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Espaços e catástrofes em Zósimo: religião e poder na História Nova (séculos V e VI d.C.)

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

CURSO DE HISTÓRIA

RAUL FAGUNDES COCENTINO

ESPAÇOS E CATÁSTROFES EM ZÓSIMO: Religião e poder na História Nova (séculos V e VI d.C.)

NATAL/RN 2017

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RAUL FAGUNDES COCENTINO

ESPAÇOS E CATÁSTROFES EM ZÓSIMO: Religião e poder na História Nova (séculos V e VI d.C.)

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da professora Doutora Lyvia Vasconcelos Baptista, para avaliação da disciplina Pesquisa Histórica II.

NATAL/RN 2017

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RAUL FAGUNDES COCENTINO

ESPAÇOS E CATÁSTROFES EM ZÓSIMO: Religião e poder na História Nova (séculos V e VI d.C.)

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para avaliação da disciplina Pesquisa Histórica II.

Aprovado em: ___/___/____.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________ Prof. Lyvia Vasconcelos Baptista

(Orientadora / UFRN)

___________________________________________________________________________ Prof. Marcia Severina Vasques

(UFRN)

___________________________________________________________________________ Prof. Wicliffe de Andrade Costa

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AGRADECIMENTOS

À minha querida namorada Daniele Cristina Pereira da Silva, que sempre me deu apoio e incentivo para eu continuar, apesar das dificuldades, os meus estudos que culminaram na elaboração da presente monografia.

Aos meus pais, Hildebrando e Lúcia, por terem, além de me apoiado, possibilitado que durante toda a minha vida eu tivesse excelentes condições de estudo.

À minha orientadora professora Lyvia Vasconcelos Baptista, que desde os primeiros semestres do curso orientou-me nos meus estudos sobre a Antiguidade, fazendo com que eu me apaixonasse ainda mais pela área e aprimorasse meus conhecimentos. Seus ensinamentos foram fulcrais para eu me tornar o pesquisador que hoje sou.

Aos meus professores do Departamento de História da UFRN, que sempre foram muito receptivos às minhas dúvidas e questionamentos e muito contribuíram para a minha formação intelectual, dentre eles Marcia Severina Vasques, Wicliffe de Andrade Costa, Roberto Airon da Silva, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Francisca Aurinete Girão Barreto da Silva, Juliana Teixeira Souza, Haroldo Loguércio Carvalho, Thyago Ruzemberg Gonzaga de Souza, Raimundo Nonato Araújo da Rocha, Renato Amado Peixoto, Pablo Gomes de Miranda, Helder do Nascimento Viana, Carmen Margarida Oliveira Alveal, Maria Emília Monteiro Porto, Margarida Maria Dias de Oliveira, Vanessa Spinosa, Leilane Assunção da Silva e Thábata Araújo de Alvarenga.

Aos meu amigos e colegas do curso de História e do Téspis, Grupo de Diálogos e Práticas de Teatro Grego, que tanto me deram sua amizade quanto me ajudaram na minha caminhada acadêmica através de reflexões, críticas e dicas de leitura.

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RESUMO

Durante a Antiguidade Tardia, o Império Romano passou por diversas transformações religiosas, políticas, culturais, administrativas, territoriais, econômicas e sociais que afetaram o modo como o mesmo era pensado, resultando na produção de releituras diversas na historiografia do período. Em contraste à vertente cristã da História, que, devido ao processo de cristianização do Império, estava tornando-se mais predominante e popular, há o surgimento da corrente ´´classicista´´, composta (predominantemente) por historiadores pagãos que escreviam, em grego ático, utilizando uma forma de escrever a História inspirada nos escritores da Antiguidade Clássica, uma versão não-cristã (pagã) da História do Império Romano. Poucas obras escritas por estes historiadores sobreviveram até a atualidade. Chegando até os nossos dias praticamente intacta e composta de 6 livros, a História Nova, fabricada provavelmente durante os reinados de Anastásio (499-518) e Justino (518-527), foi escrita no Império Romano Oriental pelo advogado do Fisco e cômite Zósimo. Nela, o autor, utilizando como fontes outros historiadores, especialmente Eunápio de Sardes, escreve acerca do passado romano, procurando expor os motivos que teriam levado à decadência e ao fim dos seus tempos áureos de Roma. Observamos que Zósimo, influenciado pelas relações de poder em que estava inserido, teceu, através das suas considerações sobre indivíduos, localidades, fatos e deuses, uma espacialidade imperial romana no seu discurso histórico. A presente monografia possuí como objetivo analisar como foi possibilitada e construída tal imagem do Império Romano na História Nova, especialmente quando foram utilizadas discursivamente catástrofes para qualificar e desqualificar espaços do Império, como Roma, Constantinopla e Atenas.

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ABSTRACT

During Late Antiquity, the Roman Empire underwent various religious, political, cultural, administrative, territorial, economic and social transformations that affected not only it, but also how it was thought, resulting in the production of diverse re-readings in the historiography written in the period. In contrast to the christian version of history, which, due to the process of Christianization of the Imperial State, was becoming more prevalent and popular, there is the emergence of the ´´classicist´´ chain, composed (predominantly) of pagan historians writing in greek attic, using a way of writing History inspired by the way that the writers of the Antiquity did, a non-christian (pagan) version of the History of the Roman Empire. Few works written by these historians survived until nowadays. Surviving practically intact and compose of 6 books, the New History, probably made during the reigns of Anastasius (499-518) and Justin (518-527), was written by the lawyer of the Treasury and count Zosimus. In his work, Zosimus, using as sources others historians, especially Eunapius of Sardis, writes about the roman past, trying to expose the reasons that would have led to the decadence and the end of the golden times of Rome. We observe that Zosimus, influenced by the power relations in which he was immerged, wove, through his considerations about individuals, localities, facts and gods, a roman imperial spatiality in his historical discourse. This monograph aims to analyze how this image of the Roman Empire in New History was made possible and constructed, especially when catastrophes were used discursively to qualify and disqualify spaces of the Empire, such as Rome, Constantinople and Athens.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...8

2 A HISTÓRIA NOVA E ZÓSIMO EM DISCUSSÃO...15

2.1 ZÓSIMO E SUA ESCRITA DA HISTÓRIA...18

2.2 A DATA DA HISTÓRIA NOVA...24

2.3 A HISTÓRIA NOVA E SUAS FONTES...26

3 A VISÃO RELIGIOSA DE ZÓSIMO...37

3.1 CONSTANTINO...41

3.2 JULIANO...47

4 O USO HISTORIOGRÁFICO DAS CATÁSTROFES NA CONSTRUÇÃO DA ESPACIALIDADE DA HISTÓRIA NOVA...53

4.1 ROMA OU CONSTANTINOPLA: QUAL SERIA O CORAÇÃO DO IMPÉRIO?...56

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...60

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1- INTRODUÇÃO

Muitas vezes me admirei de como, embora a cidade dos bizantinos {Constantinopla} se havia elevado a tamanha altura que nenhuma outra pudesse a protagonizar em prosperidade ou extensão, nenhuma profecia havia sido dada aos nossos antepassados acerca do seu caminho a uma sorte maior (HISTÓRIA NOVA, 2,35).

o espírito maléfico que administrava as sortes humanas induziu a aqueles que então regiam os assuntos da cidade {de Roma} a mais infeliz das ações. Decidiram, em efeito, completar o que faltava {da quantia para manter a cidade a salvo de Alarico} mediante os adornos dos deuses [...] imagens mantidas com vistas às celebrações sacras e providas do boato que eram incumbidas de guardar a cidade eternamente aventurosa [...] não somente despojaram as imagens mas também inclusive fundiram algumas delas que eram feitas de ouro e prata, entre elas também as do Valor, que os romanos chamam Virtus: aniquilada a qual, se extinguiu quanto de valor e excelência havia entre os romanos {da cidade de Roma} (HISTÓRIA NOVA, 5,42).

Como vemos e concebemos o local onde vivemos? Como relacionamos os diferentes locais que compõem nosso território? O que é o nosso presente e como o mesmo foi possibilitado? Como pensamos nosso passado e futuro? Qual teria sido o nosso passado e como será o nosso futuro? Na Antiguidade Tardia, o historiador romano Zósimo escreveu a sua

História Nova com o pano de fundo dessas reflexões. Considerando a situação do seu presente

como calamitosa, ele realizou sua empreitada historiográfica refletindo não somente sobre o passado do Império, mas também como o mesmo deveria ser. Nas passagens desse historiador no início do presente trabalho, podemos perceber que Zósimo coloca Roma como decadente no passado e Constantinopla como uma cidade com um grande futuro de prosperidade previsto pelos deuses. Qual é a espacialidade do Império Romano1 que ele fabrica e veicula na sua obra? Além disso, como foi possibilitada de ser construída?

Ao longo dos séculos IV e V d.C., o Império Romano passou por um conjunto de transformações políticas, religiosas, culturais, administrativas, sociais, territoriais e econômicas que o mudaram profundamente. Atualmente, utilizam-se periodizações que colocam este novo período como pós-clássico, como o é a que empregamos neste trabalho, a de Antiguidade

1 De acordo com o geografo Aluísio Ramos, o conceito de espacialidade ´´ exprime uma organização geral de um

determinado espaço num determinado tempo´´ (RAMOS, 2002, p. 65). Segundo o mesmo autor, ´´ uma espacialidade é uma certa forma de organização geral do espaço social que apresenta características predominantes que a qualificam e a diferenciam historicamente das outras [...] a noção de espacialidade traz consigo a ideia de processo em permanente movimento, ou seja, não se trata do espaço em si, como objeto analítico, mas do espaço na história, pensado como espaço social, não sendo uma categoria independente da realidade´´ (RAMOS, 2002, p. 68).

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Tardia.2 Porém, como mostraremos mais adiante, parte dos próprios historiadores da época reconheciam-na como diversa da dos tempos áureos. Abordemos brevemente uma parte dessas alterações.

As relações de poder entre os diferentes credos dentro do Império foram profundamente alteradas. Devido ao Édito de Milão de 313, decretado por Constantino e Licínio, os cristãos adquiriram a liberdade de culto, fazendo com que as perseguições e expropriações contra os mesmos, medidas imperiais adotadas desde Diocleciano para garantir-se a unidade religiosa (pagã) do Império, fossem desfeitas (CARLAN, 2009, p. 64; EHRMAN & JACOBS, 2004, p. 3)3. Além disso, o Cristianismo adquiriu tamanha proeminência dentro da sociedade romana frente ao paganismo ou helenismo, que se tornou a religião dominante a partir do reinado de Constantino (306-337), exceto durante o breve governo de Juliano (361-363). Depois deste, todos os outros que ocuparam o trono foram cristãos.

Este processo de Cristianização, tanto do Estado Imperial quanto da sociedade romana, que fez com que os bispos adquirissem elevada proeminência, ocasionou a que, gradualmente, os cultos cívicos, característicos do período clássico, perdessem sua proeminência no Império, resultando que não somente parassem de ser financiados pelo poder imperial e que o Édito de Tessalônica tornasse o Cristianismo a religião oficial do Império, mas, também, que fossem proibidos a partir de Teodósio através do seu decreto de 391 (GOMÉZ ASO, 2011, p. 107), mesmo que tal medida, de acordo com Guido Clemente, não tenha causado um impacto devastador entre os aristocratas adeptos dos cultos ancestrais (CLEMENTE, 2013, p. 35-6).

O crescimento do novo credo fez com que o próprio politeísmo fosse alterado, surgindo assim os dois vocábulos que utilizamos até os dias atuais para denominar o conjunto de crenças dos adeptos dos cultos ancestrais, ´´paganismo´´ e ´´helenismo´´. Como bem salientou Greg Woolf, os cultos aos deuses ancestrais nunca formaram uma entidade conectada e organizada tal como conhecemos por religião, porém, esse universo (heterogêneo) de crenças e costumes passou a ser homogeneizado discursivamente e designado pelo termo pejorativo ´´paganismo´´ pelos escritores cristãos. Segundo o mesmo autor, a própria tentativa do imperador Juliano de

2 Este mesmo período também é cunhado pela historiografia atual pelos conceitos de ´´Baixo Império´´ e de

´´Dominato´´, periodizações que são mais limitadas que a que utilizamos. O primeiro conceito existe em contraste ao de ´´Alto Império´´, tal binômio sugere que o Império Romano possuía um certo modelo (original ortodoxo) que foi deturpado durante os séculos finais do mesmo. Já o segundo, que possui como binômio ´´Principado´´ coloca uma elevada centralidade na questão do poder do imperador, focalizando que ele teria sido mais ligado à ideia de princeps nos primeiros séculos imperiais, enquanto que teria passado a estar mais relacionado à ideia de um poder mais divino e pessoal nos séculos seguintes. Tendo isso em vista, consideramos que o conceito de Antiguidade Tardia é mais adequado que os demais.

3 Apesar das perseguições contra os cristãos fossem de longa data, antes de Diocleciano as mesmas eram raras,

localizadas e esporádicas, em contraste à repressão organizada adotada por este imperador (EHRMAN & JACOBS, 2004, p. 3).

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reviver e institucionalizar o politeísmo como uma unidade coerente e organizada, que ele denominou de helenismo, é uma das provas mais claras do seu contato com o Cristianismo (WOOLF, 2012, p. 238). De acordo com Bowersock, a utilização do vocábulo hellenismos, anteriormente empregado para designar os falantes da língua grega, para definir os adeptos dos antigos cultos funcionou para os politeístas como um catalisador identitário diante da expansão do Cristianismo (BOWERSOCK Apud SILVA, 2013, p. 76).

A vida urbana foi alterada tanto por causa da Cristianização do Estado Imperial quanto por mudanças administrativas do mesmo. Devido à reforma pretoriana implantada por Constantino, as tradicionais (autóctones) autoridades locais perderam parte do seu poder para os prefeitos do pretório, comandantes da guarda imperial que se tornaram altos funcionários provinciais. Além disso, a construção de igrejas e monastérios passou a ser de grande importância, sendo secundarizados os elementos urbanos característicos da cidade clássica. Ao analisar o caso da mudança dos locais onde eram instaladas as estatuas da cidade de Éfeso, que passaram da Ágora para as ruas, David Potter afirma que

Essa transição começou do meio ao final do século terceiro e continuou até o século sexto. É um processo que foi observado em outras cidades e que parece ter refletido a gradual reestruturação dos espaços públicos, possivelmente enquanto os tradicionais órgãos do governo cívico eram secundarizados pelo crescimento de grupos supra-regionais-igreja e oficiais imperiais-que vinheram a dominar a vida cívica. Enquanto isso acontecia, alguns dos mais importantes espaços tradicionais [...] pararam de ser utilizados como eram no passado (POTTER, 2011, p. 250).

Segundo John Haldon, no seu estudo sobre o caso do Império Romano Oriental, desde o século III, as cidades provinciais passaram cada vez mais a perderem sua autonomia em detrimento do poder central imperial em relação às finanças, com a redução dos impostos que eram direcionados às mesmas, e à administração, com a perda de poder das curial strata, além de muitas das mais próximas de Constantinopla terem perdido sua importância cultural e econômica para a nova capital, que possuía como suas maiores rivais nesses quesitos, cultural e econômico, as cidades de Antioquia e Alexandria (HALDON, 1999). Os bispados destas importantes cidades, inclusive, protagonizaram os embates teológicos do Cristianismo nesse período.4

No período clássico, tanto na época imperial quanto na republicana, a cidade de Roma fora o coração do Império Romano, tecendo sua capilaridade sobre as outras urbes. Durante a

4 Para um maior detalhamento de como ocorreram esses enfrentamentos religiosos dentro do Cristianismo no

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Antiguidade Tardia, essa situação alterou-se. No século IV d.C., a cidade de Roma, mesmo mantendo-se um importante centro cultural e possuindo uma aristocracia senatorial rica, já não era mais o centro de poder do Império (WOOLF, 2012, p. 249). É sintomático desta redução de importância política o fato de que, além de ter perdido o posto de capital para Milão e Ravenna, os imperadores do Ocidente apenas raramente tenham visitado a antiga capital durante o século IV d.C. (WARD-PERKINS, 2006, p. 44). O próprio estabelecimento de Constantinopla enquanto Capital Imperial durante o reinado de Constantino5, com suas consequências administrativas, econômicas e sociais à sua região, acabou fazendo com que os recursos imperiais fossem redistribuídos em direção ao Mar Egeu (HALDON, 1999, p. 6-7).

E tamanha mudança nas relações de poder dentro do Império Romano, inclusive, alterou a forma como ambas cidades eram representadas. De acordo com Carlo Bertelli, as representações vindas de Constantinopla representavam-na compondo uma unidade com Roma num primeiro momento, passando a, com o tempo, substituir a própria representação da antiga capital pela da nova, alteração essa que, inclusive, chegou a afetar até as próprias moedas cunhadas em Roma (BERTELLI, 1999). A passagem do tempo fez com que a proeminência simbólica, política, cultural e econômica de Constantinopla ofuscasse a da antiga, esta que inclusive sofreu duros golpes no período, como o seu saque em 410 pelos Visigodos a mando de Alarico6, que abalou o mito da Roma aeterna, e a sua tomada em 476.

Durante a segunda metade do século IV e, especialmente, o V, intensas invasões de diversos povos bárbaros, como os Godos, Vândalos, Hunos, Francos, entre outros, fizeram com que o Império Romano perdesse seus territórios ocidentais, dando lugar a reinos bárbaros. As cidades provinciais viram sua vitalidade, condições de vida e população decaírem. A própria função das muralhas citadinas foi alterada. A principal serventia delas nos primeiros séculos d.C. era a de reafirmar o status cívico da cidade, porém, já na metade do século III, a sua principal função passou a ser a de defender a localidade (POTTER, 2011, p. 250-1). O Império Romano Oriental, tendo como capital Constantinopla, mesmo sofrendo com a erosão dos seus recursos militar e fiscal para sobreviver, conseguiu não somente proteger-se, mas também enviar suas tropas em socorro do Ocidental em diversos momentos e, inclusive, prosperar

5 A cidade planejada foi instalada no estreito do Bósforo onde ficava a colônia grega Bizâncio, de Mégara, fundada

em 657 antes de Cristo. Mesmo sendo uma medida altamente impactante, a mudança do coração do Império não era novidade, visto que, de acordo com Cláudio Carlan, ´´A ideia de uma nova capital já estava presente nas discussões políticas desde a segunda metade do século III´´ (CARLAN, 2009, p. 63).

6 De acordo com Paul Veyne, o saque de Roma em 410 teria sido ocasionado pela recusa do imperador Honório

em negociar com Alarico porque este apoiava o usurpador Prisco Átalo. A escolha do imperador de deixar Roma ser saqueada teria sido facilitada porque o governante preferiu manter-se seguro em Ravena, cercada por uma região pantanosa que facilitava a sua defesa, a capital de então do Império Romano Ocidental (VEYNE, 2009, p. 377).

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economicamente no século V (WARD-PERKINS, 2006, p. 62/90). De acordo com Bryan Ward-Perkins, alguns fatores levaram a tamanha discrepância entre a situação das porções oriental e ocidental ao final do século V.

Segundo o autor, o exército romano enfraqueceu porque as invasões reduziram os impostos recolhidos pelo governo imperial, fazendo com que este não conseguisse mais os fundos necessários para a manutenção das suas tropas, visto que ´´A capacidade militar apoiava-se no acesso imediato à riqueza tributável´´ (WARD-PERKINS, 2006, p. 61-2). Para Ward-Perkins, o fator decisivo que ocasionou a sobrevivência do Império Romano Oriental e não a do Ocidental era que as invasões a este haviam comprometido um percentual muito maior da sua base tributária que a do Oriental, e não que este tivesse um poder militar maior que aquele, argumentando que tal visão não se sustenta pelo fato que fora o próprio oriente que sofreu a famosa derrota na batalha de Adrianópolis em 378. No ocidente, menos de um terço de tal base estaria em segurança antes mesmo da invasão dos ricos territórios romanos na África. Enquanto isso, a posição estratégica de Constantinopla e a força da sua marinha teria garantido a segurança das províncias asiáticas do oriente frente às invasões bárbaras, fazendo com que o Império Romano Oriental mantivesse intacta mais de dois terços da sua base tributária, segurança essa, também, possibilitada pela relativa paz que passaram a ter na época com os persas e a pouca ocorrência de stasis (guerras civis) que o oriente sofreu em relação ao ocidente (WARD-PERKINS, 2006, p. 85-90).

As mudanças que ocorreram na Antiguidade Tardia não passaram despercebidas pelos homens da época. O Império Romano e o seu passado sofreram releituras diversas que se refletiram na produção historiográfica do período, resultando na elaboração de diferentes versões da História, ocasionadas pelos conflitos religiosos do período. Surgiram duas correntes historiográficas divididas por um crivo não somente temático-estilístico, mas também de cunho religioso. De um lado, encontramos a corrente mais difundida, a das Histórias Eclesiásticas, fundada por Eusébio de Cesarea, que escrevia uma História de valorização da Igreja, uma vertente cristã da História.7 Do outro, a dos classicistas, menos popular, composta predominantemente por politeístas, que escreviam em grego ático uma História, ao estilo da

7 Além de ser confessadamente cristã, a escrita da História dessa corrente tinha como foco a vida religiosa e a

História da Igreja e utilizava uma linguagem mais simples que a normalmente empregada pelo resto da historiografia durante a Antiguidade. Uma das diferenças mais contundente entre as Histórias Eclesiásticas e as obras clássicas é que os historiadores da Igreja constantemente colocavam na sua obra documentos oficiais, como cartas e atas de sínodos (CANDAU, 1992, p. 20). Tal utilização, por exemplo, pode ser encontrada constante e intensamente na obra de Eusébio de Cesarea, o fundador da corrente (um caso ilustrativo desse uso, que muitas vezes consome vários capítulos consecutivos, encontra-se em HISTÓRIA ECLESIÁSTICA, 7,30,2-17).

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historiografia clássica, que valorizava o elemento pagão no Império, propagando assim uma visão politeísta da História (WOOLF, 2012, p. 234-5/41).

Poucas obras escritas por estes historiadores sobreviveram até a atualidade, tanto pela questão do tempo quanto por causa da censura. Chegando até os nossos dias praticamente intacta e composta de 6 livros, a História Nova, escrita por Zósimo é uma delas.8 Suas fontes principais são outros classicistas, como Olimpiodoro de Tebas e, principalmente, Eunápio de Sardes, que chegaram até a atualidade apenas em fragmentos (LIEBESCHUETZ, 2003, p. 173/202). Mesmo tendo na sua narrativa a História Romana Imperial como recorte cronológico principal, Zósimo escreve brevemente sobre o passado grego e o monárquico e republicano romano. A sua tese é que as calamidades que infligiam o Império eram causadas pelo abandono deste pela Fortuna, ocasionado pela interrupção da realização dos cultos ancestrais, como os dos Jogos Seculares, causada pela Cristianização do Estado Imperial Romano.

Observamos que o autor, influenciado pelas relações de poder em que estava inserido, teceu, através das suas considerações sobre indivíduos, localidades, fatos, oráculos e deuses, uma espacialidade imperial romana no seu discurso histórico. Neste trabalho, explicaremos como foi possibilitada e construída tal imagem do Império Romano na História Nova, especialmente quando foram utilizadas discursivamente catástrofes para qualificar e desqualificar espaços do Império.

Para melhor compreendermos nosso objeto, analisá-lo-emos por diversos matizes, como o religioso, o político, o cultural e o econômico, em consonância à tese do historiador Warren Treadgold presente no seu artigo ´´Predicting the Accession of Theodosius I´´ de 2005, quando conclui que

Se nós queremos entender como as pessoas pensavam e agiam em outros tempos e culturas, sem reinterpretar os seus pensamentos e ações para fazê-los semelhantes àqueles dos nossos contemporâneos, nós devemos considerar as possibilidades até mesmo estranhas a nós. Já que a história política e a história cultural são história das mesmas pessoas, nós devemos também estar preparados para ver ambos tipos de história como um todo coerente, em que elementos culturais podem ocasionar decisões políticas (TREADGOLD, 2005, p. 790).

Tendo isso em vista, dividiremos o presente trabalho em outras 4 partes. No segundo capítulo, analisaremos quem, provavelmente, foi Zósimo, como é a sua escrita da História e

8 Utilizaremos a tradução de 1992 da História Nova para a língua espanhola de José María Candau Morón, edição

esta que é baseada na famosa tradução da obra para o francês por François Paschoud de 1971 e que preserva o estilo da escrita de Zósimo que, segundo o próprio tradutor, é ´´retórico e artificioso´´.

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qual seria o período em que escreveu sua obra, além disso, abordaremos brevemente a questão das fontes que utilizou no seu trabalho e os desafios documentais e metodológicos existentes ao se analisar a História Nova. Em seguida, no terceiro, analisaremos qual é a sua visão (político) religiosa e como ela ajuda-nos a compreender o modo como fabricou a sua obra, para, em seguida, analisarmos como o mesmo fabricou as representações dos imperadores e seus reinados, utilizando como estudo de caso as dos imperadores Constantino (306-337) e Juliano (361-363). Já no quarto, analisaremos como a espacialidade imperial romana da História Nova foi possibilitada e fabricada, especialmente quando foram utilizadas discursivamente catástrofes para qualificar e desqualificar espaços do Império, como Roma e Constantinopla. Por fim, nas nossas considerações finais, procuraremos responder, especialmente, qual é a espacialidade fabricada pela História Nova.

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2- A HISTÓRIA NOVA E ZÓSIMO EM DISCUSSÃO

Li a História do Cômite Zósimo, Ex-Advogado do Fisco, em seis livros. Sendo um pagão ímpio, ele frequentemente vocifera para aqueles da fé verdadeira. Seu estilo é conciso, claro, e puro, e não desprovido de charme. Ele começa sua história quase durante o tempo de Augusto, e rapidamente aborda os imperadores antes de Diocleciano, apenas mencionando as suas proclamações e a ordem das suas sucessões. A partir de Diocleciano ele aborda em maior comprimento dos seus sucessores em cinco livros. O livro primeiro contém os imperadores de Augusto a Diocleciano e o livro sexto termina no tempo quando Alarico, que estava sitiando Roma pela segunda vez, quando os cidadãos foram reduzidos a uma situação desesperadora, levantou o cerco e proclamou Ataulfo imperador. Logo depois ele o depôs por causa da sua incapacidade, e enviou uma embaixada a Honório, que estava então em Ravena, com propostas de paz. Mas, Saro, ele mesmo um Godo e inimigo de Alarico, com cerca de 300 homens juntou-se a Honório, e, prometendo fazer o ser melhor para assistí-lo contra Alarico, conseguiu fazer com que as negociações fracassassem. Aqui o livro sexto acaba. Pode ser dito que Zósimo não escreveu ele mesmo a história, mas que ele copiou isso de Eunápio, de quem apenas diverge em brevidade e em ser menos ofensivo contra Estilicão. Em outros aspectos seu relato é basicamente o mesmo, especialmente no ataque aos imperadores Cristãos. Eu penso que ambos esses autores publicaram novas edições, apesar de que eu não vi a primeira edição, mas isso pode ser deduzido pelo título de ‘ nova edição’, que eu li, que, como Eunápio, ele publicou uma segunda edição. Ele é mais claro e conciso, como nós tínhamos dito, que Eunápio, e raramente emprega figuras de linguagem (FÓCIO Apud ALMEIDA, 2007, p. 6-7).

Neste breve comentário de Fócio, estudioso bizantino do século IX, no Códice 98 da sua obra Biblioteca, encontramos os únicos dados biográficos diretos que possuímos acerca de Zósimo, que são que ele era, além de pagão, cômite e advogado do Fisco. O fato dele ter sido realmente cômite e advogado do Fisco é confirmado pelo cabeçalho do Codex Vaticanus

Graecus 156 (CANDAU MORÓN, 1992, p. 2), o manuscrito, que data de entre os séculos X e

XI, que transmitiu à modernidade a História Nova, do qual todas as demais cópias são apócrifas. Todas as outras informações que possuímos acerca do classicista são deduzidas pelo conteúdo da sua obra. E não somente por isso as considerações de Fócio são extremamente importantes para os trabalhos acerca de Zósimo da atualidade.

Em linhas gerais, as formas como os estudiosos contemporâneos posicionam-se acerca da análise de Fócio, atribuindo maior ou menor credibilidade à mesma, interferem fulcralmente nos seus trabalhos, determinando a forma com que analisam a relação da Zósimo com suas fontes, especialmente Eunápio. Na historiografia contemporânea que consultamos para o presente trabalho, por exemplo, encontramos autores, como Jason Almeida e Dimitris Krallis, que atribuem uma maior relativa sofisticação na obra de Zósimo e colocam em dúvida uma

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forte verdade dos comentários de Fócio, enquanto que existem autores, como James Fitton, que atribuem uma menor relativa sofisticação na escrita de Zósimo e atribuem uma maior veracidade aos comentários do estudioso bizantino.9 Afinal, a História Nova é realmente uma cópia da obra histórica de Eunápio?

Como observou James Fitton ao afirmar que todo estudo sobre Zósimo deve partir do comentário de Fócio, a grande vantagem deste estudioso antigo é que ele pôde, ao contrário de nós, ler diretamente a obra histórica de Eunápio (FITTON, 1975, p. 1), da qual restaram-nos apenas fragmentos em 2 obras de compilados, a Suda e a Excerpta Historica, resquícios estes que nas estimativas de François Paschoud correspondem a apenas aproximadamente 7% da obra original (PASCHOUD Apud LIEBESCHUETZ, 2003, p. 178).

Apesar de fragmentos da obra de Eunápio terem chegado até os dias atuais, devemos considerar, como afirma Jason Almeida, que tais resquícios não são citações textuais necessariamente precisas da sua obra original (ALMEIDA, 2007, p. 36).

A Excerpta Historica, também conhecida como Historica Constantini Porphyrogeniti, é uma obra produzida durante o reinado de Constantino VII Porfirogênito, que durou entre 913 e 959, composta de fragmentos de historiadores reunidos em 35 volumes temáticos por diferentes compiladores com alto grau de independência no seu trabalho. Destes volumes, 5 sobreviveram completa ou parcialmente, dentre os quais em 2 deles, o Excerpta De Sententiis, que é uma coleção de passagens de natureza moral e anedótica, e o Excerpta De Legationibus, de natureza política e moral, encontramos os fragmentos atribuídos a Eunápio, que são, respectivamente, 28 e 7 (ALMEIDA, 2007, p. 36). Jason Almeida, amparado pelos trabalhos de Otto Zosel e P. A. Brunt, constata que os compiladores dessa obra antológica não podem ser confiados de terem extraído os trechos direta das fontes e que existem casos, observáveis pela comparação dos seus fragmentos de obras que chegaram até a atualidade com seus originais, de terem cometidos erros acidentais e mudanças intencionais nas suas citações, além de deixarem trechos interrompidos abruptamente porque seu resto não se relacionava com o tema do volume. Almeida, inclusive, afirma que, ao compararmos os fragmentos Excerpta De

Legationibus 7 e Excerpta De Sententiis 58, que se referem à mesma porção do livro de

Eunápio, observaremos que eles diferem em uma série de detalhes (ALMEIDA, 2007, p. 37-8). E os fragmentos atribuídos a Eunápio pertencentes à Suda, léxico bizantino do século X, são ainda menos confiáveis, visto que o seu compilador não extraiu suas citações dos textos originais, além de que, como muitos dos fragmentos da Suda não indicam o nome do autor de

9 Para observar como cada um qualifica os comentários de Fócio, ver ALMEIDA, 2007, p. 7/15/39-40; FITTON,

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origem e a que se referem, dada a brevidade dos trechos nessa antologia, alguns dos trechos que atribuímos a Eunápio o são por motivos estilístico e outras razões conjecturais (ALMEIDA, 2007, p. 38).

Em suma, as comparações entre a História Nova de Zósimo e os fragmentos de Eunápio devem ser realizadas com ressalvas, pois, além de estes possuírem o risco de terem sido deturpados pelos seus compiladores, correspondem a uma pequena porção da obra histórica de Eunápio, dificultando-nos descobrir se uma determinada parte da obra de Zósimo advém de Eunápio ou foi fabricada utilizando-se brevemente outra fonte que não chegou aos tempos atuais.

Agora, retornemos ao problema da validade das observações de Fócio acerca de Zósimo. Como é visível, aquele, que é cristão, possui uma visão negativa acerca deste por causa do seu paganismo e sua visão agressiva contra os adeptos da ´´fé verdadeira´´ e seus líderes, os imperadores cristãos. Logo, é do seu interesse político-religioso que a obra de Zósimo, que critica abertamente a Cristianização do Império Romano e a considera como a causa dos males que o Império sofreu durante a Antiguidade Tardia, seja considerada como uma mera cópia da

História de Eunápio. Este interesse de Fócio não deve ser ignorado ao lidarmos com esse

importante comentário.

Além disso, sua análise sobre a História Nova é apressada e precária. Nela, há nada que conste que o período temporal trabalhado na História Nova, que aborda, mesmo que brevemente, do primórdios da civilização helênica, passando pelo início de Roma, até o período imperial romano, onde acaba abruptamente com a deposição de Ataulfo pouco antes do saque de Roma em 410, é consideravelmente mais amplo que o da História de Eunápio, que compreende somente entre 270 e 404 (ALMEIDA, 2007, p. 21-2; LIEBESCHUETZ, 2003, p. 180-5); ou seja, para encaixar na sua análise que Zósimo é um plagiador de Eunápio, Fócio suprime o fato que Eunápio é sua fonte principal, mas não a única, como atualmente sabemos e que é inclusive explicita na História Nova, quando o autor cita nominalmente Olimpiodoro como fonte em 5.27, autor este inclusive comentado por Fócio na Biblioteca antes de Zósimo, no Códice 80 (ver em ALMEIDA, 2007, p. 25). Para justificar sua tese, silencia do seu comentário que o período histórico relatado durante parte do livro quinto, depois do 5.25, e em todo o livro sexto não foi sequer trabalhado por Eunápio.

A criticidade da análise da História Nova empreendida por Fócio é tão questionável que o mesmo classifica a escrita do classicista como sendo clara, enquanto que uma leitura mais atenta da obra nos revela que a mesma possui inúmeros relatos de enfrentamentos militares que possuem pouquíssima lógica e clareza. Além disso, não é raro que a argumentação de Zósimo

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sobre uma mesma questão esteja pulverizada em capítulos relativamente distantes espacialmente na obra10, o que com certeza impossibilita-nos considerarmos o seu estilo ‘’ puro’’ como o fez Fócio.

E não somente isso, Fócio sequer comenta que a obra possui uma dupla grave inconsistência narrativa entre 5,25 e 5,26. Como bem observamos na passagem em questão, Zósimo é demasiadamente dependente do itinerário e muitas vezes até do sentido da narrativa das suas fontes, (re)transmitindo-os na sua obra, pois, quando ocorre a passagem da utilização de Eunápio, em 5,25, para a de Olimpiodoro, em 5,26, não há somente uma maior preocupação por acontecimentos diplomáticos, datas e dados numéricos na narrativa, mas também a alteração abrupta dos acontecimentos relatados da porção oriental do Império para a ocidental e uma mudança da imagem tecida acerca de Estilicão, que passou a ser pintado de forma mais favorável, pois, de acordo com Wolf Liebeschuetz, Olimpiodoro, mesmo criticando-o pela sua religião, respeitava-o como estadista, ao contrário de Eunápio (LIEBESCHUETZ, 2003, p. 206-7). E aqui encontramos o motivo que possibilitou que Fócio, ao ler a História Nova, afirmasse que Zósimo possuía uma visão menos agressiva contra Estilicão que Eunápio. Com isso, podemos constatar que Fócio somente rapidamente leu a obra de Zósimo, visto que, além de não notar que havia um rompimento de sentido na representação de Estilicão, (visivelmente) não observou que havia uma grande inconsistência narrativa, a passagem abrupta espacial dos fatos relatados, no mesmo ponto da obra.

De acordo com Jason Almeida, além de na obra de Fócio encontrarmos, segundo Warren Treadgold, diversos erros de títulos de obras, de nomes de autores e de conteúdo, e ainda a ausência de informações específicas como números (TREADGOLD Apud ALMEIDA, 2007, p. 39-40), o próprio autor ´´é especialmente propenso ao exagero quando o trabalho era escrito por um Pagão ou um Cristão não-Ortodoxo´´ (ALMEIDA, 2007, p. 39).

Em síntese, um cuidado redobrado é necessário na utilização de Fócio como referência para compreendermos não somente a História Nova, mas também todas as outras obras que não chegaram aos nossos dias, especialmente as escritas por autores que não adeptos à Ortodoxia Cristã, que analisou na sua Biblioteca.

2.1- ZÓSIMO E SUA ESCRITA DA HISTÓRIA

10 Por exemplo, as ideias presentes no proêmio de Zósimo em 1,1, algumas delas com um caráter mais implícito

que explicito, somente adquirem uma explicitação e justificação mais claras quando são retomadas nos capítulos

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Justo é, ainda que componha minha história, segundo se vê, apressadamente, que, atendendo o propósito exposto no proêmio, detalhe o sucedido antes da ruina dos palmirianos. Pois se Políbio narrou como os romanos ganharam em pouco tempo seu império, me disponho a contar em como pouco tempo, e

por sua própria insensatez, o perderam {grifo nosso} (HISTÓRIA NOVA,

1,57).

Zósimo ter sido um advogado do Fisco, alto funcionário do Estado que defendia seus interesses financeiros, permite-nos deduzir alguns aspectos da sua vida. Primeiro, que o mesmo possuía uma formação retórica, tornando possível que tenha tido, seja por meio da leitura seja por meio da oralidade, contato com os autores da época clássica. Segundo, que ele possuía uma idade relativamente avançada. De acordo com Candau, para um advogado conseguir o cargo, precisava colocar seu nome numa lista de espera, onde ficava até ser o próximo da lista quando uma vaga fosse desocupada (CANDAU MORÓN, 1992, p. 3). A função possuía tamanha concorrência que uma lei de 468 determinou que o ocupante do cargo deveria abandoná-la após um certo tempo (ALMEIDA, 2007, p. 5-6). Por fim, que ele, muito provavelmente, não era publicamente pagão, visto que em 468 os imperadores Leão I e Antêmio instituíram uma lei que impedia os adeptos dos cultos ancestrais de possuírem o cargo (ALMEIDA, 2007, p. 6).

A História Nova é composta de 6 livros com diferentes escalas narrativas, que sobreviveram praticamente intactos, somente existindo 2 grandes lacunas no seu texto, que consistem na ausência do último quaternio do livro primeiro e na de um fólio em 5,22.11 O advogado do Fisco utiliza uma narrativa essencialmente cronológica, possuindo algumas poucas descontinuidades ocasionadas pelas digressões. Como outras obras da sua corrente, Zósimo foca a sua narrativa principalmente nos assuntos políticos e militares, porém, a recheia de oráculos e aborda com atenção às reformas administrativas que os imperadores empreenderam, utilizando-as para construir seus juízos de valor sobre alguns imperadores. A elevada atenção de mesmo acerca das questões administrativas pode ser esclarecida se lembrarmos o fato de que o mesmo fora um advogado do Fisco. De acordo com Candau, a construção de compilações de códigos jurídicos na época indica que as questões legais foram alvo de muita atenção durante os séculos V e VI, fazendo com que elas não somente adquirissem maior atenção na historiografia, mas que também a maioria dos historiadores do período fossem juristas ou tivessem tido uma formação jurídica (CANDAU MORÓN, 1992, p. 6).

11 Mesmo que a censura contra obras de fora da ortodoxia imperial fosse forte, devemos concordar com a

observação de José María Candau Morón, que afirma que se a hipótese por parte dos historiadores atuais de que tais descontinuidades fossem resultado da censura fosse correta, a obra não teria mantido suas agressivas passagens anticristãs (CANDAU MORÓN, 1992, p. 16).

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No livro primeiro, encontramos o seu proêmio com sua proposta de escrever uma história universal semelhante à de Políbio, somente que relatando não o florescimento do Império, mas sim o seu declínio. Como colocou Lyvia Baptista, o proêmio possui como finalidade ´´despertar atenção, benevolência e interesse no auditório´´ (BAPTISTA, 2011, p. 42). Este é o livro que abarca a maior cronologia, abordando de forma rápida e sumarizada os primórdios da civilização greco-romana, aumentando o seu detalhamento a partir do reinado de Sétimo Severo, até o falecimento de Probo, quando é interrompida a narrativa pela lacuna final do livro.

Aumentando a densidade narrativa, o livro segundo inicia-se com uma digressão aos Jogos Seculares para, em seguida, narrar os acontecimentos que se sucederam à morte de Diocleciano e à crise da Tetrarquia. O livro foca-se principalmente no reinado de Constantino e nos dos seus descendentes, terminando sua narrativa na abordarem da destituição de Galo do seu posto de César e a sua morte por ordem de Constâncio II.

Já o livro terceiro centra-se fulcralmente na figura de Juliano, desde a sua nomeação como César por Constâncio II, perpassando seus feitos enquanto César e Augusto, até a sua morte na campanha contra os persas, guerra esta que é abordada minuciosamente em nada menos que metade do livro. O resto dele narra a proclamação de Joviano e seus enfrentamentos contra os persas, concluindo no falecimento deste e na consequente ascensão ao trono por Valentiniano.

O livro quarto é o que os conflitos dos imperadores com seus usurpadores começam a adquirirem maior atenção. A sua primeira parte foca-se no reinado conjunto de Valente e Valentiniano, enquanto que a segunda aborda o reinado de Teodósio I. Sua finalização ocorre com a morte deste imperador.

O livro quinto é o mais heterogêneo da obra. Na primeira parte, de 5,1 a 5,25, Zósimo concentra seu relato quase que somente nas questões do Império Romano Oriental, o que muda abruptamente quando abandona Eunápio passa a utilizar Olimpiodoro, fazendo com que, de

5,26 em diante, sua narrativa passa a focar-se no império Romano Ocidental. Ele é concluído

com uma lamentação de cunho religioso da recusa por parte das autoridades romanas de manterem a promessa de paz com Alarico.

Por fim, o livro sexto é o último e menor da História Nova. Possui somente 13 capítulos, possui uma considerável qualidade de escrita em relação a todos os outros livros e acaba abruptamente pouco antes do saque de Roma, quando relata que as tropas de Ataulfo se uniram às de Honório passa poderem derrotar Alarico, indicando a não-finalização do mesmo. A situação do livro sexto nos permite, com uma relativa, porém elevada, segurança, afirmar que

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o mesmo não foi revisado e que, consequentemente, todos os 5 primeiros livros o foram. Visto que quando Zósimo escreveu o livro sexto todos os anteriores, inclusive o livro quinto, já estavam escritos e completamente revisados, muito provavelmente Zósimo tivesse o método de escrever um livro por vez, terminar sua escrita e revisá-lo para somente então iniciar a composição do seguinte. Apesar da brevidade do livro sexto, ele é a nossa única fonte acerca de alguns detalhes concernentes aos governos de alguns usurpadores durante o reinado de Honório (ALMEIDA, 2007, p. 105), governo esse marcado pela enorme quantidade de usurpadores com quem teve que disputar o poder.12

Pelo fato de ser uma historiografia, a História Nova provavelmente não foi escrita no intuito de atingir um grande público leitor. Devido à sua complexidade de leitura, a historiografia classicista era pouco lida, visto que, de acordo com Lyvia Baptista, ´´a história oferecia um material de alto nível intelectual que fundamentalmente só era lido por uma elite com instrução escolar acima da média´´ (BAPTISTA, 2011, p. 42). Segundo Candau Morón, provavelmente a obra teve uma circulação clandestina pelo fato dela pouco ter sido referenciada na literatura posterior (CANDAU MORÓN, 1992, p. 16).

A obra do advogado do Fisco possui singularidades que a colocam em contraste em relação às outras obras da sua corrente e à historiografia clássica. A escrita da História Nova de Zósimo é concisa, pobre em figuras de linguagem, frágil na sua utilização de elementos retóricos, que eram muito importantes na Antiguidade para que a obra atingisse um público mais amplo quando fosse declamada em voz alta, o que ainda era costume no século VI (BAPTISTA, 2011, p. 44), e praticamente ausente de momentos descritivos, criando uma falta de plasticidade nos seus relatos. Esta característica em especial é o diferencial da obra frente às outras produções historiográficas da Antiguidade, tanto as clássicas quanto as classicistas. Como considerou José María Candau Morón no seu artigo intitulado ´´La perspectiva historica de Zósimo´´, a História Nova:

apresenta uma série de características formais e de conteúdo que a singularizam como composição peculiar e extraordinária não somente na frente de outras composições históricas contemporâneas, mas também dentro do espectro mais amplo da historiografia greco-latina em seu conjunto. As características formais poderiam compendiar-se em uma característica geral, a ausência durante toda a obra de momentos descritivos (CANDAU MORÓN, 1992, p. 17).

12 Acerca desses movimentos usurpatórios em detrimento do governo de Honório, ver WARD-PERKINS, 2006,

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E tamanha singularidade é fortalecida pelo fato de que, além da plasticidade ser uma das características principais da literatura da Antiguidade Tardia, a própria corrente historiográfica de Zósimo, o classicismo, é caracterizada pela busca ´´de recriar os procedimentos próprios da historiografia clássica´´ (MORÓN CANDAU, 1992, p. 18).

No entanto, de acordo com Candau, a maior originalidade da História Nova é que ela é a única obra classicista que possui uma tese religiosa, fenômeno esse explicado na década de 1970, com grande aceitação pela historiografia posterior, por Lellia Gracco Ruggini. Segundo a historiadora italiana, o projeto historiográfico do advogado do Fisco seria influenciado pelas

Histórias Eclesiásticas, que consideravam que o curso dos acontecimentos era guiado pela

Providência cristã, aproximando a relação na escrita da História entre os campos da política e da religião. Zósimo teria utilizado o desenho historiográfico dessa corrente em um sinal oposto. Enquanto que esta defendia que a conversão ao Cristianismo teria trazido benefícios para o Império, aquele defendera que a causa da decadência do Império teria sido o abandono dos cultos ancestrais gerado pela adoção do novo credo (RUGGINI Apud CANDAU MÓRON, 1992, p. 18-19). A tese de Ruggini é essencial para compreendermos o motivo da História Nova estar recheada por um providencialismo pagão, causa esta que nos mostra que, mesmo não servindo como a matéria-prima da sua obra e sequer serem mencionadas nela, a corrente historiográfica das Histórias Eclesiásticas em muito influenciou a empreitada historiográfica de Zósimo.

A História Nova possui pouquíssima qualidade tanto na sua escrita, tornando sua exposição, pouco clara e lógica, gerando inclusive relatos de atritos militares que são relativamente impossíveis de realmente terem ocorrido na realidade da forma que foram relatados, quanto no seu conteúdo, possuindo inúmeros equívocos cronológicos e geográficos, tanto que Zósimo é considerado como o pior historiador da Antiguidade que sobreviveu até a modernidade. Dentre a historiografia consultada, existem 3 diferentes explicações acerca do porquê desta pobre qualidade historiográfica, especialmente no tocante à sua narrativa político-militar, da obra de Zósimo.

James Fitton defende que a pouca qualidade da obra é causada por sua redação. Ele considera que as confusões de Zósimo são resultantes de sua cópia apressada, extremamente dependente, pouco refletida, demasiadamente mal elaborada e criadora de inconsistência narrativas das partes que extraiu das suas fontes. A História Nova seria, basicamente, uma união desarmônica entre os seus 3 resumos (defeituosos), de Deuxipo, Eunápio e Olimpiodoro (FITTON, 1975).

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Já Wolf Liebeschuetz, ao abordar o problema das inconsistências cronológicas encontradas em Zósimo, defende que elas ocorrem não somente por uma desatenção por parte do advogado do Fisco, mas também por causa das próprias características da obra de Eunápio, que não possuía marcos cronológicos na sua narrativa, uma ausência de preocupação inclusive explicitamente justificada por Eunápio em um de seus fragmentos que chegaram aos nossos dias: ´´Meu leitor aprenderá que uma certa ação foi realizada durante o reinado de um certo imperador, mas Eu deixo para os outros o dançar nas desilusões de datar por ano e dia´´ (EUNÁPIO Apud LIEBESCHUETZ, 2003, p. 196). Além disso, Liebeschuetz afirma, amparado em diferentes fragmentos eunapianos que possuem diferentes versões acerca do mesmo acontecimento, que Eunápio mantinha as vezes duas diferentes versões, uma advinda da tradição oral e outra advinda da sua fonte literária, na sua obra, mesmo sabendo que uma estava correta. De acordo Liebeschuetz, a combinação de todos esses fatores tornava muito difícil a sumarização da obra histórica de Eunápio resultar em uma cronologia correta até mesmo para autores que faziam pesquisas extras por si mesmos, quanto mais Zósimo, que não as realizava (LIEBESCHUETZ, 2003, p. 197).

Apesar de admitir que explicar os problemas da História Nova como sendo resultado de uma redação apressada e pouco cuidadosa possa ser correto, Candau defende que esses problemas também são estruturais. Eles seriam resultantes da mistura presente na obra de Zósimo entre aspectos advindos da sua corrente historiográfica, a classicista, e os da corrente das Histórias Eclesiásticas, não através de uma fusão propriamente dita, mas sim de uma justaposição. Essa mistura heterogênea que teria eliminado as qualidades das 2 correntes na obra e colocado nela os defeitos de ambas (CANDAU MORÓN, 1992).

Porém, onde esse classicista viveu? Walter Goffart, ao analisar as diferenças de impacto que as invasões bárbaras e o saque de Roma em 410 tiveram na mentalidade dos habitantes do Império e, consequentemente, na historiografia, no seu artigo ´´Zosimus, The First Historian of Rome’s Fall´´, pondera que, enquanto os historiadores da porção oriental sentiram como se o Império tivesse decaído, os da ocidental, que passaram a habitar os reinos bárbaros, não sentiram tais efeitos e nem criaram um paradigma de decadência imperial como fizeram os orientais (GOFFART, 1971). Ou seja, podemos ter certeza que o advogado do Fisco pertencia à parte oriental do Império, dado que o mesmo considera o seu tempo como calamitoso. Constatação esta que é fortalecida pelo fato do classicista ter escrito sua obra em língua grega durante um período em que esse era o idioma utilizada no Império Romano Oriental, em contraste ao Latim no Ocidental, época essa em que a fluência de ambos os idiomas era

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incomum, até mesmo para os cultos (ALMEIDA, 2007, p. 4). Apesar disso, a problemática acerca do local onde Zósimo mais especificamente viveu é alvo de controvérsia.

No texto introdutório da sua tradução da História Nova, Candau considera, amparado nos comentários Paschoud e Mendelssohn presentes nas suas respectivas traduções da obra, que a descrição de Constantinopla presente no livro segundo somente seria possível se o mesmo tivesse morado na capital, visto que as informações em questão não poderiam ter sido copiadas da sua fonte desse período, Eunápio (CANDAU MORÓN, 1992, p. 2-3). Essa tese pode ser reforçada ao observarmos que, nesta descrição, Zósimo escreve que as estátuas instaladas no hipódromo durante a construção de Constantinopla por Constantino ´´ podem ser vistas ainda hoje em dia {grifo nosso}´´ (HISTÓRIA NOVA, 2,30).

Jason Almeida defende uma visão diversa da de Mendelssohn, e, consequentemente, de José Candau nesta questão. Segundo o mesmo, as informações de Zósimo sobre Constantinopla possuem erros que somente um não-nativo cometeria, imprecisões essas que seriam praticamente dobrar o tamanho do Bósforo em 2,26 e 2,30, de aproximadamente 150 estádios para 300 de comprimento, e colocar em 4,5 uma guarda citadina na localidade quando, de acordo com A. H. M. Jones, não existia (ALMEIDA, 2007, p. 4).

2.2- A DATA DA HISTÓRIA NOVA

De quando é a História Nova? Os anos exatos de redação e de ´´publicação´´13 da mesma são desconhecidos. Pelo fato dela possuir como fonte do seu último capítulo, 6,13, Olimpiodoro de Tebas, cuja obra abarcava os acontecimentos compreendidos entre 407 e 425 (CANDAU MORÓN, 1992, p. 2; LIEBESCHUETZ, 2003, p. 201-2), podemos ter certeza que ela é posterior a 425. O relato mais antigo que possuímos da mesma advém da História Eclesiástica de Evágrio Escolástico, que foi terminada entre 592 e 594 (CHESNUT Apud CANDAU MORÓN, 1992, p. 2). Com isso, a História Nova possui como post quem 425 e ante quem

592-4. Apesar disso, esses marcos cronológicos podem ser estreitados.

Evágrio afirmou que o historiador Estácio de Epifania utilizou a História Nova como fonte na sua obra inconclusa (e que não sobreviveu até os dias atuais) que narrava os acontecimentos até 502, quando do reinado de Anastásio. De acordo com Candau, por ser tradição entre os historiadores bizantinos escreverem na sua obra fatos ocorridos até o reinado do imperador anterior ao qual viviam, a obra de Estácio provavelmente foi ´´terminada´´

13 Como não foi concluída, possivelmente a História Nova não foi publicada. Sendo assim, quando nos referirmos

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durante o reinado de Justino, indicando que a obra de Zósimo já estava em circulação nesse período, durante os anos de 518 e 527 (CANDAU MORÓN, 1992, p. 2). Mesmo sem Candau citar o artigo de 1891 ´´Wann schrieb Zosimos´´ de F. Rühl, este já havia elaborado uma argumentação muito similar na referida publicação.14

Podemos ter certeza que o capítulo 2,38 de Zósimo foi escrito depois de maio de 498, visto que a leitura de 2,38, que aborda a criação de 3 impostos por Constantino, conjunto de impostos que teve o seu último, o lustralis collatio ou Chrysargyron, abolido em 498 (ALMEIDA, 2007, p. 9; CAMERON, 1969, p. 107; CANDAU MORÓN, 1992, p. 2)15, indica-nos, que quando o mesmo escrevia a passagem todas as taxas já haviam sido abolidas: ´´Com esses impostos deixou esgotadas as cidades. Pois ao manter-se essa exigência inclusive depois da morte de Constantino, durante longo tempo´´ (HISTÓRIA NOVA, 2,38). Apesar de José Candau e Alan Cameron considerarem que esse dado indica que a escrita de Zósimo situa-se após maio de 498 (CAMERON, 1969, p. 107/10; CANDAU MORÓN, 1992, p. 2), o indício de 2,38, por si só, não prova que o advogado do Fisco escreveu a sua obra após a data, porém somente que o mesmo compôs o capítulo em questão e os seguintes depois da data.

Em um dos seus primeiros capítulos, o 1,6, a História Nova transmite uma visão extremamente negativa acerca da dança de pantomima, que teria causado as cidades encherem-se de encherem-sedições e distúrbios, as autoridades passarem a atrapalhar a vida da população e o espírito de combate dos soldados extinguir-se (HISTÓRIA NOVA, 1,5): ´´pois foi naqueles tempos quando se implantou a dança de pantomima [...] assim como outros muitos usos perniciosos feitos que se estendem até o dia de hoje´´. No seu artigo ´´The date of Zosimus’ New History´´ de 1969, o historiador britânico Alan Cameron defende que essa visão de Zósimo é um reflexo das revoltas que ocorreram por causa dos festivais de brytae16 em Constantinopla nos anos de 499 e 501. Segundo o britânico, provavelmente essa negatividade é resultado da brytae de 501, pois a mesma teria causado a morte de muitas pessoas. De acordo com Cameron, devido ao fato de que o capítulo 1.6 afirma que a dança de pantomima ainda ocorria, ele foi escrito antes da sua proibição por Anastásio em 502 (CAMERON, 1969, p. 108-10). Como o capítulo 1.6 é um dos primeiros da História Nova, podemos considerar que o período em que foi elaborado foi basicamente o mesmo do início da escrita da obra. Mesmo que não possamos ter certeza que a

14 Para observar o que, em linhas gerais, F. Rühl argumentou mais especificamente sobre a questão, ver RÜHL

Apud FITTON, 1975, p. 156-7.

15 Anteriormente, achava-se que a extinção do lustralis collatio tivesse ocorrido no ano de 501, porém fontes sírias

fizeram com que, desde 1904, o fim do imposto seja atualmente datado no ano de 498 (ALMEIDA, 2007, p. 11).

16 De acordo com Cameron, as únicas informações que possuímos sobre o festival é que nele se dançava e era

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passagem é especificamente um reflexo da revolta de 501, podemos considerar, no mínimo, que o advogado do Fisco começou a escrever a sua obra entre 499 e 502, e, além disso, que o mesmo não revisou seu livro primeiro depois da proibição da brytae em 502 pelo imperador Anastásio, visto que, se o tivesse, teria facilmente alterado as poucas palavras que implicam na manutenção da dança de pantomima até o seu presente.

Em suma, a História Nova começou a ser escrita e teve o seu livro primeiro completamente escrito e revisado durante o reinado de Anastásio entre 499 e 502 e já se encontrava em circulação durante o reinado de Justino, entre 518 e 527. Mesmo que Zósimo possa ter escrito uma parte sua obra durante o governo de Justino, ele iniciou e escreveu a

História Nova, se não toda, pelo menos a sua maioria, durante o reinado de Anastásio. Ou seja,

a obra foi escrita durante um período (governo) marcado por uma política imperial anti-pagã (ALMEIDA, 2007, p. 6), com a forte (e muito violenta) presença de enfrentamentos entre os cristãos calcedonianos e os monofisistas, com um imperador ativamente ligado à questão teológica, durante o qual houveram reformas monetárias que levaram a uma inicial redução na inflação entre 498 e 512 e a uma posterior volta da tendência inflacionária a partir de 512 (LEE, 2008, p. 52-7) e que foi marcado por uma guerra contra os persas entre 502 e 506 que, mesmo tendo sido vencida pelos romanos, teve o seu início favorável aos persas (CAMERON, 1969, p. 108).

2.3- A HISTÓRIA NOVA E SUAS FONTES

A relação da História Nova com suas fontes é alvo de elevada controvérsia entre os seus pesquisadores contemporâneos. Ao nosso ver, 4 motivos são os principais propiciadores de tais discussões. Primeiro, a enorme, para não dizer gritante, dependência da obra frente às suas fontes, já que, como já constatamos, o itinerário e, muitas vezes, o sentido da narrativa seguidos pelo autor são basicamente os das suas fontes, mais especificamente Eunápio e Olimpiodoro. Segundo, Eunápio, Olimpiodoro e Zósimo por causa do seu contexto histórico e visões religiosas relativamente semelhantes, possuíam muitas opiniões semelhantes (FITTON, 1975, p. 140-1; LIEBESCHUETZ, 2003, p. 205). Terceiro, o fato de que o comentário de Fócio sobre a História Nova, a única fonte direta que possuímos acerca da relação dela com a obra de Eunápio, ser consideravelmente problemática, como anteriormente abordamos. E por fim, o fato da imensa maioria das fontes (confirmadas ou prováveis) de Zósimo somente serem conhecidas por meio de suas reminiscências, seja por meio do seu uso como fonte seja por meio de citação, presentes em obras de outros autores antigos que as utilizaram, como é o caso de

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Olimpiodoro17, ou, no máximo, terem sobrevivido, como é o caso da obra de Eunápio, por meio de fragmentos presentes em obras antológicas, onde é possível terem sido corrompidos pelos seus compiladores (ALMEIDA, 2007, p. 37-8). A combinação desses 4 fatores proporciona que tenhamos dificuldade em descobrir, seguramente, se as opiniões, imagens e representações presentes na obra, inclusive as que fazem parte da espacialidade que analisaremos, estão na

História Nova ou são da História Nova.

Em linhas gerais, encontramos na História Nova 3 diferentes ´´blocos´´ de utilização de fontes, sendo a matéria-prima correspondente a cada uma atribuída a um diferente historiador pela historiografia atual. A porção inicial, que compreende de 1,1 a 1,46, pode ser considerada como podendo ter sido baseada em Deuxipo, dado que esse autor é o único de que temos notícia que tenha trabalhado o período em questão em língua grega (REITEMEIER Apud ALMEIDA, 2007, p. 30), sendo objeto de debate dos adeptos de tal tese qual das suas obras, Crônicas ou

Escíticas, seria a utilizada por Zósimo. Porém, também há outra tese, minoritária, que sugere

que esses 46 capítulos tenham sido fabricados com outras fontes desconhecidas.18 Em contraste, a porção intermediária, composta do capítulo 1,47 ao 5,25, que abarca a imensa maioria da obra, é atribuída seguramente à Eunápio, havendo apenas a discussão da possibilidade de utilização de outras fontes em determinadas partes dela, como durante o seu relato da stasis entre Constantino e Licínio e o das guerras pérsicas empreendidas por Juliano, relato este que por possuir semelhanças com o relato do mesmo objeto por Amiano Marcelino, levanta dúvidas se Zósimo teria usado Amiano como fonte, se Eunápio é quem teria lido Amiano ou se Amiano teria usado Eunápio como fonte do conflito. E, por fim, a final, de 5,26 a 6,13, tem como fonte atribuída Olimpiodoro de Tebas, que chega a ser citado nominalmente (HISTÓRIA NOVA,

5,28). Este historiador foi a principal fonte utilizada nas Histórias Eclesiásticas de Sozomeno

e de Filostórgio para abordarem o primeiro quarto do século V, possibilitando que, segundo Liebeschuetz, possamos ter certeza de que a fonte dos capítulos finais de Zósimo seja a obra desse classicista tebano (LIEBESCHUETZ, 2003, p. 202).

Na sua tese de PhD de 1975, intitulada de ´´Eunapius and the Idea of the Decline of the Roman Empire in Zosimus´´, James Fitton analisou, através da comparação entre os fragmentos sobreviventes da obra histórica de Eunápio, não somente se Eunápio foi a única fonte de Zósimo

17 De acordo com Almeida, algumas poucas paráfrases e citações da obra de Olimpiodoro podem ser encontradas

nas obras de vários autores bizantinos, como Zonaras e Jorge Sincelo (ALMEIDA, 2007, P. 24).

18 A perda total de todas as fontes que poderiam ter sido utilizadas por Zósimo para a parte inicial do seu trabalho

enfraquece qualquer tese sobre a problemática. Na sua tradução de 1992, Candau afirmou que ´´os estudos mais recentes limitam-se a expor a questão para concluir reconhecendo a impossibilidade de solucionar o problema por falta de dados´´ (CANDAU MORÓN, 1992, p. 7). Para um maior detalhamento acerca desse debate, ver ALMEIDA, 2007, p. 30-4.

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entre 1,47 e 5,25 e como Zósimo escreveu a sua narrativa tendo em mãos a obra de Eunápio, mas também se as ideias de Zósimo são próprias do próprio advogado do Fisco ou foram copiadas de Eunápio.

Na sua comparação entre os fragmentos de Eunápio sobreviventes e as suas passagens correspondentes na História Nova, Fitton considera que, além de Zósimo não colocar informações novas, a maioria das diferenças entre as composições são explicáveis por causa das diferenças dos assuntos de interesse dos mesmos e de suas diferentes épocas (FITTON, 1975, p. 42). De acordo com o mesmo autor, algumas diferenças foram causadas pela necessidade de Zósimo de compor a sua narrativa (ou epitome, nas próprias palavras de Fitton): ele chegou a modificar a ordem de apresentação de alguns eventos, a omitir alguns fatos que eram pouco interessantes para ele, porém muito para Eunápio19, a reduzir o número de vezes em que um mesmo acontecimento era aludido e a fundir múltiplos comentários de Eunápio sobre a mesma questão em um único, além de na maioria dos casos omitir as constantes e extensas passagens de reflexão presentes na sua fonte acerca dos vícios e virtudes dos indivíduos do passado. Segundo Fitton, as divergências entre Zósimo e sua fonte seriam porque ´´muitas das variações que ele {Zósimo} fez de tempos em tempos ele produziu de Eunápio pela reflexão das ideias já presentes na sua fonte´´ (FITTON, 1975, p. 56).

Segundo Fitton, os fragmentos sobreviventes de Eunápio indicam que ele colocava na sua obra passagens seguidas que se referiam a diferentes temporalidades indicando que as mesmas correspondiam a diferentes tempos, porém o advogado do Fisco, ao se deparar com tal mescla, rearranjava os dados da sua fonte transformando-os em uma única sequência narrativa, só que sem colocar uma indicação ao seu leitor que tais acontecimentos, na verdade, advinham de diferentes temporalidades (FITTON, 1975, p. 61-3).

A tese de James Fitton é a de que a ideia de declínio do Império Romano presente em Zósimo não é originalmente dele, e sim de Eunápio, e que Zósimo somente deu novos contornos a tal ideia tendo em vista o contexto temporal em que escrevia. Fitton argumenta que muitos aspectos da tese de declínio do Império de Zósimo são encontrados em capítulos que possivelmente podem terem vindo de Eunápio, como, por exemplo, os que compõem a digressão dos oráculos acerca do futuro de Palmira em 1,57 e 1,58, que Fitton identifica, assim como nós, que a passagem em questão não somente retoma a tese que Zósimo colocou no seu

19 Um dos casos citados por Fitton nessa questão é o de que Zósimo citou muito vagamente o papel de

conspiradores individuais durante a revolta de Juliano contra o imperador Constâncio II, enquanto que um fragmento da obra histórica de Eunápio no Excerpta De Sententiis e uma passagem da sua outra obra, a Vida dos Filósofos, indicam um grande interesse sobre a questão por parte de Eunápio (FITTON, 1975, p. 41).

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