, tendo em vista a relação entre contextos em que as interações discursivas e experiências sociais dos indivíduos ocorrem e os processos de significação. Os autores argumentam que a internalização dos significados, a qual, acontece na interação sujeito-mundo, é permeada por aspectos cognitivos e afetivos do contexto no qual o indivíduo se insere. Nos contextos específicos se desenrolam as interações dialógicas, construídas a partir das dêixis, marcas do contexto, que permitem sua ressignificação. São os papéis interpretados pelos outros, as experiências de vida de cada ator no seio dos complexos processos histórico-sociais, sentimentos, expectativas, motivações, normas sociais e muitos outros elementos que estão em jogo nestas interações (ROSSETI-FERREIRA et al., 2004).

A internalização das zonas de perfil conceitual se dá na interação, e é na interação (manifestação dos indivíduos) que elas são explicitadas. Portanto, é na ação do indivíduo, em contextos específicos, que valores, crenças, sentidos atribuídos são construídos/internalizados, que as zonas do perfil conceitual são explicitadas (RODRIGUES; MATTOS, 2007).

Da mesma forma que os obstáculos epistemológicos e ontológicos estão presentes no processo de ensino e aprendizagem, obstáculos axiológicos também existem, dificultando o aprendizado de certos conceitos e sistemas de

conceitos em contextos específicos, e definem formas afetivas de se relacionar com o conhecimento (CHARLOT, 2001 apud MATTOS, 2014).

Outra abordagem que ainda está sendo investigada e que parece se relacionar aqui, são os conglomerados de relevância propostos por (MARTINEZ, 2015) que se fundamentam em estudos sociológicos, linguísticos e antropológicos, considerando que esta perspectiva é um suporte para a interpretação cultural das explicações dos estudantes sobre o mundo e os fenômenos naturais e as concepções alternativas. Os referenciais dos conglomerados de relevância estão relacionados com o conceito de cultura, contexto cultural, significado e valor.

4.2. Herança biológica: um conceito fortemente relacionado à dimensão