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CAPÍTULO II – Leituras Simbólicas do Texto Dramático

2.1 Considerações sobre as Peças

A trilogia Alteridade, Memória e Narrativa: Construções Dramáticas (2010) revela três peças diferentes entre si, mas que mantêm uma relação na sua matriz diegética. Essa relação de similaridade é identificada nas semelhanças existentes entre as três peças, a saber: personagens, temporalidade (passado-presente), ação etc. A estrutura das peças caracteriza-se por um retorno ao passado como forma de explicar o tempo presente. Essa não-linearidade da narrativa exige do leitor das obras um olhar mais atento às nuances que a fábula apresenta, uma vez que o entrelaçamento temporal, da mesma forma que se revela um ótimo subterfúgio para o desenlace de certas intrigas existentes na história, demanda da escritora/dramaturga um maior domínio sobre as categorias de ação.

A suspensão da realidade em estruturas ficcionais (“A Morte nos Olhos”), da memória (“A Memória Ferida”) e da alucinação (“Na Outra Margem”) é responsável pela construção de mecanismos e níveis em que são apresentados as personagens e as ações. As personagens ou, precisamente, a protagonista (Ana Kharima) é guiada por um desejo incessante de descobrir seu passado e, consequentemente, o autoconhecimento. O impulso trágico que leva a heroína a percorrer o destino do reconhecimento é motivado por ações que legitimam o sacrifício sofrido por ela no decorrer das três peças, mas, ao contrário, das heroínas gregas, tal qual Antígona, Ana Kharima não vive um conflito moral ou divino, seu conflito é muito mais de ordem psicológica e existencial, assemelhando-se às heroínas modernas, como: Sônia, de “Valsa Nº 6” (2004) ou Alaíde, de “Vestido de Noiva” (2004).

A escrita de APB passa a ser marcada por aspectos pontuais que tende a se repetir em todas as peças, criando um registro para as narrativas. Aspectos como: relação entre passado e presente, fragmentação da memória, estrutura trágica, fluxo psicológico, dualidade realidade- ficção etc, são alguns dos componentes que condensam a narrativa de APB, ressignificando os elementos da tradição em relação à construção de uma matriz estética própria. Devemos ter em vista que a dramaturga não inventa estruturas novas de criação dramática, pelo contrário, ela reafirma mecanismos da tragédia, dos mitos, da inserção do eu na obra, entre outros caracteres que balizaram e continuam a orientar a elaboração do gênero dramático. A autora

ao se apropriar de elementos consagrados pela tradição da narrativa ressignifica a forma dramática em favor do conteúdo autoficcional.

A autoficcionalidade inserida em um contexto de escrita dramática, em geral, esbarra na dificuldade de se identificar a voz do autor no texto, dada a ausência de um narrador, assim como o distanciamento das personagens com a figura do dramaturgo. Nesse sentido, ressalta- se a importância de estudos mais apurados sobre as narrativas que pretendem abarcar o gênero autobiográfico e o dramático, uma vez que este campo dramatúrgico está em crescimento e as estruturas teóricas aparecem direcionadas, em sua maioria, para a elaboração de uma autoficcionalidade relacionada à lírica e à prosa. Por ora, pretendemos analisar o discurso verificado nas três peças, apresentando um breve resumo dos elementos relevantes à cada narrativa. Faz-se pertinente traçar um perfil das peças, uma vez que os elementos presentes nas três obras se imbricam, criando uma só estrutura narrativa e, na sequência, analisaremos as questões específicas de cada uma delas, destacando os componentes mais representativos.

A primeira peça da trilogia é “A Morte nos Olhos”, história que conta a trajetória de uma moça (Moça/Ana Kharima) desmemoriada que é encontrada por uma senhora (Dona Maria) no interior do estado do Ceará. A linha dramatúrgica está centrada na incessante busca da Moça pelo retorno das suas memórias, travando um complexo diálogo com as demais personagens no intuito de descobrir sua identidade e os motivos que a levaram àquele lugar. No meio de crenças e rezas a Moça se depara com seu passado através de dois livros encontrados na sua bolsa: o primeiro livro relata a história dos mitos, tendo na figura da Medusa a personagem principal, e o segundo livro trata de uma história de amor (Kharima e Periam), em que as personagens, ao se encontrarem, repetem a história de todos os contos de amor fadados a um destino trágico. A história de amor, no entanto, parece inacabada, cabendo a Moça desempenhar o papel de autora da narrativa, tendo por incentivo as palavras da Dona Maria. As personagens da princesa e do príncipe, casal que representa essa história de amor, extrapolam o universo ficcional da narrativa criado pela Moça, passando a desempenhar no campo da realidade ações desenvolvidas pela a autora. Tal qual a Matrioshka que possui uma boneca inserida em outra, podemos verificar na peça a relação de uma história dentro de outra história que passam a dialogar entre si. À semelhança de “Um Sopro de Vida” (1978) de Clarice Lispector, o diálogo entre ficção e realidade não aparece de maneira amigável. Quando solicitada pela Moça (escritora da ficção) que vá até o Hades pedir à Medusa a sua morte, Kharima se ausenta da história, tal qual as heroínas modernas que preferem lutar pela sua própria vida à sucumbir em um destino trágico. A Moça assume o papel da personagem Kharima e vai até o Hades, dando início a uma atualização dos mitos das Górgonas e do Cão

Cérbero. A figura de Dona Maria possui uma postura duplamente relevante na narrativa, pois é ela que lança luz sobre a memória da Moça, contando sobre o momento em que a protagonista foi encontrada e, quando transfigurada na personagem da Medusa6, ela relata os acontecimentos que antecederam à chegada da Moça na cidade. Ao despertar da conversa com a Medusa, descrita como um sonho, a Moça recobra a memória, sendo aguardada por Elisa Martinez (a apresentação da personagem só é feita na peça “A Memória Ferida”) que revela seu verdadeiro nome: Ana Kharima.

A segunda peça, “A Memória Ferida”, se passa em dois planos, o da realidade presente em Montreal e o da memória em Paris. A peça inicia-se no plano presente quando Ana Kharima está em Montreal e encontra Stéphane, seu antigo namorado de Paris. O encontro dos dois torna-se o motivo desencadeador para as próximas ações, uma vez que foi por meio do diálogo com Stéphane que Ana Kharima expôs suas inquietações do passado. O clima de tensão entre as personagens aponta questões mal resolvidas no passado e que precisam ser discutidas para dar continuidade às ações no presente. Eles passam, então, a relembrar acontecimentos vivenciados, intercalando entre planos do passado e planos do presente. Os diálogos encaminham a narrativa para o que parece ser o conflito principal da peça, a saber: a procura de Ana Kharima por sua mãe, exilada durante a ditadura militar na America Latina. Para isso, a protagonista narra, no plano do passado, uma história que mistura ficção e realidade para contar a sua própria história e a da sua mãe; no entanto, Stéphane desconfia da sanidade mental da namorada e a interna em um hospital. Ana Kharima ainda tem a oportunidade de conhecer a sua mãe, mas é vítima dos desencontros gerados por sua estadia no hospital e na sua segunda oportunidade prefere não falar com a mulher. Algumas questões da peça “A Morte nos Olhos” que não ficaram bem resolvidas são recobradas, como: a história de vida da Moça que agora aparece enquanto um sonho de Ana Kharima, em que Stéphane está presente, assim como quem é Eliza Martinez etc.

A terceira peça, “Na Outra Margem”, conta o momento posterior ao encontro de Ana Kharima e Stéphane no café de Montreal. A peça inicia com a protagonista no hospital, após ter sofrido um acidente de carro e estar se recuperando das fraturas e dores que sentia. No hospital, Ana Kharima, que agora volta ser denominada pela “Moça”, tem alucinações com as personagens do seu pai e da sua mãe, em que estes aparecem revelando os motivos que os levaram a cometerem as ações descritas na peça “A Memória Ferida”. Em meio às

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Nas didascálias a dramaturga aponta que a personagem da Medusa deve ser encenada por quem faz a Dona Maria. Na narrativa é a Medusa que conta os reais fatos que levaram a Moça a estar naquele local, fazendo com que ela recobre sua memória.

alucinações, Ana Kharima finalmente encontra-se com sua mãe, ouvindo os motivos que a levaram à fugir do Brasil, deixando sua filha no interior do Ceará aos cuidados de quem a protagonista acreditava ser sua tia (Maria). O namorado (Stéphane) também aparece procurando por uma reconciliação, mas a Moça não aceita voltar para o ex-namorado, travando um diálogo que fica evidente as mágoas existentes entre os dois. O final da peça deixa em aberto o destino da Moça, uma vez que ao receber a visita do que parecer ser sua namorada, há uma reconciliação e a protagonista lê uma carta deixada pela sua mãe, mas não fica evidente em que se constituíram as ações transcorridas no hospital, se foram reais ou se não passaram de uma alucinação.