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A representação de Constantino, o imperador que iniciou a Cristianização do Império, processo este que para o advogado do Fisco seria a causa dos males do seu presente, encontra- se no livro segundo, que utiliza Eunápio como fonte principal do período, onde é encontrado em nada menos que 34 dos seus 55 capítulos, sendo que 6 dos 21 restantes são referentes aos jogos seculares, que visivelmente Zósimo coloca no início do livro para introduzir de forma

implícita, porém altamente negativa, Constantino, destacando-o como o culpado pelo abandono do Império Romano pela Fortuna antes mesmo sequer dele iniciar o seu reinado.

Depois de descrever e realçar a importância dos jogos seculares para o Império, afirmando que ‘’ graças a sua execução manteve intacto o Império Romano’’ (HISTÓRIA

NOVA, 2,5), digressão esta que, de acordo com Daniel Scavone, é uma tentativa do classicista

reafirmar ‘’ a grande antiguidade’’ dos cultos ancestrais frente à investida da exaltação da antiguidade do Cristianismo empreendida pelos autores das Histórias Eclesiásticas (SCAVONE, 1970, p. 62), Zósimo coloca logo no capítulo seguinte uma profecia declamada pelo oráculo no terceiro dia de celebração, onde se é ressaltada, repetitivamente, a necessidade dos romanos continuarem a realizar seus rituais (HISTÓRIA NOVA, 2,6). Depois de terminar de abordar os jogos seculares, Zósimo evidencia que:

O Império dos romanos esteve a salvo [...] Porém quando, ao fazer Diocleciano cessão do trono, foi abandonada a cerimônia, pouco a pouco veio abaixo, e imperceptivelmente sua maior parte chegou a cair nas mãos dos bárbaros, segundo os próprios acontecimentos nos ensinam [...] E quando Constantino e Licínio foram cônsules já pela terceira vez, se cumpria o prazo de cento e dez anos em que, segundo prescrevia o costume, haveria de celebrar-se a cerimônia. Como isto não se observou, deveram nossos assuntos chegar ao estado de infortúnio em que agora nós estamos (HISTÓRIA NOVA,

2,7).

Posteriormente, Zósimo escreve a primeira característica biográfica acerca de Constantino na sua obra: ‘’ tido pelo imperador Constâncio do trato com uma mulher nem reputada nem legalmente desposada’’ (HISTÓRIA NOVA, 2,8). Segundo Candau, na sua tradução da História Nova, esta é uma das 2 versões mais presentes nas fontes antigas acerca da mãe de Constantino, Helena, enquanto que a outra visão popular é a de que ela fora a primeira esposa de Constâncio (CANDAU MORÓN, 1992, p. 77). Esse dado biográfico não é colocado inocentemente na História Nova, visto que Zósimo não somente utiliza a versão biográfica mais prejudicial ao primeiro imperador cristão, mas também a afia e coloca-a em destaque. Ao discursivamente decair as origens de Constantino e culpá-lo pelo abandono dos cultos ancestrais e pelas calamidades que sofreu e sofria o Império, a História Nova procura deslegitimar o que representou o seu reinado. Com isso, podemos observar que, antes mesmo de surgir cronologicamente na obra, o reinado de Constantino é duplamente invocado para ser, em seguida, desqualificado. Deslegitimado antes de ser sequer abordado.

E as caracterizações depreciativas acerca de Constantino são constantes, sendo ferramentas de Zósimo utilizadas no intuito de depreciar não somente a sua pessoa, mas também

o seu governo. Ele foi representado na História Nova como sendo habitualmente desleal com o que prometia (HISTÓRIA NOVA, 2,19/2,28/2,29), ‘’ falso por natureza’’ (HISTÓRIA NOVA,

2,10), impiedoso (HISTÓRIA NOVA, 2,28/2,29/2,40) e como sendo contra a natureza por ter

matado o filho (HISTÓRIA NOVA, 2,29). Além disso, mesmo havendo o relato de algumas das guerras vitoriosas do imperador, não há sequer uma caracterização tecida por Zósimo de Constantino como habilidoso em tal labor. Suas qualidades são silenciadas dentro do possível, enquanto que seus defeitos são ressaltados discursivamente.

Ao abordar a stasis entre Constantino e Magêncio na famosa batalha da ponte milvia, ocorrida nos arredores de Roma, em que a vitória de Constantino é atribuída pelas Histórias Eclesiásticas como sendo causada pela intervenção do deus dos cristãos, Zósimo coloca como se tal vitória tivesse ocorrido por uma ajuda do sagrado (pagão) e que esse resultado era uma prova do poder dos oráculos:

Constantino avançou com seu exército até Roma, acampando na altura da planície que há em frente a cidade [...] E Magêncio se encerrou para efetuar sacrifícios aos deuses [...] Como {Magêncio} encontrou um oráculo que apontava de maneira forçosa que haveria de sucumbir penosamente quem fizesse algum dano aos romanos, considerou a profecia favorável para si, já que ele combatia contra aqueles que marchavam sobre Roma com intenção de tomá-la. Porém o ocorrido depois revelou qual era a verdade dela. Pois uma vez que Magêncio sacou suas tropas para fora de Roma e depois de haver cruzado a ponte que ele mesmo havia mandado erguer, uma imensa quantidade de corujas pousou no muro até cobri-lo [...] Porém quando os cavaleiros {de Magêncio} cederam, se deu a fuga com os que restaram, precipitando-se pela ponto instalada sobre o rio que banhava a cidade. E como as madeiras não puderam suportar o peso e quebraram, o mesmo Magêncio foi arrastado pelo rio junto a muitos outros (HISTÓRIA NOVA, 2,17).

Podemos conceber a passagem anterior da História Nova como uma resposta à forma como a corrente das Histórias Eclesiásticas abordava o acontecimento em questão, colocando que a vitória de Constantino teria ocorrido pela vontade divina cristã. Tal justificativa pode ser encontrada, por exemplo, na obra de Eusébio de Cesarea, onde ele afirma que

Da mesma forma que, nos tempos de Moisés e da antiga piedosa nação dos hebreus, ‘ precipitou no mar os carros do faraó e seu exército, a flor dos seus cavaleiros e capitães; o mar Vermelho os tragou, o mar os cobriu’, assim Magêncio e os hoplitas e lanceiros de sua ‘ escolta afundaram na profundeza como uma pedra’ quando, dando as costas ao exército que vinha da parte de Deus com Constantino, atravessava o rio que lhe cortava o caminho e que ele mesmo havia unido e bem pontoneado com barcas [...] Assim pois, desfeita a ponte estendida sobre o rio, a passagem afunda e as barcas se precipitam de um golpe no abismo com todos os seus homens [...] {Magêncio e seus

homens} ‘ afundaram como chumbo nas águas impetuosas’, como já predisse

o oráculo divino {grifo nosso} (HISTÓRIA ECLESIÁSTICA, 10,9,5/7).

A utilização historiográfica do sagrado (pagão) por Zósimo para justificar o porquê de Constantino ter derrotado Magêncio na batalha da ponte milvia deve ser compreendida como uma reação à explicação presente na corrente historiográfica predominante no seu tempo, a das

Histórias Eclesiásticas, que conferia ao sagrado (cristão) o papel de ter possibilitado a vitória

de Constantino nesse enfrentamento.

Referindo-se ao início do reinado de Constantino, o classicista coloca que o imperador, mesmo não respeitando as antigas tradições, sabia que elas eram uteis e que escutava os adivinhos por saber que o que eles predisseram sobre ele era verdade (HISTÓRIA NOVA, 2,28). Mais adiante, o próprio relato da conversão do imperador à nova religião é utilizado discursivamente para legitimar o paganismo e depreciar o Cristianismo. Segundo Zósimo, depois de matar seu filho Crispo e, em seguida, sua própria esposa Fausta por terem tido um caso, Constantino:

dirige-se aos sacerdotes, dos quais reclama a purificação das suas faltas. E quando o dizem que não conhecem remédio algum que possa purificar de semelhantes atrocidades, um egípcio [...] assegurou em presença de Constantino que a doutrina dos cristãos suprimia qualquer erro e portava a mensagem segundo a qual os ímpios que tomavam parte nela caiam no instante purificados de qualquer falta. Constantino, recebendo com a maior complacência semelhantes palavras, abandonou as crenças ancestrais [...] e deu início a sua impiedade entrando em desconfiança com a adivinhação. Pois como através dela haviam-se sido muitos venturosos sucessos que haviam tido efeito, temia se desse o caso também a outros, quando se fizesse relatar informação hostil a sua pessoa, os fosse predito o futuro. Em tal parecer decidiu a acabar com essa prática (HISTÓRIA NOVA, 2,29).

E assim, Constantino teria sido convertido ao Cristianismo. Porém, como podemos observar na passagem anteriormente citada, o advogado do Fisco afirma que ele continuava a acreditar na prática da adivinhação, somente perseguindo-a por causa do seu medo dela profetizar algo hostil ao mesmo. Sua adesão ao Cristianismo seria somente em benefício próprio, mesmo sabendo da verdade dos cultos ancestrais. No íntimo, o primeiro imperador cristão seria pagão no discurso da História Nova, fabricando-se assim nessa obra uma visão dualista do governante: Constantino cristão na esfera pública versus Constantino pagão na esfera privada.

Zósimo ressalta que a população de Roma rejeitara o abandono das antigas tradições, fazendo o imperador buscar uma nova sede, longe de tais hostilidades. E aqui o autor aborda a

transferência da capital imperial de Roma para Constantinopla, a única abordada na obra.27 O imperador teria inicialmente começado a construir uma cidade entre Trôade e a antiga Tróia, porém, quando mudou de ideia ‘’ dirigiu-se a Bizâncio. Impressionado pela situação da cidade, resolveu engrandecê-la o quanto fosse possível e adequá-la para ser sede imperial’’ (HISTÓRIA

NOVA, 2,30). O que se segue é uma imensa descrição das edificações citadinas da que era

Bizâncio e passou a ser Constantinopla, relato esse extremamente detalhado se levarmos em conta o estilo factual e pouco descritivo da História Nova, possuindo inclusive uma ênfase no elemento pagão da nova capital:

{Constantino} construiu também um palácio apenas inferior ao de Roma. Se ocupou igualmente de adornar o hipódromo com todo luxo de detalhes, incorporando-lhe o templo dos Dióscuros, cujas estátuas podem-se ver ainda hoje em dia situadas sobre os suportes do hipódromo. Colocou também em uma parte do hipódromo o trípode do Apolo de Delfos, trípode que porta consigo mesmo a imagem de Apolo. No extremo de um dos quatro pórticos integrados em um imenso foro existente em Bizâncio [...] erigiu dois templos onde colocou imagens; em um deles colocou uma de Reia [...] No outro extremo pôs uma Fortuna de Roma (HISTÓRIA NOVA, 2,30).

Apesar de ter escrito tal feito realizado por Constantino, o classicista insere na sua descrição a afirmação que o imperador teria mutilado a estátua da deusa Reia, logo depois de Zósimo realçar a importância da desta divindade (HISTÓRIA NOVA, 2,30). Em seguida, escreve que ele ‘’ continuou sem lutar guerra alguma com êxito’’ e que se entregara a uma vida de moleza (HISTÓRIA NOVA, 2,31). De acordo com Candau, a caracterização de Constantino como tendo uma vila mole, que não seria verdade por causa de suas muitas e robustas campanhas militares, é encontrada frequentemente na propaganda contra o mesmo (CANDAU MORÓN, 1992, p. 81).

Segundo Zósimo, nesse período de moleza, Constantino ‘’ se dedicou a realizar a distribuição de comida entre o povo de Bizâncio, distribuição dela que este tem continuado a beneficiar-se até hoje em dia {grifo nosso}‘’ (HISTÓRIA NOVA, 2,31). Nessa passagem, podemos observar que Zósimo tinha ciência da situação social em Constantinopla durante o seu presente.

As reformas administrativa, fiscal e militar implantadas por Constantino não somente são objeto de relativo grande interesse e detalhamento na obra, mas também são amplamente

27 As demais transferências da capitalidade do Império, tanto a para Milão quanto a para Ravena, não se encontram

rechaçadas na mesma (HISTÓRIA NOVA, 2,33/2,34/2,38), chegando a até mesmo ser afirmado, referindo-se à fiscal, que

Seguiu Constantino gastando os impostos em obséquios que não estavam justificados, mas se dirigiam a gente desmerecedoras deles e inútil, com o qual resultava oneroso aos contribuintes e enriquecia a homens incapazes de prestar serviço algum. Pois para ele a prodigalidade era motivo de honra [...] {o aumento dos impostos fez com que} as mães chegassem a vender seus filhos, e os pais a conduzir suas filhas ao prostíbulo [...] com tais impostos deixou esgotadas as cidades (HISTÓRIA NOVA, 2,38).

Referindo-se à reforma militar empreendida por Constantino, que transferiu as legiões estacionadas no limes para as cidades, Zósimo coloca que a mesma é uma das causas dos males do seu tempo:

Outra coisa levou a efeito Constantino que facilitou aos bárbaros a penetração no território submetido aos romanos [...] também com esta salvaguarda {construída pela defesa das fronteiras por Diocleciano} acabou Constantino quando tirou das fronteiras a maior parte das tropas para estabelecê-las nas cidades, que não necessitavam proteção; com isso privou de amparo a aqueles que se viam golpeados pela pressão dos bárbaros, sobrecarregou aquelas cidades que viviam tranquilas com os prejuízos que acarretavam a presença dos soldados –pelo qual a maior parte delas tenha ficado deserta- enervou a tropa, entregada aos espetáculos e à moleza, e, em uma palavra, pôs os cimentos e plantou a semente da ruína que até hoje encontra-se nossos assuntos públicos (HISTÓRIA NOVA, 2,34).

O enxuto relato da morte do primeiro imperador cristão é utilizado pelo advogado do Fisco para reforçar o mal que para ele representou o governo de Constantino: ‘’ Depois dos danos que todas estas disposições {reformas} infligiram ao Estado, morreu Constantino de Enfermidade’’ (HISTÓRIA NOVA, 2,39).

De acordo com Victoria Gerhold, desde a segunda metade do século IV há a difusão na historiografia pagã acerca de uma lenda negra acerca do imperador Constantino, que tinha como finalidade principal propagar uma versão degradante da conversão do imperador ao novo credo em oposição à versão predominante sobre a questão elaborada por Eusébio e seus sucessores das Histórias Eclesiásticas, que é composta de 6 diferentes temas, que nem sempre estão presentes em determinada versão da lenda:

a) a baixa origem familiar de Constantino; b) a brutalidade e a cobiça do imperador; c) o assassinato de césar Crispo e da imperatriz Fausta; d) a conversão e o batismo de Constantino; e) a fundação de Constantinopla; f) a lenda negra de santa Helena (GERHOLD, 2013, p. 188-9).

Como podemos constatar, a versão da vida Constantino presente em Zósimo possui todos os 6 temas característicos da lenda negra acerca desse imperador. Ou seja, a representação deste naquele não é somente bastante negativa, mas também detalhada e minuciosa. Segundo Gerhold, a História Nova é a única obra pagã em que é explicitada uma razão para a morte de Fausta e Crispo (uma suposta relação carnal entre os mesmos), além de que a obra, em conjunto com o Epítome dos Césares, é um dos testemunhos pagãos diretos mais importantes acerca de Constantino (GERHOLD, 2013, p. 189/98).

Apesar da representação de Constantino ser extremamente negativa, o mesmo é pintado de forma positiva entre os capítulos 2,22 e 2,28. O que, como abordamos no capítulo anterior, confirma a tese de Dimitris Krallis (KRALLIS, 2014) de que esses capítulos, ao contrário dos outros do livro, que são baseados em Eunápio e possuem uma visão abertamente negativa de Constantino, tiveram como matéria-prima uma fonte pagã pró-constantiniana hoje perdida, a que Krallis identifica como Praxágoras, fonte essa que Zósimo manteve o itinerário pró- Constantino.

Em síntese, a imagem de Constantino presente na História Nova é composta dos aspectos opostos aos que eram incumbidos aos bons imperadores pela historiografia antiga clássica elencados por Greg Woolf (WOOLF, 2012, p. 234-5). A representação de Constantino, que o fabrica como impiedoso, depreciador das tradições e dos direitos da elite, criador de impostos e fracassado na guerra, é, antes de tudo, a imagem máxima do que um imperador não devia ser. Ao construir este Sujeito da História, revivendo-o pela sua narrativa, a História Nova procura deslegitimar o que representou para a História Romana o seu governo, que foi o abandono dos cultos ancestrais em detrimento do Cristianismo.

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