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Charlotte Arndt

Doutorado pela Universidade Paris Diderot-Paris VII /Humboldt Universität Berlin. Professora de Teorias Culturais da École Supérieure

d’Art et Design de Valence.

1 N. das T.: Tradução feita por Raissa Brescia e Taciana Garrido. A versão francesa deste

artigo foi publicada na revista Qalqalah, Un reader, n. 1, em março de 2015, com o título Décolonisations en adversité: Présence Africaine comme prisme de constellations culturelles. A autora e as

organizadoras agradecem à equipe de Bétonsalon e KADIST, Paris, pela permissão para tradução e publicação no Brasil.

Um dia após os ataques à sede do jornal satírico Charlie Hebdo e à tomada de reféns no Kosher supermarket, na parte oriental de Paris, muitos discursos oficiais bradavam como um escudo pela defesa dos valores da República Francesa e da civilização, que era preciso se defender contra a “barbárie”. A revista satírica atacada foi transformada no símbolo sagrado da liberdade de expressão e do pensamento ilustrado – princípios que seriam o orgulho do Ocidente a serem defendidos contra o inimigo a qualquer custo. Nesse cenário beligerante que funciona por oposições binárias, a seleti- vidade do universalismo francês permanece silenciada. No entanto, a história da liberdade Republicana, ainda que se diga “cega” às diferenças, tem uma cor (PEABODY, 2003).E essa cor tem gênero e classe. A codificação racial e culturalista na nação francesa está intrinsecamente ligada a sua história colonial. É nesse contexto que a luta pelas descolonizações se configurara e agora pode ensinar ao presente. Obviamente, as condições históricas mudaram desde a primeira metade do século XX. No entanto, as divisões sociais silenciosas dos dias atuais e a dificuldade em formular um projeto transnacional unificador de emancipação, mais do que nunca urgente para combater redutos fundamentalistas, impele-nos a explorar as constelações2

de motivos que provocaram o questionamento da hegemonia colonial na capital de um dos maiores impérios coloniais: Paris

Às vésperas das independências, a forma do Estado-nação e o delineamento territorial das fronteiras ainda não haviam se tornado condição pós-colonial – as possibilidades da invenção histórica ainda pareciam intermináveis.3 A escritora guadalupenha Maryse Condé descreve o período

unificador do jornal Présence Africaine antes das independências africanas na década de 1960.

2 N. das T.: A autora utiliza o termo “constelação [constellation] no sentido analítico de Walter Benjamin,

segundo o qual a noção de constelação demarca a junção particularmente rica dos impulsos mate- riais, dialéticos e religiosos. Benjamin desenvolveu a metáfora no prólogo de seu Origem do Drama Barroco Alemão, de 1925: “As ideias são constelações intemporais, e na medida em que os elementos

são apreendidos como pontos nessas constelações, os fenômenos são ao mesmo tempo divididos e salvos”. A imagem da constelação reaparece no estudo benjaminiano sobre Paris no século XIX, o

Arcades Project, no qual o termo também assume uma função conceitual central.

3 Agradeço a Virginie Bobin, Mélanie Bouteloup e Élodie Royer. Uma primeira versão deste texto foi

apresentada na ocasião da exposição Action! Paiting/publishing, após a estada de Marion von Osten

Havia um sonho maravilhoso e generoso naqueles dias. O sonho de um mundo negro que não seria dividido em nações diferentes pelas línguas e sistemas colo- niais de governo. Um mundo negro que falaria através de uma só voz, através da voz em uníssono de seus poetas e escritores. Um mundo negro que recuperaria sua dignidade e seu orgulho. (CONDÉ, 2000: 155).

Enquanto a escritora enfatiza a ideia de unidade cultural do “mundo negro” – opondo continuidade cultural à dispersão histórica provocada pelo comércio de escravos; redenção artística à violência política – outros movimentos forjaram alianças terceiro mundistas, reivindicando a auto- determinação ao procurarem selar alianças entre aqueles dispostos a lhes apoiar, inclusive pela força das armas, se necessário fosse. Mais do que se apresentar como uma história de oposições indivisíveis ou sem ambigui- dades diante da colonização, o trabalho de descolonização que precede as independências veio acompanhado de negociações difíceis, durante as quais movimentos políticos e artísticos transformavam as ferramentas de dominação em conceitos para um novo projeto de sociedade.

Analisarei nesse artigo algumas das constelações construídas por esses projetos de sociedade que se esboçaram nos números da Présence Africaine, revista fundada em 1947, em Paris, pelo intelectual senegalês Alioune Diop, que se institui como Editora a partir de 1949. Por meio do prisma da revista, a busca pela formação de uma linguagem pós-colonial futura, elaborada na própria metrópole colonial, configura-se o que podemos chamar de “constelações em disputa”: no seio da política de unidade defendida pela Présence Africaine4 aparecem as suas fraturas fundamentais. A revista se apre-

senta como um fórum no qual se formam as estratégias culturais, em que se desenham os impasses, como aberturas e possibilidades. Fazendo refe- rência a Michel de Certeau, percebo o trabalho da revista como um projeto de futuro em espaços adversos5: trata-se de trabalhar continuamente para

superar atribuições sociais condicionadas por seu lugar social e pelas rela- ções de força de seu tempo.

4 Para uma apresentação ampla da revista Présence Africaine, cf. FRIOUX-SALGAS, 2009. A publicação

acompanhou a exposição Présence Africaine (curadoria: Sarah Frioux-Salgas), Musée du Quai Branly,

2009-2010. Agradeço a Sarah Frioux-Salgas pela generosa revisão e pelas perspectivas da exposição

Présence Africaine, na Universidade Cheick Anta Diop, Dakar, 2011.

5 De Certeau fala do trabalho cultural como uma “proliferação de invenções em espaços adversos”.