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Constituição da Subjetividade

No documento A pulsão de saber do expert (páginas 45-54)

1.2 Expertise e Psicanálise

1.2.3 Constituição da Subjetividade

A construção da própria subjetividade é um processo lento, difícil e penoso (CHECCHINATO, 2007), mas absolutamente necessário para a aquisição das características psíquicas individuais, que fazem do sujeito um ser único no mundo.

Os primeiros quatro a seis meses de vida do bebê participam de uma fase específica, com características próprias e significativamente diferentes da seguinte, sendo consenso entre os autores psicanalíticos acerca de tais mudanças psíquicas marcadas por essa transição (BION, 1988; KLEIN, 1934, 1946; LACAN, 1964; MAHLER; PINE; BERGMAN, 2002; SPITZ, 2004; WINNICCOTT, 1983).

Os primeiros meses participam do que Klein (1946) definiu de posição esquizoparanoide, equivalente à alienação de Lacan (1998). Os meses seguintes foram classificados por Klein (1934, 1946) como participantes da posição depressiva, equiparada ao que Lacan (1998) denominou de separação (fading).

Seja qual for a denominação oferecida a essas etapas, é nítido que pertencem a momentos típicos e específicos da vida psíquica da criança. De todo modo, Klein enfaticamente se preocupou em não defini-los como períodos ou fases, que remetem à ideia de sequência, de evolução linear, de estágio temporal, de pré-definição temporal (CASTELO FILHO, 2004; NASIO, 1995a) – tal como Piaget classificou os estágios do desenvolvimento humano (2002) e da moral (1994) –, mas de “posições”, que, segundo Arnoux (2003), designa efeito de funcionamento psíquico.

Assim, o conceito kleiniano de “posição” não impõe que a fase seguinte necessariamente tenha que ocorrer. Ou seja, a posição depressiva pode não vir a acontecer, permanecendo o sujeito alienado, aprisionado psiquicamente à posição esquizoparanoide, tal como os psicóticos. Da mesma forma, segundo Nasio (1995a), os mecanismos esquizoparanoides e depressivos podem aparecer mais tarde, na adolescência e na vida adulta. Por tal razão, Bion (2007) apresentou o esquema PS ↔ D (paranoid-schizoid ↔ depressive), o qual corresponde à necessária intercalação das duas posições ao longo de toda a vida, em um movimento pendular – razão pela qual a fixação em qualquer um dos lados significaria grave sintoma. Dessa forma, o sujeito psiquicamente saudável se alterna entre as duas posições, a depender da situação que estiver vivenciando.

Na verdade, a vida psíquica do bebê se inicia ainda nos meses intrauterinos, antes, portanto, da entrada na posição esquizoparanoide. Isso porque desde antes do seu

nascimento biológico, ele já existe no inconsciente de seus pais, decorrente das próprias marcas psíquicas deles (AULAGNIER, 1991; CARON, 2000; CORDIÉ, 2005; ELIA, 2007; GOMES; RESENDE, 2004; PICCININI et al., 2003; PORTELLA; FRANCESCHINI; COSTA, 2008; PRISZKULNIK, 2004).

Cabe à criança, portanto, encontrar seu caminho e obrigar os pais a fazer o luto de suas próprias crianças narcísicas. Em psicanálise, todas as crianças devem ser “adotadas” por seus Outros parentais, mesmo as biológicas (HAMAD, 2002), ou seja, todos os pais devem ter um desejo capaz de receber e de acolher seus filhos da melhor maneira. Assim, seu desejo se operará para que eles a acolham sem investimento narcísico demais e sem demasiada decepção ou rejeição (HAMAD, 2002). Até porque, o desejo de criança dos pais pode não estar acessível na consciência deles, já que o que opera é, de fato, a dimensão psíquica do desejo inconsciente. Um bebê, por exemplo, que não é desejado conscientemente pode sê-lo, de certa maneira, inconscientemente (HAMAD, 2002).

Pelo mesmo raciocínio, uma mãe que planejou um filho pode se deparar com a surpresa da ausência de uma relação inaugural libidinal com ele, tal como no caso de Maria, descrito por Tafuri (2003), cuja mãe se encontrou com os tremores inconscientes relativos ao seu próprio nascimento, quando faleceu sua própria mãe. Em casos como esse, cujas causas inconscientes podem ser as mais diversas, ocorre a clínica do autismo, eis que a criança sequer entra na posição esquizoparanoide, em razão da existência do Outro constituidor não ser suficiente para que o sujeito surja, falho na linguagem e no desejo – e portanto a esse Outro, o sujeito não consegue responder (CORDIÉ, 2005; FREIRE, 2004; MONTES, 2004; TAFURI, 2003). Os caminhos do inconsciente são sempre enigmáticos, portanto (CHECCHINATO, 2007).

Por conseguinte, Wilheim (2000) afirma que, mesmo antes de nascer, o bebê já possui uma vida afetiva e emocional vinculada à sua experiência relacional com sua mãe pré- natal, já que está em comunicação empática e fisiológica com ela, captando todos os seus estados emocionais e suas perspectivas em relação a ele. Essa personalização do bebê realizada pela mãe é necessária justamente para que ela, ao conhecer seu filho, não se depare com um completo estranho (BRAZELTON; CRAMER, 1992).

O próprio nome escolhido para ele, segundo Justo (2004), personaliza-o, expressando os desejos inaugurais depositados pelos pais na figura do filho e apresentando- lhe as suas fundações mais arcaicas. Isso porque, segundo o autor, o nome próprio funciona como a primeira nomeação do desejo parental, como testamento que designa os legados da criança e indica os investimentos afetivos depositados nela, as idealizações dos pais e o

projeto de vida que lhe é esperado. Trata-se, portanto, de “um dos elementos da pré-história no Outro que estarão relacionados àquele que vai nascer” (ELIA, 2007, p. 43). Assim, a incorporação de “Junior” ao nome, por exemplo, é muito mais que mera homenagem ao pai.

É competência da criança, imposta pelos pais, por conseguinte, fazer jus ao nome escolhido e torná-lo seu (CHECCHINATO, 2007). Contudo, ao realizarem essa nomeação, os pais já não controlam mais a direção e significação que terá tal nome, pois é certa a impossibilidade de um nome corresponder plenamente ao que ele designa (RODRIGUES, 2008). Tanto assim que Joyce (1998, p. 244) pergunta: “O que se encontra em um nome? É o que nós perguntamos a nós mesmos na infância quando escrevemos o nome que disseram ser o nosso”.

Posição Esquizoparanoide / Alienação

Ao nascer, enfim, o infans – a criança que ainda não fala (KUPFER, 2007) – entra na posição esquizoparanoide, dando início à sua própria história psíquica pós-natal. Essa posição se caracteriza pela etapa inicial de vida do bebê, que se envolve em um enlaçamento com seu Outro primordial (a mãe) de absoluta simbiose, que McDougall et al. (1985) chamam de “um corpo para dois”. O bebê, então, encontra-se absolutamente misturado à mãe, vivenciando a fase de alienação, definida por Lacan (1964), como aquela em que o sujeito está em dependência significante ao lugar do Outro. Essa díade mãe-bebê é fundamental para a estruturação psíquica do infans, conforme demonstraram as pesquisas experimentais e de observação desenvolvidas por Spitz (2004) e demais estudos psicanalíticos (BION, 1999; DUPAS, 2008; MAHLER; PINE; BERGMAN, 2002; WINNICOTT, 1993, 2005)

Destaca-se, contudo, que, segundo Lacan (1964) esse Outro primordial não se refere necessariamente à mãe biológica, mas àquele que cumprir essa função para o bebê. Necessária, fundamental e imprescindível é essa função materna, pois um bebê não existe sem uma mãe (WINNICOTT, 1983), ou melhor, um bebê psiquicamente saudável depende totalmente dela, indicando o estado inicial de vinculação absoluta em relação a ela (MARTINI, 2000). Assim, para que o bebê nasça psiquicamente, é necessário, segundo Hamad (2002), que ele se agarre ao corpo da mãe e que esse corpo o tolere, o aceite e o deseje.

É o seu olhar, inclusive, constituído a partir dos seus próprios desejos projetados no filho, que fornecerá a ele as primeiras imagens dele próprio, em que ele começará a se ver e a se reconhecer (JUSTO, 2004). A cena do olhar materno se torna perceptível no momento da amamentação, em que parece que só existem aqueles dois seres no mundo, algemados um a outro por puro gozo. A criança foca no fundo dos olhos da mãe enquanto mama, correspondendo ao seu olhar, em um momento único de ternura e afeto. Tanto assim, que, para Cordié (2005), o sinal mais importante do reconhecimento entre mãe e filho é o olhar. A postura da mãe nesse momento fará toda a diferença para as primeiras inscrições no inconsciente de seu bebê (SANSON, 2006).

Fundamental nesse tempo, pois, é a rêverie, termo desenvolvido por Bion (1988) como a capacidade psíquica materna de acolher e bonificar as experiências afetivas do bebê nela projetadas, significando-as. Segundo Souza A. (2003), é a possibilidade materna de acolher as identificações projetivas do bebê, pensar sobre ele, prestar atenção, tentar compreender, de modo a diminuir suas angústias, dando-lhe um sentido menos ameaçador ao sentimento de morte e aniquilamento que ele sente nesse momento. Nesse caso, a mãe inscreve no psiquismo do filho o sentimento de que o sofrimento não é infinito (LISONDO, 2004).

Isso porque, no princípio, os fatos costumam ser sentidos como intoleráveis ou indigestos pelo bebê, razão pela qual ele busca um continente – a mãe (CASTELO FILHO, 2004). Bion propõe os símbolos ♀, para continente, e ♂, para conteúdo, expressando a ideia, por exemplo, de uma boca que contém um seio ou do psiquismo da mãe que contém as identificações projetivas do bebê (CASTELO FILHO, 2004). O continente é o lugar onde um objeto é projetado, enquanto que o conteúdo é o objeto de necessidades e angústias que podem ser projetadas no interior do continente (ZIMERMAN, 2004).

Assim, o bebê sai do “terror sem nome” em decorrência das nomeações que lhe são oferecidas por ela – ou recebe novamente o “terror sem nome” de uma mãe incapaz (BION, 1991). Ou seja, a mãe pode ter a capacidade de rêverie ou não. O segundo caso ocorre quando ela não bonifica os sentimentos angustiantes do filho, devolvendo-lhe vazios ou afetos igualmente ruins. Nessa situação, o mal-estar do bebê persiste se a mãe não sabe como tranquilizá-lo ou, ainda, se nela provoca reação de ira ou violência, situação em que se instala uma experiência desorganizadora, potencializando-se o desamparo e a orfandade psíquica no

infans (LISONDO, 2004).

A identificação projetiva, em suma, é um mecanismo defensivo apresentado como uma fantasia inconsciente e onipotente de que aspectos não desejados ou temidos

possam ser expelidos de dentro do self e empurrados para dentro de outro continente que deles se encarregue (CASTELO FILHO, 2004). Para Bion (1988, 1991), é a forma inicial do que mais tarde se chamará de capacidade para pensar, ou seja, é o primeiro modo de se comunicar com sua mãe, sendo justamente essa comunicação a origem do processo de pensar. Isso porque o bebê tem que elaborar todos esses sentimentos distintos que vivencia, bem como aqueles que recebe de volta. Portanto, a transformação da experiência intolerável em algo tolerável só é possível através do pensamento (SOUZA, A., 2003; ZIMERMAN, 2004).

A importância da função materna nessa posição é imprescindível também porque a criança não percebe as “pessoas”, e mantém apenas relacionamentos com objetos parciais, prevalecendo os processos de splitting (divisão) (SEGAL, 1975). Trata-se do período em que a criança ainda não é capaz de distinguir o “eu” do “não eu”, o filho da mãe, o mundo interno do externo, o sujeito do objeto (JUSTO, 2004; SHIRAHIGE; HIGA, 2004). Tudo é parte dela própria. Assim sendo, vivencia o narcisismo primário, já que sua realidade é o seu próprio corpo soberano, sendo ele, para si mesmo, o seu próprio objeto de desejo (JUSTO, 2004; SHIRAHIGE; HIGA, 2004). Isso porque ainda está nessa completa fase de indiferenciação – abusando dos prazeres dos “pedaços” de seu corpo –, em que há predominância do eu ideal, de formação essencialmente narcísica (ROUDINESCO; PLON, 1998).

O bebê se enxerga, então, desintegrado, ou seja, não consegue se perceber como um ser inteiro, mas como uma boca, um braço, uma perna. Da mesma forma, em sua fantasia, sua mãe também é fragmentada e se mistura com ele próprio, em uma união de partes de corpos gozosos, potencialmente capazes de se unificarem simbolicamente. São os denominados por Klein (1946) como objetos parciais, clivados em um fragmento ideal e um persecutório, como o “seio bom” (estruturante) e o “seio mau” (desestruturante), sendo o seio o primeiro objeto parcial sentido pelo bebê (ARNOUX, 2003).

Em princípio, todo objeto necessitado, pela teoria de Bion, é sentido como um objeto mau, porque, se o bebê o necessita, é porque não tem a sua posse; logo, esses objetos são maus porque a sua privação provoca muito sofrimento (ZIMERMAN, 2004). Assim, segundo Souza A. (2003), quando o bebê perde a relação com o seio bom, acaba por vivenciar a invasão desse objeto mau.

Portanto, segundo Nasio (1995a), trata-se de uma fase em que a criança fica dominada por sentimentos e fantasias de perseguição e aniquilamento. A destruição dos perseguidores por meios violentos ou, opostamente, dissimilada ou ardilosamente, afirma ainda o autor, é a sua defesa principal. Exemplifica ele: as projeções anais visam a colocar as

fezes no corpo da mãe, que não as aceita. Como defesa, ela passa, então, a ser identificada como má e se opera a identificação projetiva.

São esses objetos “ruins” projetados na mãe pelo infans que devem ser bonificados por ela, por meio da linguagem necessária ao seu desenvolvimento. Isso porque o bebê deve entender que está sendo confrontado com essa experiência interna turbulenta das pulsões de vida e de morte, com as exigências pulsionais satisfeitas ou não, com o prazer proporcionado pela satisfação e com o desprazer e a agressividade decorrentes da frustração. A cisão e a identificação projetiva são, pois, mecanismos primitivos de defesa dos quais ele dispõe para se organizar e se sentir seguro diante da ameaça advinda de sua fragilidade (SOUZA, A., 2007).

Assim, ao receber os sentimentos negativos do bebê, cabe à mãe devolvê-los positivos. Quando, ao mamar, ele morde o seu seio, por exemplo, ela deve lhe retornar explicações amorosas – e sinceras – sobre tal atitude. Da mesma maneira, cabe a ela apresentar bons frutos às puxadas de cabelo, tapas, arranhões etc. Ela se torna, então, particularmente capaz de cuidar de seu bebê vulnerável, contribuindo para as suas necessidades.

A adaptação materna às demandas do filho, segundo Winnicott (1983), concretiza-se prelo emprego de três funções que operam simultaneamente: apresentação do objeto (seio), holding (sustentação, segurança, de proteção) e handling (toque, manipulação do bebê enquanto for cuidado). Caso a mãe se identifique estreitamente com o filho, adaptando-se às suas necessidades e conseguindo desempenhar basicamente as suas funções, é considerada por Winnicott (1975, 1993) por “mãe suficientemente boa”.

Ganhito (2003) esclarece que, a rigor, não há função materna sem referência a um terceiro, ou seja, essa mãe suficientemente boa é aquela que porta em si a referência à lei da interdição do incesto, fruto de uma elaboração saudável de seu próprio complexo de Édipo. Portanto, ela deve se sentir segura e amada em relação ao seu homem e aceita em seu círculo social (DUPAS, 2008; WINNICOTT, 2005). A verdadeira maternidade é proveniente, por conseguinte, da relação de um casal, em que o filho, desejado por ambos, é testemunho desse amor compartilhado (CHECCHINATO, 2007; DOLTO, 1984).

Para tanto, é necessário que exista na mãe uma falta de tal natureza que só um filho preencha, sendo necessário, ainda, desejo para que o bebê se transforme em sujeito. Ao mesmo tempo, é preciso que o bebê possa se distanciar do desejo materno e que a própria mãe duvide que ele preencha completamente o que lhe falta. Ou seja, ambos devem permanecer na

falta após a completude inicial da posição esquizoparanoide. É justamente essa falta, segundo Elia (2007), que faz o sujeito na cultura, não da cultura, por ser mero efeito da cultura.

Dois objetos, enfim, resumem essa posição primera: 1) a alienação é necessária, mas passageira; e, 2) a mãe não pode se saturar somente com o desejo, indispensável, de filho, mas deve possuir também um desejo de mulher, um desejo investido em uma terceira pessoa (LICHT, 2006). Portanto o désir de la femme (desejo de mulher) se conecta ao désir de la

mere (desejo de mãe) e ao désir de l’enfant (desejo de criança).

Finalmente, segundo Souza A., (2003), esse instante inicial da relação do bebê com o Outro é o ponto de partida da sua subjetividade, que implica a passagem de um ser absolutamente biológico a um ser psicológico e cultural. Em suma, “o sujeito independente e autônomo do futuro levará para sempre a marca indelével da dependência inicial que lhe foi necessária para sobreviver” (KUSNETZOFF, 1982, p. 35).

Posição Depressiva / Separação

Na posição depressiva, que se inicia por volta dos quatro aos seis meses de vida, ocorre a integração do bebê, que se manifesta gradativamente a partir do estágio primário não integrado (WINNICOTT, 2005). Caracteriza-se pela sua percepção como uma só unidade, isto é, pela separação psíquica da mãe e do filho.

Segundo Lacan (1998), em sua teoria sobre o estágio do espelho, o nascimento do eu se formará a partir de uma linguagem criada não pelo próprio bebê, como um mero processo de maturação, mas pela mãe. Ou seja, a transição da indiferenciação para a integração dependerá da atuação do Outro, por meio da linguagem, ao permitir que haja a instalação nele das experiências subjetiva e cognitiva (BATTAGLIA, 2007).

É nessa fase que a criança começa também a experimentar sentimentos de culpa em relação aos objetos maus introjetados na mãe na posição esquizoparanoide, embora a mãe continue sendo continente de seus conteúdos. Segundo Rosa, J. (2000), a primeira e principal condição para que ocorra o processo de continência é a observação, sob a égide de amor, e o desejo de conhecimento – características que acompanham e criam as condições essenciais para que a mãe tenha paciência e tolerância necessárias para com seu filho. Cabe a ela continuar bonificando e simbolizando as identificações projetivas lhe destinadas pela criança.

Assim, na posição depressiva, como dito, eu e Outro (mãe) passam a ser reconhecidos como campos distintos. Contudo, e tão importante quanto, é a chegada de um terceiro (pai) – aliás, é justamente a entrada desse Outro que permitirá a transição para essa posição depressiva (JUSTO, 2004). O bebê se torna capaz de enxergar simbolicamente o pai, que deverá entrar em sua vida psíquica com força total, barrando a díade mãe-bebê, castrando o gozo existente entre eles e inserindo a lei, a norma, o não. É essa lei, segundo Bernardino (2006), que introduz o objeto materno como proibido e deve ser sustentada pelo pai, detentor do falo. O pai, portanto, intervém na relação mãe-filho cortando as amarras dessa relação dual, e, ao interditar o incesto, acaba por sobrepor o reino da cultura ao reino na natureza (TEIXEIRA, 2005).

Trata-se aqui, contudo, não da presença de um pai encarnado, mas da entidade paterna que possui uma representação simbólica internalizada e assumida pela criança (DOR, 1991; JUSTO, 2004; NASIO, 1997), denominada por Lacan (1998) de Significante Nome do Pai, o qual simboliza a castração que interfere a favor do sujeito, salvaguardando-o de se submeter ao gozo total do Outro (BATTAGLIA, 2007).

Eis que, então, qualquer pessoa que possua construído seu próprio significante Nome do Pai, pode desempenhar a função paterna, até a própria mãe, mesmo quando assume concomitantemente a função materna. Tanto assim, que uma mãe viúva, um tio, um avô, a companheira da mãe homossexual podem simbolizar no psiquismo da criança a lei interna, pois mesmo nesses casos, a triangulação continua a existir, uma vez que se mantém a tríade simbólica formada por aqueles que desempenham as funções materna, paterna e filial. A criança necessita desse par conjugal (simbólico) para construir dentro de si uma imagem positiva das trocas afetivas e da convivência (GOMES; RESENDE, 2004).

Não é a toa que, para Klein (1928), é a partir desse início de triangulação que se inicia o Édipo precoce, em uma fase pré-genital, seguido posteriormente pelo Édipo freudiano (FREUD, 1923a), por volta dos três aos cinco anos de idade.

A partir de então, segundo Justo (2004), nesse relacionamento triádico, a mãe passará a ocupar o lugar do desejo, o filho o do desejante e o pai o da interdição. A instauração desse triângulo é essencial para a constituição do sujeito, pois é também dele que a criança desfará suas ilusões narcísicas e passará a descobrir que não é soberana e onipontente, já que seu desejo está submetido a um outro, a uma lei (JUSTO, 2004). É fundamental, de acordo com Checchinato (2007), que ela esteja e cresça sempre nessa posição terceira.

Nessas circunstâncias, é também quando o bebê transforma o seu narcisismo original em amor objetal (FREUD, 1914). A pessoa “normal”, amadurecida, é justamente aquela cujo narcisismo atingiu um grau socialmente aceitável, embora cada sujeito guarde para si restos de seu narcisismo primário (SHIRAHIGE; HIGA, 2004). Assim sendo, a criança passa a vivenciar o que Freud (1914) denominou de narcisismo secundário, o qual sempre possui restos do anterior.

Ademais, considerando que é somente por meio da castração paterna que a criança sairá do campo do gozo materno, alienante, dotado de uma completude, que ela entrará no campo do desejo. A criança, então, transita do eu ideal – absolutamente ligado ao narcisismo primário – para o ideal do eu, que designa a vinculação simbólica que permite a formação da imagem do eu, situando-a em relação ao desejo do Outro. Portanto, é o ideal do eu que possibilita que toda a dinâmica desejante do sujeito se estabeleça e se propague, já que também é fruto da falta resultante dessa castração.

Consequentemente, essa falta possui enorme importância para a estruturação psíquica da criança, exatamente porque a forma como cada uma lidará com ela implicará em diferentes posições diante do desejo do Outro (MEIRA, 2004). É justamente ao se dar conta que o Outro também não é absoluto, que algo lhe falta, que a criança começará a se indagar sobre o desejo (BERNARDINO, 2006; LACAN, 1964; LICHT, 2006), ocasionando o desenvolvimento do saber. Isso porque não há saber, se houver gozo (SALIBA, 1999). Ou seja, para que a aprendizagem ocorra, é imprescindível que haja desejo, não gozo, já que é por meio dele que o sujeito irá ousar buscar conhecimento.

Nota-se, portanto, que para que haja desejo, há que se ter o desejo do Outro. E o desejo do Outro, por sua vez, deve ser faltoso. E para se ter a falta, há que se ter a noção de

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