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Agora, observemos a representação do imperador Juliano, que, por ter reflorescido os cultos ancestrais no Império, foi bem quisto pelas obras de Zósimo e da sua fonte do período, Eunápio. O último imperador pagão é colocado como tendo possuído os melhores atributos e qualidades que um governante poderia ter.

Os elogios a Juliano são constantes. Ele é caracterizado como tendo sido piedoso (HISTÓRIA NOVA, 3,8-9), justo (HISTÓRIA NOVA, 3,8/3,15), respeitador dos presságios divinos (HISTÓRIA NOVA, 3,13/3,15), bravo na guerra (HISTÓRIA NOVA, 3,6), bem quisto pelos seus soldados (HISTÓRIA NOVA, 3,11) e bom governante (HISTÓRIA NOVA, 3,6/3,10).

Além disso, quando o mesmo é relembrado futuramente durante o livro quinto, no capítulo em que aborda sobre a nomeação e atuação de Luciano como cômite durante o reinado de Teodósio, recebe a alcunha de ‘’ Juliano, o Grande’’ (HISTÓRIA NOVA, 5,2).

Ao iniciar o seu livro terceiro, Zósimo afirma que, após a morte de césar Galo, o Império durante o reinado de Constâncio II tornou-se alvo de invasões de diversos povos (persas, francos, alamanos, saxões) que se aproveitaram desse momento de fragilidade. De acordo com o autor, Constâncio II

sem saber que decisão tomar, chegou a crer que somente ele não bastaria para solucionar tão abatida situação, porém não se atrevia, por um exagerado apego ao poder e porque a todos alcançava a suspeita de que não havia ninguém bem- disposto com a sua pessoa, a escolher um associado ao Império (HISTÓRIA

NOVA, 3.1).

Aconselhado por sua esposa Eusébia, ‘’ mulher da mais alta cultura e cuja inteligência sobrepassa a natural do seu sexo’’, eles teriam escolhido Juliano não somente porque era meio- irmão de Galo e neto de Constâncio Cloro, mas também porque eles consideravam que ele, por ter se engajado durante toda a sua vida ao mundo das letras e, de acordo com imperatriz, ‘’desconhecer por completo a política’’, poderia ser de utilidade para o imperador, pois se o mesmo obtivesse sucesso nas batalhas contra os invasores, o crédito seria dado ao augusto, enquanto que se falhasse, morreria e não haveria mais ninguém que pudesse impedir ‘’ o poder supremo’’ de Constâncio II (HISTÓRIA NOVA, 3,1).

Depois de narrar como teria sido possível Juliano, sem ambicionar, ter se tornado César, Zósimo comenta que ‘’ Constâncio mandou vir de Atenas Juliano, quem convivia com os filósofos daquela cidade superando em qualquer âmbito de estudos seus próprios mestres {grifo nosso}’’ (HISTÓRIA NOVA, 3,2). Através disso, Juliano é realçado como extremamente inteligente. Além disso, a História Nova enaltece o que foi a sua vida pública e intelectual, além de colocar o reinado de Juliano como grandioso e, portanto, importante assunto de ser estudado, afirmando que

as coisas que a partir de então {da sua coroação como César} e até o final de sua vida levou a cabo Juliano foram registradas por historiadores e poetas em muitos livros, ainda quando nenhum deles que ocuparam-se do tema alcançasse a altura que merece a matéria. Por outra parte, quem a quer pode inteirar-se de todo acontecimento nos discursos e cartas de Juliano (HISTÓRIA

Esse esforço narrativo presente na obra de vincular Juliano com o meio erudito ateniense é provavelmente advinda de Eunápio, visto que, de acordo com Jason Almeida, os fragmentos que possuímos dele mostram-nos que, ao contrário do advogado do Fisco, Eunápio colocava na sua obra os filósofos como muito importantes para os fatos ocorridos durante a História do Estado Imperial Romano (ALMEIDA, 2007, p. 42), o que é condizente com o resto da sua produção intelectual, pois sua outra obra, que foi escrita no meio do período em que escreveu sua História, chama-se justamente Vida dos Filósofos. Se somarmos isso ao fato de que Eunápio viveu e estudou retórica em Atenas durante 5 anos como discípulo do sofista Prohaeresius28, podemos concluir que o reforço de vinculação de Juliano com a figura do intelectual ateniense presente na História Nova é, muito provavelmente, uma reminiscência da obra de Eunápio, que pode ter sido possibilitada tanto pela elevada dependência de Zósimo frente à sua fonte quanto pelo fato do mesmo compartilhar uma visão altamente positiva desse imperador tal como seu antecessor classicista, fazendo com que mantivesse essa vinculação que encontrou quando utilizou Eunápio como fonte da sua obra.

Possuirmos um entendimento relativamente semelhante ao que possui Charles Fornara, que afirma que Zósimo, ao referir-se a outras fontes acerca do reinado de Juliano, inclusive as produzidas pelo próprio imperador, indica ao seu leitor que ele não irá utilizar outras fontes sem ser a sua principal, Eunápio, para relatar o período em questão. Para Fornara, ‘’ a inferência apropriada {acerca da passagem} é que a história de Eunápio tenha saído de circulação, e que Zósimo, em reviver isso, certo ou errado, imaginou que continha material fresco’’ (FORNARA, 1991, p.6). Quando o advogado do Fisco refere aos outros autores que trataram sobre o reinado de Juliano, ele não somente enaltece o reinado de Juliano, mas também justifica a sua escolha metodológica, a de que utilizaria uma única fonte, apesar de haverem tantas outras possíveis, que seria, implicitamente, Eunápio de Sardes.

Para realçar a importância e necessidade dos governantes ouvirem os sinais dos deuses ancestrais para assim colherem bons frutos, o advogado do Fisco relata que depois de estacionar-se em Naiso, Juliano

dedicou-se ali a escutar com os adivinhos o que deveria fazer. Como os presságios indicavam-no que deveria permanecer ali algum tempo, se ateve a isso, ao tempo quem assim mesmo, chegava o momento assinalado em seu sonho. Quando os movimentos dos astros pareciam unânimes, estando em Naiso, um grande número de cavaleiros procedentes de Constantinopla o

trazeram a notícia que havia morrido Constâncio e as legiões chamavam Juliano ao poder supremo. Aceitando, pois, o que a divindade havia lhe concedido (HISTÓRIA NOVA, 3,11).

Depois da morte de Constâncio, se é ressaltado que Juliano foi acolhido calorosamente pela população de Bizâncio, sem sequer utilizar o topônimo que remete a Constantino, como podemos notar nessa passagem: ‘’ Chegado a Bizâncio, todos acolhiam-no com aclamações, eles o chamaram como nascido e criado naquela cidade, seu concidadão e descendente e, atribuindo-lhe demais obséquios, tê-lo-iam destinado a ser máximo benfeitor dos homens’’ (HISTÓRIA NOVA, 3,11}.

Em seguida, segue-se um relato das melhorias urbanas na capital patrocinadas por Juliano. Ele teria implantado na mesma um Senado, um porto gigante e um pórtico no qual teria construído uma biblioteca. Ao contrário da descrição das melhorias urbanas feitas pelo imperador cristão Constantino, no relato das feitas por Juliano inexistem depreciações acerca deste imperador (HISTÓRIA NOVA, 3,11).

Em toda a representação, a imagem de Juliano enquanto grande líder militar é extremamente ressaltada e detalhada, mesmo quando o mesmo foi derrotado e morto na sua malsucedida campanha contra os persas (HISTÓRIA NOVA, 3,12-29). Zósimo coloca que na primeira batalha dele, ainda César, teria, contando com apenas 360 soldados profissionais, apoiados por 600 cavaleiros e um número não escrito de voluntários empunhando armas velhas, eliminado 60 mil bárbaros em combate, enquanto que outros inimigos teriam saltado no Reno para perecerem. Segundo o advogado do Fisco, ‘’ se alguém quiser comparar esta batalha com a de Alexandre e Dario, não consideraria uma inferior a outra’’ (HISTÓRIA NOVA, 3,4). Além disso, a benção dos deuses a Juliano é colocada como sendo vista e reconhecida até mesmo pelos embaixadores bárbaros: ‘’ os embaixadores convencidos por efeito de alguma força divina até {então} muito oculta e invisível se fazia visível no César {Juliano}, consentiram, proferindo sobre ele a fórmula de seus juramentos ancestrais’’ (HISTÓRIA NOVA, 3,6).

A coroação de Juliano como augusto é abordada como tendo sido causada pela própria vontade dos seus soldados. E, semelhante como foi abordada sua coroação como césar, o advogado do Fisco realça que sua coroação teria ocorrido sem sua vontade (HISTÓRIA NOVA,

3,9). O próprio resultado do seu embate com Constâncio II depois de ser coroado é vislumbrado

em um de seus sonhos, onde o sol fala do triste destino do seu oponente (HISTÓRIA NOVA,

Em contraste à forma como foi abordada a morte de Constantino, o relato do falecimento de Juliano enquanto empreendia sua campanha contra os persas é utilizado por Zósimo para atribuir um juízo de valor positivo em relação ao imperador pagão:

Uma vez que todos travavam combate entre si, o Imperador, ao marchar em busca dos comandantes e oficiais, se vê envolto com a multidão em que resulta no mais vivo da batalha {ficar} ferido de espada, por isso que é transportado secretamente a sua tenda; sobreviveu até a meia-noite, perecendo quando se aproximava ao ponto de liquidar o poderio persa até a sua última raiz (HISTÓRIA NOVA, 3,29).

A importância do reinado de Juliano para o Império é reafirmada 2 capítulos depois de ser narrada a sua morte, visto que o advogado do Fisco coloca que apenas depois do seu falecimento o Império não voltou a tomar de volta os territórios pertos dos persas. Segundo Zósimo,

até hoje em dia, os imperadores romanos, senão que, por acidente, perderam pouco a pouco a maioria das províncias, umas porque tornaram-se independentes, outras porque foram entregadas aos bárbaros, outras por ficarem em grande medida estéreis (HISTÓRIA NOVA, 3,31).

Em linhas gerais, a representação de Juliano possui todos os elementos que, de acordo com Greg Woolf, eram utilizados pelos historiadores antigos para fabricarem imagens dos bons imperadores para eles no passado. Zósimo coloca Juliano como o exemplo de um perfeito imperador para, com isso, defender discursivamente que os imperadores romanos deveriam voltar a aliarem-se com os deuses ancestrais.

Se compararmos as imagens construídas de Constantino e de Juliano na História Nova, podemos perceber como o seu aspecto legitimador molda o seu conteúdo. Enquanto que na representação de Juliano pintou-se as virtudes de um bom imperador e ressaltou-se sua popularidade, tanto entre a população, especialmente a de Constantinopla, quanto entre os soldados, na de Constantino imprimiu-se os defeitos de um péssimo imperador, minimizou-se seus feitos e pintou-se sua impopularidade, especialmente entre a população de Roma.

Devemos compreender que essas 2 representações presentes na História Nova, assim como diversas outras que não abordamos, são utilizadas discursivamente por Zósimo para transmitir ao seu público leitor não somente qual seria o tipo ideal de imperador, mas também uma lição de como deveria ser o Império Romano como um tudo: pagão, respeitador dos cultos ancestrais e abençoado pelos deuses. Ao tecer esses 2 quadros, utilizando elementos discursivos advindos do período clássico, Zósimo constrói uma versão não-cristã da História do Império

Romano movida pelo legitimador de sua obra: a explicação de que as calamidades do presente são fruto do abandono dos cultos ancestrais.

4- O USO HISTORIOGRÁFICO DAS CATÁSTROFES NA CONSTRUÇÃO DA

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