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CAPÍTULO II – Leituras Simbólicas do Texto Dramático

2.4 Caracterização das Personagens

2.4.2 Personagens Míticas

Personagem que tece a história, Dona Maria apresenta diferentes meios de interpretação, caracterizada, principalmente por seu viés dúbio. Ela não demonstra conflitos psicológicos, pessoais ou com as demais personagens. Pelo contrário, ela possui uma certeza

própria daqueles que conhecem seu destino. Responsável pelas ações realizadas pela Moça, Dona Maria conduz o percurso traçado pela protagonista levando-a, inconscientemente, a rememorar suas lembranças. É por essa característica que a senhora adquire importância na narrativa, firmando-se enquanto personagem onisciente, pois seus conselhos e histórias conduzem a Moça em direção ao conhecimento de si mesma.

As ações que acontecem ao longo da peça estão centradas nas histórias de Dona Maria e na perspectiva dela sobre as narrativas, mesmo quando assume o papel da Medusa. As histórias partem do momento em que a senhora encontrou a Moça semimorta até quando ela recobra a memória. Para tanto, Dona Maria assume a imagem de uma contadora de histórias que a tudo conhece, característica percebida graças à sua facilidade em manipular as palavras, assim como a larga percepção que tem dos elementos míticos da tradição. Sua incapacidade de se espantar com os acontecimentos da vida em seu espaço real ou no espaço ficcional permite que a narrativa assuma um viés fantástico, ao mesclar tempos e espaços variados dentro das estruturas da ficção, dos mitos e da realidade.

Dona Maria aparece em contraposição a Moça, pois enquanto a jovem representa um mundo subjetivo e psicológico, a senhora manifesta ações objetivas e funcionais, seja fazendo suas atividades diárias (rezar, ir à feira, etc.), ou transmitindo um pensamento arraigado na causalidade e na aceitação. Essa consciência baseada nas relações naturais e na aceitação fica clara no diálogo entre a Moça e Dona Maria quando a primeira pergunta: “Por que a senhora está vestida de branco?” e, Dona Maria responde: “Porque é preciso. Tem que ser assim toda sexta-feira”. (BEZERRA, 2010, p. 41) A falta de questionamentos não é vista pela ótica da ignorância ou da simples aceitação dos fatos, mas pela perspectiva daqueles que não possuem dúvidas, por terem em si a sabedoria necessária para lidar com questões do cotidiano.

Dona Maria desponta por sua característica fixa de personalidade, mantendo-se estável no plano narrativo, podendo, por sua vez, ser classificada como uma personagem linear. Esse caráter, porém, não diminui a importância da senhora para a narrativa, já que a consideramos mais do que uma personagem coadjuvante, responsável por manter o diálogo da protagonista; ela é vista como agente propulsor da narrativa, pois são suas histórias que proporcionam a continuidade das ações. Ações estas que são desenvolvidas pela Moça que ao escutar os conselhos da Dona Maria empreende numa jornada de autoconhecimento. Devemos destacar que são as palavras da senhora que fazem com que a fábula transcorra dentro dos conflitos e

reconhecimentos10 necessários para o desenrolar dramatúrgico. Como a Moira que tece o destino dos homens, Dona Maria, exerce uma influência sobre o destino da Moça, conduzindo-a em direção às descobertas e regulando as informações para que despontem no momento mais apropriado:

A Moça (com voz terna e triste): Você me conta de novo como foi que me

enontrou?

Dona Maria (agoniada): Ah, meu Deus do céu, eu já contei essa história mil

vezes!

A Moça (em tom de súplica): Conte de novo, por favor! Eu não consigo

compreender. Talvez se a senhora ficar me contando, repetindo essa história, eu possa ligar alguma coisa, me lembrar...

Dona Maria (cortante): Não é o momento. A Moça: Como?

Dona Maria: A hora de lembrar ainda não chegou. A hora é de descansar.

(BEZERRA, 2010, p. 38-39)

As didascálias apontadas no início da peça já indicam que a personagem da Medusa é vivenciada pela mesma pessoa que representa Dona Maria, criando uma relação estreita entre estas duas criaturas que dominam a ambientação simbólica da peça, nos planos mítico, real e ficcional. A Medusa no campo mítico desvenda as questões que são pertinentes a Moça, mostrando o seu passado e o que a levou ao sertão do Nordeste. Dona Maria, por sua vez, ajuda a Moça no plano da realidade, a desvendar o seu passado através da narrativa sobre os acontecimentos na vila e a incentivando para que dê continuidade à elaboração da narrativa ficcional de Kharima e Periam. No entanto, esse distanciamento parece proposital, pois quando é conveniente a presença da Moça no Hades, Dona Maria é a pessoa por traz dos incentivos: “Faça você mesma a sua história, minha filha. Vá ver essa Medusa” (Bezerra, 2010, p. 69).

Os estados de consciência da personagem transitam entre os aspectos religiosos e os cotidianos, criando uma forte ligação com o divino. O meio com que essa ligação é realizada não se torna relevante, pois ao mesmo tempo em que Dona Maria realiza ações atreladas ao culto católico, ela também possui uma ligação com aspectos da cultura afro-brasileira. Segundo a autora APB, em entrevista concedida, a figura da senhora, possui uma estreita

10

O termo reconhecimento aqui empregado diz respeito à agnorisis, ou seja, o momento em que o herói passa da situação de ignorância dos fatos para o conhecimento. Ana Kharima consegue o reconhecimento do seu passado através da Medusa.

relação com sua tia e mãe de criação, assim como, com sua mãe espiritual, praticante da Umbanda; estas duas pessoas influenciaram, consciente ou inconscientemente, a escritora para a construção da personagem Dona Maria, revelando caracteres importantes para a estruturação dramática.