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Diferentes e em diálogo: as abordagens e metodologias na História, nas Artes, na Filosofia e na Sociologia

A partir da História foi possível apresentar imagens da colonização no intuito de trabalhar em uma perspectiva da desconstrução e da crítica ao documento. A tentativa foi a de fazer uso de documentos utilizados por pesquisadores na construção de narrativas históricas, com a intenção de, ao ensinar, também propor a crítica. Nilton Mullet Pereira e Fernando Seffner alertam para a importância da utilização de fontes em sala de aula junto a estudantes para quem “o conhecimento da história pode fazer muita dife- rença na compreensão do mundo” (PEREIRA, SEFFNER, 2008: 114). Nesse sentido, trabalhar com fontes concernentes a passados sensíveis, como o foi a colonização, e com o documentário Lumières Noires abre pers- pectivas interessantes para discussões entre memória e História, questões atuais sobre o racismo e suas ligações com o discurso colonial. Além disso, o filme-documentário é uma abertura para discutir a agência africana na conduta de seus próprios processos de independência e provocar rupturas com narrativas da vitimização. Em diálogo com a intervenção da disci- plina de Artes, houve também a intenção de problematizar as escolhas e os enquadramentos presentes no documentário, apresentando-o como um documento portador de uma narrativa histórica (HERMETO, 2012: 141) e sob o ponto de vista do que Jacques Le Goff também apontou sobre a sua parcialidade: o que sobrevive do passado é uma escolha efetuada pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da huma- nidade (LE GOFF, 2003: 525). Assim, em diálogo com a intervenção do professor de Artes, a disciplina histórica buscou enfatizar a necessidade de sempre fazer a leitura crítica sobre as escolhas do presente para as formas de se contar o passado, de modo que, marcando suas condições de produção, o triunfo do documento não seja entendido como o triunfo da verdade. (PEREIRA; SEFFNER, 2008: 117).

Diante das discussões impostas pelos estudos pós-coloniais, outro ponto de partida para trabalhar questões relacionadas com a colonização foi a discussão entre memória e História, e a escolha de trabalhar o gênero documentário possibilitou abrir discussões mais amplas sobre a questão. Michel Pollack afirmou que o filme-testemunho é um meio de “enquadra- mento da memória” e por isso encontra-se em batalhas constantes pela

construção de uma narrativa definitiva. As perguntas que nos direcionaram foram: O que Bob Swaim quis narrar sobre a colonização e sobre o discurso da independência? Qual a sua versão sobre esse período? Com a metáfora, Pollack atenta para o fato de que, ao produzir o documentário, há, antes de tudo, seleção de entrevistas e fatos que sejam adequados aos seus obje- tivos (POLLACK, 1989: 12-15). Diante de um material dessa natureza, o olhar do historiador pode ser útil na “problematização dos lugares de fala, do ‘estatuto de verdade’, das condições de produção e das temporalidades, passadas e presentes, que transpassam um videodocumentário.” (DELLA- MORE; AMATO; BATISTA, 2016: no prelo).

O uso dos discursos racistas do século XIX, de imagens de cartazes da colonização francesa no entreguerras, de fotografias das exposições colo- niais e das próprias gravações de época contidas no filme-documentário Lumières Noires mostraram-se de especial importância para incorporar a proposta da Seffner e Pereira:

O trabalho em sala de aula com documentos pode ser pensado nesta ótica de criar e recriar o que somos, dando um sentido original para o ensino de história, em conexão com a formação da identidade dos alunos, situados em um deter- minado contexto histórico, que necessita ser entendido. (PEREIRA; SEFFNER, 2008:116).

Sem apresentar às turmas essa proposta inicial, o tema do racismo no Brasil surgiu nas discussões em grupo, trazendo à luz questões presentes no cotidiano dos estudantes, e a História da África atuou como força motriz para instigar a discussão desses temas, como apontado por Anderson Oliva. (OLIVA, 2012).

No viés da Arte, com o intuito de instigar um olhar crítico sobre os documentos históricos e sobre o cinema-documentário, exploramos as imagens como um virtual (DELEUZE; PARNET, 2004, LEVY, 1996), a fim de introduzir a questão crítica exigida. No debate com os alunos, esco- lhemos a instalação de Michael Snow, Authorization, para discutir o que uma imagem nos permite indagar sobre sua própria natureza. A obra consiste em um grande espelho com uma moldura de metal no qual estão coladas cinco fotografias em branco e preto, uma no alto, no canto esquerdo do espelho, e as outras quatro unidas no centro do espelho de maneira a formar um retângulo emoldurado por pedaços de fita autoadesiva. Lidas em ordem

cronológica, as fotografias apresentam ações que ocorreram em frente ao espelho, ao mesmo tempo em que são a própria obra.8

Ao escolher Authorization, pedimos aos alunos que primeiro olhassem para a fotografia e tentassem compreender minimamente do que se tratava. Passados alguns minutos, os próprios alunos começaram a arriscar algumas considerações. A complexidade dos jogos de reflexos e sequências de foto- grafias fora de foco e, sobretudo, a confusão entre o primeiro plano e a profundidade na direção do espaço refletido foram por nós escolhidas justa- mente para deixá-los intrigados no primeiro momento, como que decifrando um código misterioso. Michael Snow nos apresenta como a fabricação da fotografia (da qual o cinema é herdeiro) apaga a imagem da história, uma vez que ela revela menos a cada novo enquadramento.

Esse primeiro desafio, o de saber olhar para pensar sobre o olhar como princípio para o conhecimento, foi deliberadamente preparado para que eles começassem a se perguntar sobre o que seria aquela imagem, pergunta que se ampliou, uma vez que, ao problematizar a imagem como um virtual que pode ser atualizado provisoriamente, procuramos ampliar as possibilidades de significados para o campo das visualidades.

Entrar nessa discussão foi uma tentativa de, prosseguindo com o docu- mentário, fazê-los suspender algumas certezas sobre o que veem e sobre o que sabem. Afinal, se a visão pode ser algo tão prodigioso e repleto de mean- dros que se desdobram, então, a percepção não será tão infalível e confiável. Novamente, a capacidade crítica dos alunos foi desafiada e incentivada para a interpretação da produção de Bob Swaim e para os discursos coloniais.

As imagens do documentário, que ainda seria exibido nas aulas seguintes, precisariam ser abordadas segundo aquele ponto de vista mais aberto. Ou melhor, seria importante prepará-los para novos olhares em diálogo com informações desafiadoras, pois envoltas em preconceitos e padrões historica- mente construídos. Mas esses procedimentos exigem que estejamos abertos para de fato ver as imagens e pensar sobre elas. Caso contrário, dificilmente os preconceitos cedem espaço a novas possibilidades de se humanizar e afastar os microfascismos que ameaçam os nossos corpos (SILVA, 2014a).

8 Por razões de direitos autorais, não reproduzimos a imagem neste livro, mas a obra encontra-se dispo-

nível em: <http://www.gallery.ca/cybermuse/teachers/plans/zoomMTA_e.jsp?mkey=7852&img_ type=WI>. Acessado em: 10 de setembro de 2016.

Perguntar-se sobre como uma imagem foi feita é, de uma só vez, levar em conta que ela, mais que um produto, é processo, e se debruçar sobre esse processo é algo que se pergunta Philippe Dubois quando, diante da obra Authorization, de Michael Snow, faz os seguintes questionamentos: “O que está representado? Como aconteceu? Como é percebida?” (DUBOIS, 2009: 16). Para o autor, seria fundamental fazer essas perguntas a uma obra de arte. Mas porque elas seriam tão fundamentais? Primeiro, porque tais questionamentos discorrem sobre a qualidade da imagem, sua superfície, a luz impressa sobre papel fotográfico, e esses suportes colados sobre um espelho. Este, por fim, não reflete mais o espectador, tampouco a face do artista em seu autorretrato. Tentando respondê-las, poderíamos arriscar: o que está representado é o apagamento do retrato do artista, que na ânsia de apresentar um rosto acabou por fracassar sua intenção, deliberadamente. A sequência de fotografias não apenas apagou o reflexo no espelho, mas apagou toda a possibilidade de ver o que se esperaria de um autorretrato fotográfico. Com essa abordagem por meio da fotografia e da narrativa artística de Snow, quisemos questionar os alunos sobre os estatutos de verdade e de espelhamento da realidade que muitas vezes são imbuídos aos documentos escritos ou audiovisuais.

Finalmente, no âmbito da Filosofia e, de forma mais direta, no da Sociologia, a ênfase era trabalhar no sentido de compreender as raízes sociais da produção e interpretação das imagens, partindo da perspectiva do conceito de representações coletivas (DURKHEIM, 2002) e avançando com os pressupostos da teoria das representações sociais (MOSCOVICI, 2005). O trabalho interdisciplinar proposto para o ensino da História da África exigia uma preparação dos jovens antes da exibição do Lumières Noires, no intuito de que imagens da colonização não reforçassem preconceitos, mas fossem percebidas na perspectiva da desconstrução. Com o objetivo de melhor entendimento desta perspectiva da Sociologia e, também, como ponto de encontro comum das quatro disciplinas, é preciso, em um primeiro momento, definir o termo representação.

Etimologicamente, “representação” provém da forma latina repraesen- tare, ou seja, fazer presente ou apresentar de novo. Fazer presente alguém, alguma coisa ou ideia ausente. Na contemporaneidade tem-se como ponto comum que o conceito diz respeito a um “processo pelo qual se institui um representante que, em certo contexto limitado, tomará o lugar do que representa”. (AUMONT, 1993: p. 103).

O sociólogo francês Émile Durkheim, inovou ao se debruçar sobre o conceito na medida em que fez uma diferenciação entre representações indi- viduais e representações coletivas. De forma pormenorizada, no processo dedicado a deixar claro o objeto e o método próprio da Sociologia, o estudioso demonstrou a existência de uma vida social com alma própria, acima e fora das mentes dos indivíduos, na qual a expressão da existência dessa vida social seriam as representações coletivas. Estas traduziriam uma forma de conhe- cimento produzida no dia a dia das interações sociais entre os indivíduos de uma determinada sociedade, exprimindo um ideal coletivo, sendo represen- tações de maneiras de agir, pensar e sentir, exteriores aos indivíduos, dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se impõem a eles, sendo ainda, impessoais, estáveis e comuns a todos (DURKHEIM, 2002). Portanto, para compreender como a sociedade se representa a si própria e ao mundo que a rodeia, seria preciso considerar a natureza da sociedade que conformaria, de forma imperativa, o comportamento das pessoas e dos grupos.

Problematizando Durkheim, Moscovici (MOSCOVICI, 2005), ao subs- tituir o termo “representações coletivas” por “representações sociais” esta- beleceu, de um lado, as fraturas existentes nas “forças coletivas”, enfatizando o fato de que os diferentes grupos que compõem uma sociedade constroem representações contraditórias sobre a realidade. De outro lado, demonstrou a maneira pela qual as fraturas impactam diversamente o cotidiano de grupos e indivíduos, valorizando, assim, a ação individual e a própria ação de um conjunto de pessoas (MOSCOVICI, 2005). Em outras palavras, complexi- ficou, de maneira a relativizar, a forma imperativa pela qual a consciência coletiva, em Durkheim, conformava o comportamento de grupos e de indi- víduos. Desta forma, abriu espaço para se pensar as representações sociais enquanto um processo, uma relação de força entre as imagens impostas por grupos ou pessoas que detêm o poder de classificar e nomear e a aceitação, resistência ou perspectiva inovadora que cada grupo ou indivíduo produz de si mesmo. Neste sentido, tais representações são sempre embates que, de certa forma e com níveis diferentes de eficácia, tornam-se matrizes de práticas construtoras da vida em sociedade. Cabe ainda pontuar que o ato de retratar mentalmente alguém, alguma coisa ou ideia se constitui de duas partes: um aspecto figurativo e outro simbólico, cujo objetivo é atribuir sentido ao mundo. É a partir deste sentido que se pode pensar que imagens, de certa maneira e com graus variados, conformam práticas de indivíduos e de grupos. (BAUMAN, 2010).

De maneiras distintas e complementares, as quatro disciplinas envol- vidas neste projeto desenvolveram e problematizaram temas afins, como a crítica ao estatuto de verdade de um documento, identidades, preconceitos, estereótipos e a pluralidade de representações possíveis.