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CAPÍTULO VI – Individualização e caracterização das zonas de um perfil

6.2. Fatalismo pelo sangue

Nesta zona atribui-se a origem das características de um ser ao nascer e sua semelhança aos parentes, ao fatal e inevitável compartilhamento do sangue, veículo pelo qual são transmitidos não só suas características físicas e/ou comportamentais como sua história de vida, seu destino. Em relação à outra zona, uma distinção em termos de compromisso epistemológico é que nessa zona a herança já é concebida como um fenômeno a ser explicado. Neste modo de pensar herança, o sangue é o fluido corporal mediador de transmissão das características ao longo das gerações. O sangue é reconhecido como agente principal de explicação da herança. No quadro 4, abaixo, são apresentados os compromissos que sustentam esse modo de pensar, relativos aos temas ontologia, axiologia, contribuição parental, unidade, mediador de transmissão e natureza da herança, fator causal, mecanismo causal. Este conjunto de compromissos está articulados ao determinismo por

desígnio, compromisso segundo o qual o fator causal da herança pode ser atribuído a um acontecimento que se interpõe ao destino dos genitores. Como podemos observar também no quadro 3, esse é um modo de pensar cuja gênese é fortemente mediada pela dimensão axiológica.

Quadro 4. Temas, categorias e compromissos que caracterizam a Zona 2 - Fatalismo pelo sangue.

TEMA SEMÂNTICO CATEGORIA COMPROMISSO

Ontologia Característica A herança é concebida em

termos de características que são herdadas dos antecessores

Axiologia Impressão materna Atribui que o comportamento da

mãe pode afetar diretamente a fisiologia da reprodução e causar danos ao feto

Conformismo É atribuída aos pais a atitude de se conformar, de acatar o que é herdado

Culpa Atribui o nascimento de crianças com alguma deficiência ao sentimento de culpa dos genitores. As mutações são entendidas como castigo a comportamentos moralmente inadequados. Punição Atribui-se as deficiências

genéticas à transgressão de regras de conduta pelos genitores que resulta em punições relacionadas à crença e fé.

Contribuição parental para a herança

Contribuição diferencial Atribui desenvolvimento de traços fenotípicos à contribuição diferente de ambos os genitores.

Fator causal Determinismo por

desígnio

Atribui-se a causalidade da herança a um acontecimento que se interpõe ao destino dos genitores ou antepassados.

Unidade de herança Característica A unidade que o organismo

herda é um traço em si, uma característica. Pode ser um conjunto de características em miniatura.

Mediador de transmissão da herança

Fluidos corporais Os atributos dos indivíduos estão presentes no sêmen ou no sangue produzido pelos progenitores, por meio dos quais são transmitidos através das gerações

Natureza da herança Herança Tênue O material hereditário não é

constante de geração a geração, porque características oriundas de condições às quais os parentais estão expostos

durante a vida podem ser transmitidas às gerações seguintes. Admite-se plasticidade do material genético decorrente da incorporação de tais características, ou de seus potenciais, ou de seus determinantes.

Mecanismos Herança por mistura Atribui fusão completa dos

materiais hereditários paterno e materno.

Os compromissos principais que estruturam e estabilizam essa zona são: o papel causal de acontecimentos que se interpõem ao destino dos genitores na determinação de traços da prole; a relação entre herança e sangue, ou seja, o forte compromisso de que a herança é transmitida por esse fluido, que se constitui precisamente o fluido corporal mediador de transmissão, combinado com a noção de herança tênue e por mistura, e a marcante ideia de que a unidade que o organismo herda é a característica. Esses compromissos emergem muito frequentemente nos dados referentes aos diferentes domínios genéticos deste conceito, considerados nesta pesquisa. A seguir apresentaremos alguns desses dados, a partir da transcrição de trechos de entrevistas, respostas a questionários, e citações da literatura em concepções alternativas, relativos aos domínios microgenético e ontogenético.

Em estudo que buscou verificar modelos para explicar fenômenos hereditários usados por membros de famílias nas quais são encontradas doenças genéticas, Santos (2005) propôs cinco categorias de modelos explicativos, segundo as causas atribuídas, organizando-os numa chave dicotômica, já descrita no capítulo III.

Tendo como referência os modelos acima propostos por Santos (2005), o modelo mítico pode ser caracterizado como um modelo permeado pela dimensão axiológica, já que caracteriza como aspectos míticos, por exemplo, castigo divino, punição por algum erro ou pecado. Podemos relacionar este modelo ao compromisso axiológico, da categoria culpa, que atribui o nascimento de crianças com alguma deficiência a sentimento de culpa, de castigo. Este compromisso emerge em um trecho de interação discursiva em sala de aula que transcrevemos a seguir, especificamente, um comentário que uma estudante faz no momento em que a professora discute um cenário a

respeito dos casos de Síndrome de SPOAN, retirado do trabalho de Santos(2005) (ver capítulo III):

Estudante. Ali próximo ao cemitério São João Batista, tem uma casa com duas

crianças com aparência de macaco, aí toda vez que eu ia visitar minha avó no cemitério, ai minha tia sempre falava que era porque o primo casou com a prima, e tiveram relação e por causa desse ato, a criança nasceu com a aparência de macaco. O compromisso axiológico que atribui a herança ao castigo por mau conduta dos genitores emergiu em outros contextos discursivos em sala de aula, por exemplo, quando a professora solicita dos alunos a avaliação do enunciado “Crianças nascem deficientes por causa de castigos de Deus”. Ao expressar sua concordância ou discordância, outro estudante faz uma relação que envolve a ideia de castigo com a ideia de que a herança se dá pelo sangue:

Estudante - Ai eu sempre ficava pensando se era castigo de Deus mesmo Professora - Por causa do parentesco?

Estudante - Por causa do parentesco, que era pecado primo com primo ou se era

coisa do sangue, da genética.

(Excerto de interação discursiva em sala de aula do Ensino Médio)

A noção de incompatibilidade para a reprodução causada pelo sangue emergiu com frequência nas entrevistas realizadas com estudantes do Ensino Médio, assim como é frequentemente citada na literatura que investiga o ensino de genética neste nível de escolaridade. A seguir uma explicação para o nascimento de crianças deficientes, dada por um estudante em entrevista, que relaciona herança ao sangue e deficiência da prole à incompatibilidade sanguínea entre os progenitores, a partir de uma confusão com o sistema ABO de tipos sanguíneos:

Estudante -... acho que também a doença talvez, a doença pode vir do sangue, mas

eu conheço pessoas que tem o sangue igual e o filho nasceu normalmente e eu acho que também não é castigo de Deus. Eu acho que pode ser hereditário, de família.

Pesquisadora - Quando você fala sangue igual, o que seria sangue igual? Estudante - Sangue O mais outro de sangue O.

Pesquisadora - O mesmo tipo sanguíneo? Estudante - O mesmo tipo sanguíneo. Pesquisadora - Quanto ao fator ABO? Estudante - É

Pesquisadora - E você acha que crianças nascem deficientes por quê? Estudante - Eu acho que é por coisa hereditária mesmo, que vem de família Pesquisadora - Como assim de família?

Estudante - Talvez a síndrome de Down possa vir de família, mas também possa vir

Ao ser solicitado a dar explicações sobre crenças, muito presentes na nossa cultura, a partir da sua concordância ou discordância, para a expressão “as características estão no sangue”, esse aluno explica:

Estudante- Eu concordo que estão no sangue porque é como eu disse, porque tipo, eu

sou do sangue A, minha mãe também é do sangue A e meu pai é do sangue B. Então, claro que eu vou herdar a característica dela e também posso herdar dele, porque tem o sangue AB, de minha mãe eu herdo A e de meu pai o B, então eu posso ficar com as características dos dois.

Pesquisadora - No caso, você relaciona as características ao tipo de sangue, é isso? Estudante – Sim. É como eu disse. É o tipo sanguíneo que vai determinar a característica de cada um. (Excerto de entrevistas com alunos do Ensino Médio) Esse trecho evidencia a forte ideia e o compromisso do sangue como fluido mediador da herança e faz uma associação da determinação das características ao tipo sanguíneo.

Sobre o tema “contribuição parental para a herança”, esta zona se caracteriza pelo pressuposto de uma contribuição diferencial, ou seja, um dos genitores contribui mais ou é mais importante no processo hereditário. Em resposta a um questionamento sobre concordar ou discordar da expressão “O pai é mais importante que a mãe na determinação das características”, em entrevista, um estudante concorda:

Estudante. O pai é mais importante que a mãe para a determinação das

características porque o pai tem cromossomos diferentes. (Excerto de entrevistas com

alunos do Ensino Médio)

A forma de pensar herança como fatalismo pode estar associada à herança suave (soft inheritance), mesmo que inicialmente essa combinação pareça contraditória, já que a natureza desta herança tem como princípio a ideia de que o material hereditário não é constante ao longo de gerações, uma vez que as características originadas de condições durante a vida dos progenitores podem ser transmitidas para a prole. Esta forma de pensamento pode estar associada ao compromisso axiológico impressão materna. A ideia então é que um indivíduo pode passar por uma mudança de causa ambiental na herança e fatalmente a progênie pode herdar essa mudança. Assim, a ideia fatalista continua independente do mecanismo ou fator causal . Em termos axiológicos, é importante destacar que, neste caso, os atos dos progenitores podem importar, podem estar focados no comportamento e ainda apresentar questões ligadas à religiosidade. Os trechos abaixo retirados de interações discursivas no momento em que os alunos são solicitados a expressar sua

opinião a respeito da expressão “Desejos e sentimentos da mãe, assim como certas práticas podem acarretar marcas na prole”, ilustram este pensamento:

Professora - Olha aqui. Eu sei que isso chove. Eu sei que a maioria tá tímida ai, mas

olha. A mãe estava grávida, caiu um botão aqui no decote, junto ao seio, e a criança nasceu com uma manchinha. Você (referindo-se à estudante que falou do exemplo do botão) do botão, o que você acha disso?

Estudante 1 - Eu acredito, porque parece mesmo um botão. É um negócio meio

deformado e tem quatro furinhos, tipo da costura (faz gestos como se estivesse costurando)...

Estudante 2- ... é que eu conheço uma menina deficiente e ela me falou que foi porque

a mãe ficava dando cabriola quando estava grávida (risos)...

Estudante 3 - É que quando a mulher tava grávida, eu conheço a mulher, ela só vivia

com o macaquinho no pé do pescoço, ai quando o filho nasceu ele nasceu com uma bolinhas assim, como no rabo de macaco (apontando para o pescoço). Eu acho que isso é verdade.

Professora - Você se colocou e porque você acha que isso influencia?

Estudante 3 - E acho que não tinha outra explicação para o filho nascer com um rabo

do macaco no pescoço (risos)

Professora - Então o contato dela com o animal...

Estudante 3 - Eu acho

(Excertos de interações discursivas em aula no Ensino Médio)

Ainda para essa zona foi relacionada a categoria “característica” como unidade de herança. É compartilhada aqui a ideia de que o organismo herda um traço em si, uma característica, que pode ser também um conjunto de características em miniatura. Abaixo um trecho de interação discursiva quando a professora apresenta a imagem abaixo e o cenário mostrando o homúnculo (ver cenário no apêndice F) e questiona:

Professora – Aquele bonequinho que tá ali dentro? Existe isso? Dentro do

espermatozoide? E do óvulo? Você acha que ali dentro tem um serzinho?

Estudante 1 – Eu acho que sim.

Professora – Por que você acha que sim?

Estudante 1 - Porque depois ele vai desenvolver, quando ele chega no óvulo... Estudante 2 – Essa teoria é machista.

(Excertos de interações discursivas em aula no Ensino Médio)

Em outro trecho de interação discursiva com outra professora:

Professora - Qual a sua opinião sobre essa explicação? De que nos espermatozoides

tem um homúnculo e de que no ventre da mulher existia condições para que ele se desenvolva. O que vocês acham sobre isso? Verdade? Porque?

Estudante 1- Se a gente precisa do espermatozoide, o nosso útero tá pronto pra

receber a criança.

Estudante 2 - mas precisa do óvulo também. Estudante 1. Então, o óvulo é a casinha.

(Excertos de interações discursivas em aula no Ensino Médio)

No trecho acima, além da evidência do compromisso ligado à categoria “característica” para o tema unidade de herança, é possível também destacarmos o tema contribuição parental para a herança, com a categoria “contribuição exclusiva”, afirmando a necessidade do espermatozoide e evidenciando que o útero está pronto para o receber.