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CAPÍTULO II – Leituras Simbólicas do Texto Dramático

2.5 Representação do Espaço

2.5.2 Interior e Exterior

A representação do espaço na peça “A Memória Ferida” é estabelecida pelas dualidades, identificadas nas contraposições entre passado e presente, masculino e feminino, interior e exterior. A ação transita por espacialidades díspares e ao mesmo tempo complementares que auxiliam a figuração da narrativa. Apontamos desde o início da peça a relação dual desenvolvida pela autora APB, quando são situados dois planos espaciais e temporais, respectivamente: o da realidade, no presente e o da memória, no passado. As ações transcorridas nestes planos estão situadas em um bistrô de Montreal, no estúdio de Stéphane em Paris e no café “Le Relais Bristol” na Suíça. Esta peça, em especial, possui a característica de transitar entre o diálogo e a narrativa de ações, de maneira que os diálogos realizados entre Ana Kharima e Stéphane potencializam a narrativa, presente no texto.

Pretendemos, assim, mostrar as dualidades existentes entre os espaços do bistrô e do café, sobretudo, em relação ao estúdio, pois enquanto espacialidades simbólicas eles constroem o universo interno e externo às personagens. O estúdio de Stéphane representa a interiorização das personagens num mundo de descobertas afetivas, estando dispostos a se exporem mais; é compreensível, então, que Ana Kharima tenha narrado a história da sua vida para um recém conhecido11. Da mesma maneira em que se edifica a confiança aparece a desconfiança, e os conflitos internos tendem a aumentar. Nos encontros em ambientes externos, a protagonista tende à criar um mecanismo de defesa com as demais personagens, tanto com o Stéphane quanto com sua mãe. No primeiro exemplo, Ana Kharima não cede às investidas do ex-namorado, permanecendo firme nas suas decisões, neste sentido, não são suas emoções ou as questões pessoais que dominam as ações, mas a razão pela qual os dois haviam rompido que adquire maior relevância. Com a mãe, as ações acontecem de maneira diferente, porém com princípios semelhantes. Desta vez, Ana Kharima não procura conversar com sua mãe em busca de um sentido para o seu abandono, ela simplesmente desiste do encontro ao vê-la, preferindo se manter distante do que considera ser uma pessoa racional e sem sentimentos. Essa racionalização da mãe é um subterfúgio que Ana Kharima encontra para não expor os seus sentimentos, camuflando o desejo íntimo de retornar à sua genitora.

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Na peça “A Memória Ferida”, Ana Kharima conta, por meio de uma suposta narrativa ficcional, a história da sua vida para Stéphane, revelando aspectos íntimos para seu recente namorado.

A relação entre interior e exterior leva-nos à uma contraposição entre as espacialidades figuradas nas peças “A Morte nos Olhos” e a “Memória Ferida”. A dialética é estabelecida, neste caso, pela condição de estrangeira com a qual Ana Kharima se coloca na última peça citada. Enquanto sujeito que está no exterior, que está fora dos limites do íntimo, o ser estranho/estrangeiro também nos remete à um Ser alheio a si mesmo e ao outro. O estrangeiro, nesse sentido, abarca uma imagem de alteridade que ao mesmo tempo em que afasta, pois em um primeiro momento o que é diferente assusta, também encanta. O relacionamento de Ana Kharima e Stéphane revela-se como um meio de expor aspectos que são estranhos e próprios do sujeito. Para a autora APB:

No desenrolar da intriga ambigüidade, tensão e neurose atingem o paroxismo e o medo diante da extrema alteridade instaura um espaço de incompreensão absoluta, de rupturas e fugas definitivas. Seguindo o fio da narração destas histórias dentro da história é, finalmente, num terreno neutro, numa terceira zona, em Quebec, que os personagens, abrem a caixa de

pandora, numa talvez última tentativa de purificação, de exorcismo dos

males fatais ou voluntários que se lhes acometeram. Uma vez mais, é a

narrativa, a reconstituição da história que atenua o terror da memória ferida.

(BEZERRA, 2007, p. 2)

A pluralidade de espaços representados na peça projeta um descentralizamento dos eixos que até então estavam centralizados na imagem da casa de Dona Maria. O universo ficcional expande-se para além das fronteiras, mas continuam a constituírem espaços definidos fisicamente; as cidades pelas quais a protagonista transita revela-nos uma tendência migratória, fazendo com que ela percorra lugares que lhe proporcione o encontro com seus “fantasmas” do passado. Segundo Paul Ricoeur (2007): “A cidade também suscita paixões mais complexas que a casa, na medida em que oferece espaço de deslocamento, de aproximação e de distanciamento” (p. 159). Ao empreender uma jornada no estrangeiro, Ana Kharima permite-se atravessar por sentimentos e relacionamentos que lhe proporcionam inquietações, desde as relações maternas às amorosas.

Na peça “A Memória Ferida” identificamos uma conexão entre o espaço da memória e os espaços geográficos (estúdio de Stéphane e café na Suíça) descritos no texto. Essa relação não acontece de maneira aleatória, mas deixa evidente, na narrativa, que existe uma conexão a partir da percepção sensorial vivenciada pela protagonista, tendo por base os lugares apresentados. A descrição espacial prescinde das estruturas genéricas de representação em

favor de um maior envolvimento das personagens com os espaços pelos quais decorrem as ações. Assim, o café suíço, não é qualquer café, mas o “Le Relais Bristol” e o estúdio adquire uma definição detalhada, ele localiza-se em Paris, Ménilmontant, na rua Boyer, número dez. Os espaços, assim como as pessoas, possuem a característica de evocar as lembranças, trazendo à tona vivências passadas. Ana Kharima é transportada para o passado e para o espaço do estúdio ao rever Stéphane e relembrar dos tempos em que se conheceram. É a memória compartilhada pelo casal que faz com que o espaço representado adquira significados; desta forma, são as interferências deles no espaço que tornam o estúdio um ambiente repleto de lembranças.