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Dedicação aos Estudos

No documento A pulsão de saber do expert (páginas 77-87)

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO 3.1 Pulsão de Saber

3.1.2 Dedicação aos Estudos

Até o Vestibular

Apesar de perceberem uma facilidade de aprendizagem, a maioria dos entrevistados apontou uma dedicação aos estudos durante a sua vida escolar. Alguns afirmaram que estudaram demasiadamente (“Estudava todo dia”, “Eu estudava, eu estudava

mesmo”); outros, que nem tanto (“Estudei pouco”, “Nunca fui grande estudioso não. Nunca fui. E também não sou”).

Para eles, estudar era uma obrigação, ou seja, era o papel que deveriam cumprir, mesmo que não gostassem muito da disciplina – o que demonstra um perfil de autorrresponsabilização deles como alunos (“Tinha que estudar”, “Muita coisa era legal,

algumas coisas muito chatas. Mas estudava porque tinha”). Ademais, entendiam que havia

uma cobrança, uma competição e um interesse fundamentalmente internos em relação ao estudo, não extrínsecos. Afinal, todo desejo é de ordem inconsciente e, portanto, absolutamente pessoal.

“Meu pai nem via as minhas notas. Meu pai nem sabia as notas que eu tirava,

muito menos a minha mãe. Se mostrava o boletim pra ela, ela ficava contente. Mas sempre uma coisa pessoal, eu sempre corria por fora”.

“Eu não estudava por causa da cobrança também, acho, estudava porque era o

que eu fazia, então estudava”.

“Sempre tentei competir sempre comigo, nunca competia com os outros. Eu

acho que a gente tem que fazer competição com a gente mesmo. Não fui um aluno brilhante no colégio. Sempre fui um aluno mediano, mas estudava todo dia. Estudava todo dia. Era um compromisso pessoal”. Essa afirmação remete a uma análise psicanalítica de discurso que

tenta distinguir o discurso consciente (enunciação) do discurso do inconsciente (enunciado), fazendo surgir a lógica do sujeito. E é exatamente essa distinção entre um e outro que se constitui primordial para a psicanálise (BERNARDES, 2003), afinal, o sujeito do inconsciente se encontra presente em todo enunciado, recortando qualquer discurso pela enunciação que o transcende (ROSA, M., 2004). Ora, nesse caso, para que dizer que não competia? Se não fosse tão importante essa competição – que supostamente não existia –, sequer teria entrado no campo da linguagem. Então, será que o que se quis dizer não foi exatamente o contrário: ‘eu competia sim’. Esse discurso pode ter ocorrido em decorrência de uma negação esclarecida por Freud (1925 apud D’AGORD, 2006) que envolve um desejo recalcado que é reconhecido, mas não admitido. Por não se tratar de um encontro em um setting analítico, por exemplo, em que a transferência entre analista e analisando se encontra estabelecida, o participante poderia ter preferido ocultar um pensamento narcísico para passar uma mensagem mais social. Mesmo assim, cabia à pesquisadora escutar o sujeito do inconsciente do entrevistado para além dos atos de fala, ou seja, como cita D’Agord (2006), em referência ao tesouro de significantes da língua do falante, em que é possível encontrar hesitações, esquecimentos e negações.

Destaca-se, ademais, que apenas um entrevistado declarou que não estudava e que não gostava de fazer dever de casa. “Nunca. Nunca. Odiava dever de casa. Nem curso de

inglês eu dava conta de dever de casa”. Isso porque considerava que, em seu tempo, a escola

“não era uma coisa muito legal”, “nunca me atraiu muito”, “nunca fui muito fã”. Para ele, em crítica ao sistema educacional, os conteúdos trabalhados não possuíam aplicação lógica, o que

implicava em um “estudar por estudar”, necessário apenas para tirar boas notas (ou passar de ano), o que não lhe atraía de maneira alguma. “Só acho que não estudava na escola porque

achava chato. Muito chato. Achava inapropriado, assim, não era desafiante”. De fato,

Knüppe (2006) afirma que, muitas vezes, o aluno se mostra desmotivado com os estudos porque não há uma aproximação dos conteúdos escolares com a sua realidade. Portanto, caberia ao professor conseguir inserir os conteúdos programáticos ao projeto de vida do aluno, para lhe oferecer uma noção global das atividades escolares, além de lhe indicar que estudar pode lhe trazer vantagem em curto prazo (SANTOS; MOLON, 2009).

Tal participante não considerava, contudo, que suas notas eram ruins, tanto que sempre foi aprovado. Segundo ele, o pai o “considerava um gênio, enquanto a escola era uma

porcaria”, o que demonstra uma crença paterna acerca da inteligência do filho, o qual não

estudava, mas tirava notas satisfatórias. “Mas eu diria que eu era folgado, tinha mais era

sorte”. Ou, quem sabe, ‘a escola não era uma porcaria. Eu é que era muito inteligente (gênio),

tal como achava o meu pai’. Será que inconscientemente não incorporou as ideias do pai a seu respeito? ‘Tanto era gênio, que nem precisava estudar para passar de ano’.

Todo gênio é expert, mas nem todo expert é gênio, dado que expert apresenta um conhecimento profundo sobre um assunto específico, enquanto os gênios apresentam conhecimentos que superam o mero domínio de área, estabelecendo novos paradigmas em uma área de atuação (GALVÃO; GOMES, 2008, p. 53).

O referido entrevistado, portanto, nesta etapa da vida, não era nem ainda expert, tampouco gênio. Tal apontamento levanta questões que podem gerar estudos futuros sobre entre expertise, genialidade e superdotação (altas habilidades).

De todo modo, a falta de interesse nos estudos desse participante parece estar relacionada simplesmente à ausência de empatia em relação à escola – que era uma porcaria, muito chata e não desafiadora –, e aos conteúdos curriculares apresentados, que não lhe instigavam. Não à toa, ele foi o único entrevistado que declarou que já ficara em recuperação – embora “poucas” –, à exceção dos demais, que unanimemente afirmaram que suas notas sempre foram boas, que o boletim era, em média, exemplar e que tinham destaque na turma, tal como demonstram as seguintes frações de fala:

“Não [fiquei de recuperação na escola]. Nunca”.

“Eu nunca tive problema de nota. Passava. Normalmente no terceiro bimestre já

tinha fechado tudo”.

“Eu sempre estudei para tirar boas notas”.

“Até entrar na faculdade sempre fui um aluno, em termo de notas, né, muito

“Na época se valorizava muito isso ‘o primeiro da turma, a nota mais alta’ e

tal. E realmente sempre vinha muito bom o boletim”.

Assim sendo, conclui-se que com muito ou pouco estudo, todos eles se consideraram alunos bons ou medianos – inclusive aquele que não estudava –, a saber: “Modéstia a parte, eu sempre fui bom aluno”; “Eu fui um aluno mediano até eu entrar no

ginásio”; e, “Não fui um aluno brilhante no colégio. Sempre fui um aluno mediano, mas estudava todo dia”. Curiosamente, os que se consideravam medianos foram justamente

aqueles que também alegaram apresentar boas notas sempre. Há, então, uma contradição no discurso, eis que anteriormente quiseram ser reconhecidos como dotados de inteligência especial.

O fato de alguns terem sido medianos – em sua própria concepção – corrobora com estudos sobre expertise que indicam que experts, enquanto crianças, não eram considerados promissores e que acabavam por conquistar sua expertise em razão da quantidade e qualidade do estudo individual deliberado empreendido (GALVÃO, 2007a). Assim, Galvão (2007a) afirma que o expert não foi necessariamente o melhor aluno da turma enquanto criança ou adolescente.

O expert, na verdade, é aquele que se dedica anos a fio a uma área específica, o que não faz dele um sujeito particularmente bom se não relacionado ao seu domínio. Ou seja, o expert só é expert na sua área de domínio, fruto de sua dedicação e estudo deliberado em longo prazo. Logo, o desenvolvimento da expertise é sempre um extenso processo de aquisição de uma habilidade específica (SOSNIAK, 2006) e não dura menos de dez anos para ser construída (ERICSSON, 1996a, 2006b; GALVÃO, 2003; HUNT, 2006)

Nota-se, ainda, que dois dos participantes estudiosos, em suas falas a seguir, negaram terem sido “CDFs” ou “nerds”, inclusive por se considerarem bagunceiros. Segundo Dayrell (2006 apud BARBOSA, 2007, p. 81), a sigla CDF significa “cú-de-ferro” e é correspondente ao “nerd” norte-americano, referindo-se àqueles que vestem a camisa de aluno, em uma adesão incontestável às regras escolares. Para Sousa (2007), geralmente os bons alunos, os CDFs e os responsáveis são os que cumprem corretamente as tarefas solicitadas pelos professores ou pela escola: entregam todos os trabalhos no dia marcado, não faltam às aulas, estudam para as provas, não dormem durante a aula e sentam na frente da sala. A negativa dos entrevistados em serem CDFs, embora se considerassem bons alunos, demonstra que, apesar de estudiosos, não viviam somente focados nos estudos, em uma dedicação cega às exigências escolares, e mantinham certa atitude social, eis que dispensavam

tempo também a comportamentos que poderiam ir de encontro às normas educacionais, tal como fazer bagunça.

“Era muito bagunceiro, mas não dava trabalho de nota, não tinha problema de

nota. No ginásio, aí comecei a eu ser mais CDF, vamos supor, eu falo CDF na maneira de subir nota, porque eu era da turma da bagunça. Nossa, longe disso [de ser nerd]”.

“Eu nunca fui, assim, aliás, nunca mesmo, fui um CDF. Mas eu não era

disciplinado todos os dias, tudo, de estudar muito. Estudei pouco”.

Seja como for, conforme os discursos, todos os participantes, à época do vestibular, aumentaram significativamente sua dedicação aos estudos. Segundo Rodrigues e Pelisoli (2008), de uma forma ou de outra, os vestibulandos sabem que terão que enfrentar alguns anos de estudo até conseguirem atingir seu objetivo e, por isso, mudam sua rotina e seus hábitos de vida.

O entrevistado que declarou não estudar no Ensino Fundamental, afirmou que passou a estudar quando iniciou o Ensino Médio. “Tinha o vestibular, tinha que passar e o

meu papel era aquele. E foi assim. Estudei por conta disso”. Nota-se que havia uma meta a

ser atingida que lhe atraía, diferentemente do que vivenciara na escola até então, a qual lhe apresentava conteúdos desconexos e pouco desafiantes. Em razão do vestibular, passou a ter um objetivo a alcançar e o estudo se mostrou necessário e interessante.

Diferentemente, os quatro participantes restantes alegaram que passaram no vestibular como mera decorrência do estudo que sempre tiveram. “Entrar no vestibular não

foi difícil. Não foi”, “Entrei no primeiro [vestibular]. Mas eu tive empenho, então... Assim, eu não vivi a angústia do vestibular como às vezes eu vejo alguns garotos hoje em dia, filhos de amigos. Vejo essas pessoas sofrendo muito. Talvez o vestibular hoje seja diferente. Mas não foi uma preocupação tão intensa. Achei que seria consequência”. Ou seja, para eles, sempre

houve o estudo, a dedicação, e, consequentemente, a aprovação.

Destaca-se que, apesar do esforço, um deles passou no vestibular apenas na segunda tentativa. “Foi consequência do estudo [passar no vestibular], mas eu estudei muito,

assim, até o 3º colegial. Então, eu tinha certeza absoluta que eu ia passar quando eu terminasse o 3º colegial, só que não aconteceu, né? Eu não passei no primeiro, aí eu fui fazer cursinho. Aí, quando eu fui fazer cursinho, aí eu dei uma relaxada geral, assim. Aí eu passei. Porque eu fiquei um ano praticamente sem estudar, fiquei um ano no cursinho sem estudar. Na época, eu acho que eu tinha um certo excesso de confiança. Pra passar, eu acho que você precisa de um preparo que seja mais do que só o conhecimento. Precisa de preparo de cabeça boa, precisa estar num momento bom, assim, pra passar. Não me faltou conhecimento

porque depois eu passei com o mesmo conhecimento que tinha, estudei muito menos depois disso, né? Então eu acho que não era o momento. E hoje eu acho que ainda bem que eu não passei na época. Eu acho que eu aproveitei mais na faculdade por não ter passado já de imediato”.

O participante da fala acima diz que estudou muito e que esperava passar no vestibular por tal razão, mas não passou imediatamente, tendo que fazer cursinho por um ano. Confessou ter relaxado nesse período e que embora relaxado, acabou passando. Para ele, a reprovação ocorreu em face de um excesso de confiança de sua parte e não por falta de conhecimento, portanto. Talvez o relaxamento tenha algo a ver com controle de ansiedade, definida por Galvão e Gomes (2008) como um tipo de emoção que interfere – predominantemente de forma negativa – na realização de tarefas cognitivas. Por tal razão, a inteligência fica paralisada por problemas de ordem emocional (FAIRSTEIN; GYSSELS, 2005; FERNANDES, 2007).

Nesse caso, então, uma possível ansiedade pode ter abalado a sua performance ao realizar as provas do vestibular, haja vista que, segundo D’Avila e Soares (2003), a situação do vestibular pode ser entendida como algo por si só capaz de gerar ansiedade nos vestibulandos. Ademais, a autocobrança por resultados, que era alta até então, talvez tenha diminuído a partir desse fracasso inicial. Nota-se, igualmente, o reconhecimento de que a dificuldade inicial de ingresso na universidade lhe serviu para valorizar mais a aprendizagem. Para além disso, por conseguinte, o discurso aponta para duas preocupações comuns em pessoas metacognitivamente eficientes: reflexão sobre aspectos do processo de estudo e sobre certos estados emocionais que acompanham o estudo dependente de resultados, tais como: ‘precisa de preparo, de cabeça boa, precisa estar num momento bom’. Esse vínculo entre estados emocionais e aprendizagem, aliás, tem sido razoavelmente bem pesquisado (GALVÃO, 2000; GALVÃO; GOMES, 2008; LAZARUS, 1982; SMITH; LAZARUS, 1993).

Enfim, foi notório que, apesar da ênfase em aspectos como facilidade de estudos, eufemismo para frases mais narcisistas como ‘sou muito inteligente, naturalmente’, há também um discurso recorrente sobre estudo individual. As falas remontam tanto à quantidade como à qualidade dessa dedicação.

Após o Vestibular, na Faculdade

Na faculdade de medicina, de acordo com as falas apresentadas a seguir, todos declararam que tinham a preocupação de serem bons médicos. Na verdade, tornar-se um médico admirado e respeitado é um ideal comum do aluno que chega à faculdade repleto de sonhos e fantasias (MOREIRA et al, 2006). Para atingir tal meta, o estudo não pode faltar – tanto que os cinco participantes assumiram que estudaram muito ao longo da faculdade. Tal entendimento corrobora, mais uma vez, com a ideia de que não há desenvolvimento de

expertise sem estudo deliberado (GALVÃO, 2006), e que é necessário esforço para se tornar

um expert (HUNT, 2006).

“Não posso ser medíocre, tenho que ser realmente muito bom. Aliado a isso,

foram aparecendo as afinidades. E as afinidades terminaram também influenciando a tomar decisões”.

“Querendo ser um bom médico, querendo poder ajudar as pessoas”.

“Não me preocupava em ser melhor do que os outros, mas me preocupava em

ser muito bom para ter a certeza de que teria condição de sustentar a minha família e ter uma condição financeira boa”. Esse discurso aponta novamente à necessidade de distinguir o

enunciado da enunciação, sendo que, mais uma vez, o tema é o da competição – embora os entrevistados não sejam os mesmos. Para que dizer que não se preocupava em ser melhor do que os outros (em competir com os outros)? Será que houve novamente um discurso de negação? D’Ágord (2006) afirma que é clara a frase freudiana: “negar algo em um julgamento é, no fundo, dizer: ‘isto é algo que eu preferiria reprimir’”. Assim sendo, talvez não fosse interessante para o participante, por alguma razão, expor uma atitude competitiva no contexto da entrevista.

Destaca-se que aquele que não fora estudioso ao longo do ensino fundamental, passara a ser no Ensino Médio, em razão da meta de ser aprovado no vestibular, e chegara a estudar cerca de 18 (dezoito) horas diárias durante a faculdade, em um grau de dedicação – segundo ele – de 100%. Exagero à parte, é necessário inferir que 100% de dedicação só seria possível para quem estuda 24 horas diárias, o que é impossível, em face das demais obrigações cotidianas que, por sua própria natureza, excluem o estudo enquanto estiverem sem realizadas, tal como dormir. De todo modo, segundo Benevides-Pereira e Gonçalves (2009), o curso de medicina é tradicionalmente aceito como um dos mais difíceis e/ou trabalhosos justamente por exigir demais dos alunos: dedicação, esforço, sacrifício e, sobretudo, resistência física e emocional.

Curiosamente, um daqueles que sempre tiraram notas boas na escola, apesar de continuar estudando muito e passando bem nas disciplinas da faculdade, chegou a tirar nota baixa em algumas – embora nada que o preocupasse, até porque sempre se dedicou ao curso e porque sabia que estava tendo uma boa formação. “Na média, era o pior dos melhores e o

melhor dos piores. Tava na média. Assim, nunca fui, durante a faculdade inteira, assim, nunca fui... Sempre mediano. Eu estudei... Assim, quando eu falo mediano, eu estudava, eu tirava boas notas, mas não era aquela coisa assim... O que eu acho que eu tinha de qualidade era que eu estudava na fonte e ia buscando fontes. Por exemplo, na faculdade tinha uma coisa assim: ah, vamos estudar anatomia num livro tal. Aí quando eu estudava, eu estudava num livro, mas pegava outros livros e ia meio que, não ficava lendo muito, mas eu ficava, meio que juntava outras informações, buscava outras informações. Eu tive uma formação boa, assim, não foi ruim, nem excelente. Mas o tempo todo eu estudei bastante, né? Então tudo o que eu passava, eu passava bem, eu estudava bastante”.

Esse participante, ainda na faculdade, já demonstrava uma autorregulação típica da construção de expertise, fase em que o sujeito exerce controle sobre o ambiente de aprendizagem e sobre os processos de organização do material a ser aprendido, que corresponde aos frutos da metacognição (GALVÃO, 2003; GLASER, 1996; GOMES, 2008). Já se mostrava, pois, independente e autônomo na busca por informações necessárias a sua formação acadêmica, não ficando preso somente às dicas e às exigências do professor.

Outro participante, que era sempre o primeiro da turma ao longo da educação básica, declarou-se mediano e sem destaque na faculdade. “Era um aluno mediano dentro do

curso... Não sei, quando eu olho lá pra trás, eu estudava, tal, mas eu não tinha, eu acho, um destaque dentro da sua turma”. Na verdade, pode haver um desencanto em relação às

primeiras notas na faculdade de medicina, que não costumam corresponder à alta expectativa do estudante que estava habituado a ser o primeiro da classe e, assim, ser reconhecido pelos outros e por si próprio (BENEVIDES-PEREIRA, 2009; FIEDLER, 2008; MILLAN et al., 1999). Para Millan et al. (1999), a perda desse status pode desencadear, por exemplo, sentimento de desvalia ou uma crise de identidade, caracterizada pela perda de sua “marca registrada”. Afinal, os brilhantes passam a ser meros medianos no grosso de uma turma.

No caso desse entrevistado, o gosto pela medicina só surgiu, por exemplo, quando passou a lutar para ser bom, ser reconhecido. “Então, o que que foi que aconteceu? Eu

acho que pra mim mudou muito a medicina no internato. Eu me lembro claramente assim quando eu tinha uma dificuldade muito grande durante a medicina de procedimentos. Eu tinha medo, principalmente na parte da cirurgia. Tinha alguma coisa que me bloqueava.

Desde o primeiro ano da medicina, tinha vários colegas que iam dar plantão, com médicos. No primeiro ano de medicina, tavam dando plantão no Hospital de Base. Eu sempre fugia disso. Aí, daí a pouco eles estavam muito à frente de mim, mais seguros. E aquilo foi me deixando, como diz, me sentindo mal e eu fui, talvez até, me distanciando. Aí, no internato, o primeiro estágio meu foi na cirurgia. Eu acho que aquele internato, fui um interno muito dedicado, porque eu falava: ‘eu tenho que ser bom aqui. Ou vou ser bom aqui ou não vou ser médico’”.

Em sua fala, apesar de jamais ter deixado de estudar medicina, o participante afirmou ter se identificado com ela somente na etapa do internato, quando percebeu a necessidade de se aproximar dela para poder ser capaz de ser um bom profissional; logo, reconhecido. Segundo Fiedler (2008, p. 23), “o internato é o momento de transição entre o modelo acadêmico e o vir a ser profissional, o que configura uma mudança de papel e função”. Até então, o entrevistado apontou dificuldade, medo, bloqueio, fuga, atraso em relação aos colegas, insegurança, mal-estar e distanciamento.

Esse participante, esclarecendo, fora sempre um dos primeiros da turma na educação básica e não apresentara uma empatia anterior com a medicina, tendo-a escolhido por influência do pai: “Bom, na verdade eu fui pra medicina porque o meu pai queria que eu

fosse médico. Ele que meio que definiu”. Portanto, é possível inferir que ele, ao passar no

vestibular e ao se deparar com a área que seria responsável pela sua profissão, tenha desenvolvido tais sentimentos angustiantes ao perceber que a empatia e a paixão não aconteciam: “Eu ia razoavelmente bem, mas não estava muito entusiasmado, assim, com a

medicina. Acho que até o quinto ano, eu não gostava da medicina”. Parece mesmo que ela só

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