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CAPÍTULO III – Narrativas da Leitora-Criadora

3.1 Categorias da Narrativa

3.2.1 Narrativa Mimética

As teorias que envolvem o conceito de mímese estão alicerçadas na perspectiva original desenvolvida por Aristóteles, a saber: a mímese é a representação de ações. Porém, mesmo tendo em vista que esta afirmação orienta os estudos a respeito do conceito de mímese, procuramos desvendar questões que abarcam a relação da imitação interligada à

construção da narrativa, encontrando, por sua vez, nas teorias evidenciadas por Paul Ricoeur (2010) os meios pelos quais podemos identificar a mímese não como mera cópia de uma ação, mas como uma imitação articulada na ação. Essa diferenciação faz sentido quando procuramos entender o conceito agregado ao desenvolvimento da narrativa e a estrutura diegética das peças analisadas. Se a mímese está articulada à ação, ela está diretamente pautada nos aspectos temporais que determinam a duração do acontecimento; este pensamento é seguido por Ricoeur quando o autor propõe relacionar as características temporais à ação, “[...] de onde procedem mais diretamente a própria capacidade da ação de ser narrada e talvez a necessidade de narrá-la” (2010, p. 96-97).

A transformação da ação em matéria narrada está baseada na organização dos símbolos, dos signos e justificadas por regras definidas que comportam a organização da poética. Nesta perspectiva, a narrativa da APB aponta para a descrição de símbolos que aparecem interligados aos componentes culturais e as experiências vivenciadas pela autora no plano real, incorporando à ação narrada elementos próprios do universo ficcional significativo. Precisamos ter em vista que, antes de tornar-se narrativa os elementos simbólicos são mediações próprias de uma experiência particular, incorporada aos efeitos culturais e institucionais. O que a autora manifesta, através da escrita, é uma fração da sua experiência, mediada pelos componentes externos vivenciados e agregados à própria formação. Na peça “A Memória Ferida”, a personagem de Ana Kharima do plano da realidade trava um diálogo com Ana Kharima do plano da memória, em que aquela sintetiza a premissa que guia a narrativa e, por conseguinte, parece ser o incentivo da autora para a construção da trilogia: “A história gira em torno de uma mãe e de uma filha tragicamente separadas pela ditadura militar. O cenário é o Brasil. Nele, mãe e filha se reencontram trinta anos depois” (BEZERRA, 2010, p. 156). A história descrita, ao mesmo tempo em que se torna o argumento da narrativa, cria uma relação de semelhança com a realidade, guiando as demais ações desenvolvidas nas peças.

Partindo do pressuposto que a ação é a imitação do humano, procuramos atribuir à ação e aos efeitos simbólicos integrados à experiência, a forma pela qual o sujeito se manifesta enquanto matéria narrada, pois suas ações são postas em evidência na estrutura de narrativa. Dessa maneira, encontramos nas ações desempenhadas pela Ana Kharima a imitação das ações vivenciadas pela autora, procurando estabelecer uma aproximação entre os universos compartilhados pelas duas.

A ação narrável, a qual Ricoeur se refere, está imbricada à ideia de uma representação que compreende o agir humano. Nesse sentido, é a mímese encontrada na própria ação

humana que constitui a matéria do que ele chama de pré-narrativa. Devemos destacar, então, que a mímese atrelada à narrativa não aparece relacionada ao conceito de cópia, tal qual desenvolvido por Platão, mas pressupõe uma representação baseada nas categorias do real, como foi apontado anteriormente por Ricoeur. Ao buscar na realidade a matéria para a narrativa, não espera-se que seja realizada uma transcrição dos acontecimentos da vida, mas que a realidade seja compreendida em suas especificidades de maneira que seja apropriada na narrativa. Essa ideia da mímese atualiza a perspectiva clássica desenvolvida por Platão e Aristóteles, atribuindo à representação do real uma valoração.

A perspectiva segundo a qual a mímese é atualizada confere um valor próprio às representações artísticas, pois não as confere-lhe uma concepção simplista de mera cópia da realidade. Desta forma, as ações constituem um valor em si mesmas, mas precisam estar interligadas de maneira que transmitam um discurso narrativo. Para Ricoeur:

[...] a narrativa não se limita a fazer uso de nossa familiaridade com a rede conceitual da ação. Acrescenta a ela aspectos discursivos que a distinguem de uma simples sequência de frases de ação. Esses aspectos já não pertencem à rede conceitual da semântica da ação. São aspectos sintáticos, cuja função é gerar a composição das modalidades de discursos dignos de serem chamados narrativos, quer se trate de narrativa histórica ou de narrativa de ficção. É possível explicar a relação entre a rede conceitual da ação e as regras de composição narrativa recorrendo à distinção, familiar em semiótica, entre ordem paradigmática e ordem sintagmática. (RICOEUR, 2010, p. 99)

Ao abordar as relações paradigmáticas e sintagmáticas, Ricoeur propõe uma avaliação formal do conteúdo apresentado nas narrativas em geral. Esta empreitada faz-se necessária tendo em vista que, mesmo compreendida a importância das ações, estas não são suficientes para a construção da história, precisando de conectivos discursivos que agreguem sentido ao texto produzido. Nesta perspectiva, o paradigmático, enquanto eixo vertical de substituição de signos por outros da mesma categoria, auxilia a transformar a vivência real em objeto criativo, como a mudança das características da realidade para a estrutura ficcional. O eixo sintagmático surge, em contrapartida, para dar sentido aos signos produzidos, integrando-os de maneira que sua correlação crie estruturas discursivas compreensíveis para o leitor.

Seguindo o raciocínio lógico da construção da narrativa, podemos identificar as concatenações presentes nas peças de APB, uma vez que são incorporadas às ações ficcionais signos e símbolos próprios do universo real da autora. Ao transpor as categorias simbólicas do real para o texto dramático, a autora revive suas experiências atualizando-as em outra forma discursiva, regida por convenções próprias da linguagem teatral. Segundo Ricoeur: “Ao passar da ordem paradigmática da ação para a ordem sintagmática da narrativa, os termos da semântica da ação adquirem integração e atualidade” (2010, p. 100). Acreditamos que o mesmo acorre com a passagem para o texto teatral.

As ações representadas nas peças analisadas suscitam questionamentos e propõem interpretações que correspondem à caracterização da protagonista, Ana Kharima. Podemos perceber que a personagem não possui características pessoais que a defina dentro do contexto da narrativa, mas são as motivações e impulsos que determinam suas ações. Sendo assim, as ações da personagem não são motivadas por questões ideológicas ou por uma visão ativa frente os acontecimentos traçados pela dramaturga, pelo contrário, as únicas motivações da protagonista são; na primeira peça, resgatar sua memória e; nas peças seguintes, encontrar a mãe que a abandonou. As ações são desempenhadas no nível dialógico em que as falas apresentam os próprios acontecimentos e despertam sentimentos recalcados, como no caso do trauma do abandono, vivenciado pela protagonista.

As questões que envolvem os traumas vivenciados pela Ana Kharima estão relacionadas a um universo interior da personagem, que é exteriorizado por meio da palavra e pelo diálogo com o outro. Tanto na primeira peça, quando ela é atacada pelo próprio namorado, quanto na segunda, quando surge a partida da mãe e o seu abandono, e na terceira com o encontro com os pais e o namorado, é o diálogo o responsável por constituir as ações realizadas. A palavra é o agente que potencializa a narrativa; portanto, a palavra é ação que revela e movimenta os acontecimentos passados em vista do presente e do futuro da existência inacabada.