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3 O SIGNIFICADO DO “SER” FAMÍLIA GUARDIÃ DE SEMENTES

3.1 Considerando as sementes crioulas

instância do que é possível, do universo em potência, da condição de existência da matéria e, portanto, do vir a ser de todas as coisas do mundo”, considerado para todas as culturas ao longo da história.

Na perspectiva de Maturama (2001, p. 52), as sementes são uma “unidade autopoiética”, por “produzirem de modo contínuo a si próprio”. Considera que em um ser vivo existe um sistema autopoiético e que este se caracteriza em si, porque “ele próprio se levanta por seus próprios cordões, e se constituiu como diferente do meio por sua própria dinâmica, de tal maneira que ambas as coisas são inseparáveis”.

A autopoiese aplicada às sementes pode-se considerar que o processo de manipulação genética modifica com radicalidade a ontogenia das sementes, entendida como “a história das mudanças estruturais de um dado ser vivo” (MATURAMA, 2001, p. 107). O que em sua avaliação mudaria a organização da semente, portanto seria outra coisa.

“O que caracteriza o ser vivo é sua organização autopoiética. Seres vivos diferentes se distinguem porque tem estruturas distintas, mas são iguais em organização”. (MATURAMA, 2001, p. 55). O autor ainda complementa que a autopoiese é o mecanismo “que faz dos seres vivos sistemas autônomos”, porém, o que isso pode significar quando se fala em gen terminator?

A mercantilização da semente quebra a unicidade da semente. Lacey, afirma que

A mercantilização baseia-se assim na quebra da unidade da semente, de um lado como geradora de uma colheita, de outro como reprodutora de si mesma. Liga-se dialeticamente com a transformação das relações sociais na agricultura na direção de um crescente domínio do agronegócio (LACEY, 2000, p. 4).

As técnicas tradicionais de seleção de sementes crioulas, portanto, é um saber culturalmente aprendido e transmitido, de domínio de quem as produz. Este está associado também às sementes tradicionais.

Ao perder a semente crioula, a necessidade de comprar no mercado, leva a trazer para casa o que mercado oferece e não, necessariamente, a variedade que seria mais apropriada para o sistema desenvolvido e adaptado as condições ambientais e econômicas.

As sementes crioulas trazem em si a diversidade, com base genética ampla, as diferentes espécies/variedades crioulas manejadas pelas famílias (Figura 02), atendem a necessidades específicas de hábitos alimentares, adequadas as suas

condições, fazem parte de um sistema de complexo, que se mantém em reprodução.

Figura 02 - Família guardiã com suas variedades de milho

Fonte: Acervo da autora (2013).

A agricultura moderna se caracteriza pelo uso de um “pacote tecnológico” que envolve: mecanização para redução da mão de obra; aumento de insumos para aumentar rendimentos; controle químico de ervas, patógenos e insetos; e, o uso de variedades de sementes melhoradas, usados simultaneamente devido a interdependência de cada um (QUEROL, 1993, p. 18).

Junto às sementes adquiridas, em especial as transgênicas, estão incorporadas outras necessidades, pela lógica do mercado. O uso de fertilizantes químicos de alta solubilidade, agrotóxicos e secantes passa a ser recorrente. O avanço da ciência, através da biotecnologia, aproximou cabalmente a agricultura da indústria, não sendo mais possível separar as sementes com características definidas de seu produto, a exemplo da soja resistente ao herbicida, que está associada ao glifosato.

Moreno (2006) traz duas abordagens referentes as transformação e dominação econômica das sementes pelo capital. Primeiro considera as colocações de Shiva

[...] as sementes, então, apresenta ao capital um empecilho biológico simples: dadas as condições apropriadas, ela se reproduz e se multiplica. O moderno cultivo de plantas tem sido em primeiro lugar uma tentativa de remover esse empecilho biológico e as novas tecnologias são as ferramentas mais recentes para transformar em mera matéria prima, o que é, simultaneamente, meio de produção e produto (Shiva 2001 apud Moreno, 2007, p. 7).

Em segundo, aborda “o desacoplamento entre semente e cereal” das sementes iniciado com o processo da hibridação (MORENO, 2006, p. 7).

Todas estas condições alteram radicalmente as dinâmicas da vida do mundo rural, das relações de reciprocidade que veio garantindo a adaptação de sementes no decorrer da história.

As sementes segundo Shiva (2001) possuem diferentes facetas, sendo simultaneamente entidade biológica, parte de sistemas ecológicos e produto de desenvolvimento humano e, neste último sentido, compatíveis com valores culturais e organização social locais.

O processo de evolução e adaptação que as sementes crioulas, são identificadas por Carneiro da Cunha (2013) em seus estudos sobre as sementes da Paixão no Estado da Paraíba, a autora relata que as sementes são submetidas a cada safra/ano, que se encontram condicionadas, tanto as questões ambientais e práticas de manejo, assim como das práticas de troca e intercâmbio do material genético que as famílias realizam através das relações de reciprocidade.

As famílias guardiãs de sementes crioulas vêm cumprindo um papel de fundamental importância. Montam seus reservatórios de sementes referenciados em suas tradições. Com sistemas produtivos específicos, atua na comunidade constituindo contextos sociais, através de relações como a reciprocidade, socializa sementes, produto de seus trabalhos e do conhecimento associado a elas. Sementes estas que circulam livres, que possuem sabores e aromas, com significado diferente, dependendo do contexto em que a comida é preparada e consumida.

A circulação de variedades crioulas é comum entre famílias que desenvolvem uma agricultura de base tradicional, mas também ocorre entre outras famílias agricultoras, a exemplo das famílias guardiãs de sementes crioulas de Ibarama onde

algumas delas produzem fumo. Porém, como aponta Emperaire (2008), não se trata unicamente de uma coleção de variedades de sementes, são processos contínuos de adaptação.

Assim, a coleção de variedade de mandioca cultivadas por uma agricultora não é um conjunto estático, mas uma entidade dinâmica, em contínua interação com seu meio ambiente humano e ecológico. Essa grande diversidade é construída tomando por base a circulação de material genético e dos saberes associados. (EMPERAIRE, 2008, p. 348)

Da forma ocorre com as famílias guardiãs de sementes crioulas, considero ainda a manutenção das sementes pela trans-geracionalidade por onde determinadas espécies percorrem. As sementes e as famílias guardiãs passam a significar resistência ao processo de erosão cultural e genética, em épocas de hegemonia da agricultura moderna, enquanto alternativa de vida e de relação social e com o ambiente natural. Projetos coletivos baseado na tradição se contrapõem a modernização sustentada no individualismo.

Existe um conjunto de organizações sociais no mundo todo que tem defendido sistemas de reproduções sociais que mantém as sementes crioulas. Constituindo redes que vão ganhando territórios em diversas esferas e espaços.